12 Horas de uma Jornada Trágica Por Aí

13/08/2022

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Em Agamenon 12h, doze atores se revezam em encenação de texto do argentino Rodrigo García

por Paloma Franca Amorim

O conjunto de solos apresentados nesse projeto se organiza a partir de uma matriz dramatúrgica, o texto de Rodrigo García “AGAMENON – Voltei do Supermercado e dei uma surra no meu filho”, no qual encontramos uma espécie de recepção contemporânea do mito bélico e patriarcal de Agamenon, um reconhecido herói grego, rei de Micenas, em cuja morte anuncia-se o princípio de uma elaboração dialética entre estruturas proto-jurídicas, o Estado e a concepção de justiça em face da arcaica concepção de vingança. Agamenon atravessa a estirpe dos Atridas como uma múltipla simbolização do passado em crise que se manifesta em contínua ruptura quando diante das tecnologias do presente, cada vez mais assentadas à distância do panteão divino, nas proximidades da verdade política produzida pelos mortais.

Agamenon é assassinado por Egisto, amante de sua esposa Clitemnestra, depois de regressar da guerra de Troia. Em outras versões da narrativa é a própria Clitemnestra que comete o assassínio. É importante lembrar, todavia, que as forças que levam Clitemnestra ao crime integram um contexto cultural específico, suas atitudes não podem ser medidas pelos valores subjetivos modernos e sim por uma constelação de razões familiares, metafísicas, perpetuadas pela tradição, que conduzem a personagem a um território no qual o seu ser individual corresponde a uma mentalidade balizada pelo sagrado, traduzindo no jogo do eu/nós a dimensão mítica da ação enquanto mediadora dos acontecimentos sociais.

Clitemnestra é apresentada por Homero na Odisseia como um modelo de virtude (“nobre”,”bom coração”), ao ser vitimada por uma maldição clânica, ou seja, uma estrutura de poder alheia à projeção moderna do livre arbítrio, ela sucumbe aos desejos de Egisto, tornando-se por consequência sua amante e cúmplice no ato criminoso. É portanto esse o conjunto de eventos e contradições que substanciam Agamenon enquanto personagem trágica, um complexo entrelaçamento com entes, deidades, antagonistas, figuras essas que propiciam em síntese sua posição dinâmica e viva em um mundo transitório.

Foto: Mari Chama

No texto de Rodrigo Garcia mobilizado na empreitada (homérica e hercúlea) de 12 solos ao longo de 12 horas de apresentação, Agamenon é a solidão da ideia moderna de sujeito trágico, fundamentalmente impactado pelas engrenagens do capitalismo e de suas formas de perpetuação ideológica. Podemos imaginar, através da composição de Garcia, a figura de Agamenon clássico, o rei, entidade de grande importância na Guerra de Troia (qualquer lugar “por aí”), espiralando-se em uma pasta homogênea de mitos e vísceras dentro de um copo de liquidificador Black & Decker, numa manhã de segunda-feira embalada pelo volume alto da televisão ligada a esmo na sala, no canal de um programa matinal qualquer que ensina donas-de-casa a se comunicarem com bonecos de marionete esculpidos fisicamente à aparência dos animais e sonoplasticamente ao modo das vozes infantis.

O pai e marido Agamenon que Rodrigo Garcia desenha é uma pessoa livre – que dentro de circunstâncias histórico-materiais definidas pelo mercado é o mesmo que dizer um trabalhador brutalizado, prisioneiro de seus comprometimentos psíquicos e sociais resultantes da desumanizadora superexploração no sistema capitalista – cujas nanopartes germinais todos os dias inspiramos e espiramos de chofre, entre uma e outra golada de café ou de cerveja, diga-se de passagem.

Agamenon 12h propõe nesse sentido um investimento conceitual que envolve a precarização das formas trabalhistas no século XXI, na medida em que a relação horas/produtividade tem se afastado de um certo princípio contrastivo (tempo X ação) e segue amalgamando-se em unidade; isso significa que o trabalho colonizou o espaço do improdutivo, do não-trabalho, aquele que anteriormente era visto como exercício possível de uma fatia de vida em tese não-explorada. 12 intérpretes propõem efeitos prismáticos ao texto em uma experiência política aberta na qual os espectadores podem gozar de alguns graus de autonomia uma vez que possuem licença para chegarem aos solos e para deixá-los conforme o próprio desejo. Interessante pensar no desafio esboçado pelo projeto Agamenon 12h: qual será a textura do diálogo entre público e os doze intérpretes? Por um lado pode haver o ideal movimento da autonomia como uma fissura capaz de criar condições à liberdade da chegança e do abandono da situação estética como uma decisão crítica; por outro, há o risco da lógica consultiva dos velhos museus em que se verifica o ethos de consumismo do mercado das artes, também concernente aos modelos de produção capitalistas responsáveis pela automatização não apenas da experimentação material da vida, mas também das emanações sensoriais e simbólicas da arte. Não há respostas nem certezas, os dados de mil faces estão lançados.


Agamenon 12h

De 10 a 27 de agosto. Quartas a sábados, das 10h às 22h.
Local: Praça (Térreo)
Não há necessidade de inscrição nem retirada de ingressos.
Saiba mais clicando aqui.


Paloma Franca Amorim é escritora, professora e artista plástica, autora do livro “Eu preferia ter perdido um olho”‘ (Ed. Alameda, 2017).

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