Por Leandro Noronha da Fonseca*
Isolamento. Máscaras. Álcool em gel. Distanciamento social. A pandemia de COVID-19 provocou significativas transformações em nível global. Transformações cuja compreensão ainda está sendo construída por especialistas de diversas áreas do conhecimento. Além dos impactos sociais, culturais, políticos e econômicos, o surgimento da nova doença trouxe novamente à tona, por parte de profissionais da saúde e da imprensa, uma velha presença: a expressão “grupos de risco”.
Com a epidemia de HIV/AIDS no início da década de 1980, a expressão surge no campo da epidemiologia para indicar as pessoas mais propensas à infecção pelo vírus. Homossexuais, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis foram algumas das populações enquadradas no termo. A expressão foi retomada na pandemia de COVID-19 para indicar a vulnerabilidade ao agravamento da doença por parte de idosos, pessoas vivendo com doenças crônicas e/ou respiratórias etc.
De acordo com Gabriela Junqueira Calazans, doutora em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o termo é vastamente utilizado em ações e debates sobre saúde pública e doenças infecciosas. “O termo é uma decorrência do conceito de risco, que busca atribuir uma identidade sociocultural àqueles que teriam mais chances de desenvolver determinados agravos”, explica.
Entretanto, o que era para compor estratégias de contenção da disseminação do HIV tornou-se ineficaz e estigmatizante. Ao orientar ações de saúde pública, o conceito tende a promover estigma e discriminação contra grupos sociais já vulneráveis em termos de direitos. Ele também negligencia condições de vida e acesso a serviços e programas de saúde. “Além disso, mobiliza certa desresponsabilização de pessoas que não se enquadram nos chamados grupos de risco, favorecendo sua desproteção, como se fossem imunes a tais agravos”, complementa Gabriela.
“Um vírus não escolhe um grupo”
Vanessa Campos, 48, recebeu o diagnóstico positivo para o HIV em 1992 após o falecimento do companheiro em decorrência da AIDS. Atualmente ativista e secretária nacional da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP+Brasil), ela se recorda que, no período, a expressão “grupos de risco” lhe causou indignação. “Ficou óbvio que não me contemplava como alguém vulnerável a adquirir o HIV. Isso excluiu a minha atenção sobre os riscos reais que eu corria. Minha preocupação era não engravidar.”
“O termo não informava a realidade de que qualquer pessoa estava sujeita a adquirir HIV por meio de relações sexuais sem nenhuma estratégia de prevenção”, afirma Vanessa, e complementa: “No termo, existe um julgamento moral sobre as pessoas. Ele segrega, afasta da testagem e impede um atendimento acolhedor, humanizado e eficaz.”.
É o que também pensa a psicóloga Rafaela Queiroz, 29, pessoa vivendo com HIV de transmissão vertical (quando a infecção ocorre na gestação, no parto ou na amamentação). “A infecção ocorreu porque, na época, não se fazia testagem em grávidas como atualmente se faz. Também não havia medicamentos para controle no Brasil”, relembra Rafaela.
Rafuska, como é popularmente conhecida, diz que tomou conhecimento do termo aos 15 anos em um encontro de adolescentes e jovens vivendo com HIV/AIDS. Recorda-se do questionamento do uso da expressão em encontros promovidos por movimentos sociais. “Nos questionamos sobre ‘ser risco’, de ter esse olhar sobre nós, e o quanto isso nos silenciava e nos fazia ter ainda mais medo de sofrer discriminações.”
O termo, que orientou as estratégias iniciais para o enfrentamento ao HIV/AIDS, foi posteriormente substituído por “comportamento de risco”, noção também problemática e que desconsidera desigualdades sociais que podem impedir o acesso a informações e métodos preventivos.
Assim, surge o conceito de “vulnerabilidade”, que associa a exposição a determinadas doenças não apenas a aspectos individuais, mas a um complexo sistema social e estrutural que envolve acesso à educação e às informações preventivas, o desenvolvimento de políticas públicas, a qualidade dos serviços de saúde etc.
Recentemente, a expressão “populações-chave” tem sido promovida pelo Ministério da Saúde e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) na condução de políticas de prevenção ao HIV e a outras infecções sexualmente transmissíveis.
Mesmo com as muitas diferenças biológicas, sociais e epidemiológicas entre a COVID-19 e o HIV/AIDS, é possível reconhecer, em ambos, a ineficácia da adoção do termo “grupos de risco”. “Infelizmente, há aprendizados que ficam restritos a campos específicos. Muitas pessoas não conhecem ou acreditam que tais críticas restringem-se à adoção do termo na prevenção da AIDS”, afirma Gabriela. “Acabamos de ver, no entanto, sua adoção no enfrentamento à COVID-19 e, mais uma vez, processos de estigmatização e discriminação de idosos, jovens e trabalhadores das camadas populares.”
Para Vanessa Campos, as principais lições oferecidas pela epidemia de HIV/AIDS no atual contexto de COVID-19 apontam que segregar as pessoas em “grupos de risco” não produz respostas efetivas. “A epidemia de HIV/AIDS nos mostra que todas as pessoas podem estar no mesmo mar revolto, mas em embarcações com níveis de segurança totalmente diferentes. Enquanto o olhar para a equidade não for priorizado continuaremos produzindo mais desigualdades.”
“Um vírus não escolhe um grupo, mas sim pessoas que se expõem a infecções”, opina Rafuska. “Reafirmar e utilizar essa expressão reforça uma culpabilização que, já temos a resposta, não é a melhor forma de abordar sobre prevenção e cuidado para a população.”
*Leandro Noronha da Fonseca é mestrando em Letras pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS-CPTL), especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC-ECA-USP) e autor da pesquisa “HIV/Aids e narrativas pós-coquetel na poesia contemporânea brasileira”. Jornalista, escritor e integrante do grupo artístico Coletivo Contágio.
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