Ed. 83 – Envelhecimento e Histórias em Quadrinhos

14/09/2022

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Por Fabricio Ribeiro

Para além do entretenimento proporcionado pela leitura de aventuras espaciais e tramas detetivescas envolvendo heróis encapuzados e superpoderosos, as histórias em quadrinhos têm o papel de nos fazer refletir acerca da realidade em que vivemos.

Temas como emigração e refúgio, combate à intolerância, respeito às diversidades, direitos das mulheres e tantos outros assuntos importantes figuram, de forma cada vez mais frequente, nas páginas dessas revistas. A questão da velhice, fundamental, sobretudo ao pensarmos numa sociedade que envelhece – em 2050 seremos 2 bilhões de pessoas com idade superior aos 60 anos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) –, também vem sendo abordadas nas HQs.

Duas obras com essa temática foram publicadas recentemente. Vida nas Sombras (Conrad, 2022, tradução de Andressa Lelli, 368 páginas), com roteiro de Hiromi Goto e ilustrações de Ann Xu, e A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos (Pipoca e Nanquim, 2022, tradução de Fernando Paz, 148 páginas), escrita por Zidrou e ilustrada por Aimée De Jongh.

A primeira conta a história de Kumiko Saito, de 76 anos, viúva, que tenta levar a vida de modo independente, sem a interferência dos familiares, enquanto lida com a proximidade da morte, representada pelas sombras mencionadas no título. A obra começa com Kumiko arrumando seus pertences e fugindo da casa de repouso escolhida para ela por suas filhas. Ao sair diz: “Nunca me senti bem aqui”. A ameaça surge logo nas primeiras páginas. A protagonista sente sua presença e, numa cena em que a morte tenta afogá-la na banheira, responde: “Eu sabia que você viria. Senti sua presença pelo lar de idosos todo. Sei que não é pessoal. Mas veio cedo demais”. Kumiko luta pela vida. Vence. E depois aprisiona a sombra num aspirador de pó.

Ativa e cheia de vontade de viver, Kumiko faz natação, compras, cozinha, usa o computador e o telefone celular, percorre longos trajetos, muitas vezes a pé. Apesar de contar com a generosidade de outros personagens, resolve as coisas do seu jeito. Sempre sozinha. Vive num apartamento, seu “cantinho próprio” como chama, com pouca mobília. Dorme no chão.

Sem revelar seu paradeiro, comunica-se pela internet com Mitsuko, uma de suas filhas, que é contrária à ideia de a mãe de morar sozinha, como ilustra o diálogo:

“Tem ideia de quantos problemas a senhora causou a todos?”

“Calma! Só estou vivendo minha vida. Só isso…”

“Esperamos mais de três anos por um lugar no Green Acres, mãe! Nunca mais vão te aceitar de volta! Sem falar na quantia que já pagamos e não vão reembolsar!”

“Nunca gostei desse nome. Parece até um lar de idosos para animais de fazenda.”

Mas Kumiko quer privacidade e pede a filha que respeite seus desejos.

Quando uma mancha escura aparece em suas costas, na altura dos ombros, resultado do seu embate com a sombra, decide ir à biblioteca pesquisar o assunto. As horas passam. Atormentada pelo agouro da morte, sai apressada, sem perceber que suas chaves e a carteira caíram da jaqueta, dando início a uma série de eventos determinantes para o desenrolar da história. Ao fugir, Kumiko escorrega e machuca o braço. Recusa-se a ir ao hospital. Pensa nas consequências: as filhas serão avisadas e ela perderá sua liberdade. Na sequência, já em casa, sem encontrar os remédios, se pergunta: “E se for tudo da minha cabeça? E se não houver nada no aspirador? E se for a demência chegando?”. Recorre à internet para pesquisar acerca da “perda de memória e velhice”.

Com passagens repletas de lirismo, símbolos e metáforas – e uma reviravolta que remete ao realismo fantástico nas últimas páginas –, utilizadas por Hiromi Goto e Ann Xu para reforçar o desejo da protagonista em se manter viva, a leitura de Vida nas Sombras é pautada pela pergunta: como enxergamos a velhice?

A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos narra a história de Mediterrânea e Ulisses a partir do momento em que tomam consciência do próprio envelhecimento e da forma como lidam com essa realidade. Questões como morte, trabalho e sexualidade são abordadas com sutileza e sensibilidade pelos autores.

Mediterrânea aguarda por nove meses a morte da mãe, na expectativa de que o sofrimento terminasse. E quando acontece, conclui: “A morte não ama os idosos”. Com o falecimento da matriarca, ela passa a ser a mais velha da família, como lembra seu irmão, fazendo-a pensar em sua condição. Ulisses, por sua vez, depara-se com a aposentadoria compulsória aos 59 anos, como parte de um plano de “enxugamento” da empresa.

Os dois se conhecem por acaso. Mediterrânea, com 62 anos, foi modelo e chegou a posar nua para uma revista masculina. Curioso, Ulisses procura a revista num sebo. Folheia o exemplar ao encontrá-lo. Mas a nudez que a HQ nos mostra é a da personagem nos dias de hoje, quando se despe no banheiro, numa sequência de quadros que detalham o corpo idoso. “O corpo se resigna mais rápido do que a alma. O tempo o enruga, o injuria, o humilha… O ‘envariza’, o ‘menopausa’… O extenua, o caricaturiza… Bom jogador, o corpo acompanha. O espírito, esse é mau perdedor. Leva mais tempo pra soprar o mesmo número de velas que o corpo. Só se rende aos trancos e barrancos… Depois de revelações dolorosas… E sucessivos espantos”, reflete Mediterrânea, diante do espelho.

Começam um relacionamento amoroso. O flerte, o romantismo, o prazer. A redescoberta do sexo. E um final surpreendente.

O termo “obsolescência programada” é geralmente empregado para designar produtos e aparatos tecnológicos que, dentro da lógica do mercado, possuem tempo de funcionalidade finito, exigindo sua substituição a curto ou médio prazo. Na HQ é utilizado por Zidrou e De Jongh para questionar se emoções e paixões teriam data de validade, uma época determinada para ocorrer, isto é, na juventude, não sendo possível aos velhos sentir e desejar.

O etarismo aparece como mote nas duas histórias. Kumiko, de acordo com as filhas, não pode morar sozinha, tampouco levar a vida de forma independente. Ulisses foi dispensado do emprego e quando o antigo patrão tenta justificar a decisão, é obrigado a retrucar: “O que os outros têm são 20 anos a menos”. A discriminação com base na idade atinge sobretudo a população idosa e segue na contramão do que a OMS entende por “envelhecimento ativo”, que visa a melhoria da qualidade de vida das pessoas à medida que envelhecem, a partir do reconhecimento dos direitos dos idosos e de princípios como autonomia, dignidade, assistência e autorrealização.

Estabelecidos e garantidos esses direitos, teremos o idoso protagonista não apenas de histórias em quadrinhos, mas de sua própria história.

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