“Quando você cozinha, você se torna independente!”. Assim começou minha conversa com Abigail quando comentei que há meio ano morando sozinha e estava me descobrindo na cozinha. Nas minhas mãos, uma tigela, e nela, uma porção de feijão com almeirão, um pouco de quibebe de abóbora, farinhas de vários tipos. Quis pegar um pouco de cada um para ter vários gostos e texturas na boca: fubá, farinha de mandioca torrada e em grãos grossos, flocos de milho e de tapioca. A cumbuca exalava um perfume que me lembrou a Índia, ainda que nunca tenha estado lá. “O que tem aqui que me lembra comida indiana?” Abigail me revelou: era uma pitada curry. De sobremesa, paçoca caseira com leite de amendoim. Preparados para nós, os pratos evocavam memórias em todos.
Abigail e sua filha, Isis, tocam o Menina Brasileira, que leva comida e história a muitos lugares. A ocasião de estarem aqui no Sesc São José dos Campos era a oficina “Cozinha de Raiz: Histórias e Cultura no Prato”, parte da programação do especial Experimenta!, na qual nos apresentaram as belezas, gostos e texturas de alimentos e pratos típicos do Vale do Paraíba: farofa de içá, jacuba, fogado, virado à paulista, pra citar alguns. Mas a história delas com a comida vem de bem antes.
Com a fala calma, Isis conversa comigo por detrás de seus óculos, emoldurados pelos cabelos presos com uma faixa estampada. No corpo, um avental todo colorido, lembrando chita. Formada em biologia, ela descobriu durante a faculdade, vendendo quentinhas para o pessoal, sua vocação. Dizem que devemos ouvir os conselhos dos amigos e nada melhor do que ouvir aqueles que gostam da nossa comida. Ela resolveu fazê-lo e hoje a natureza está presente de outra forma: no prato, com comida sustentável e cheia das histórias que formam o povo brasileiro. Vegetariana desde pequena, com uma mãe macrobiótica, a comida sempre foi diferente das demais casas. Mas seu descobrimento na cozinha veio, no entanto, no cozinhar para o outro. Mãe jovem, era preciso balancear os alimentos para a filha, daí começou seu gosto. Com a filha mais crescida e comendo na escola, o momento é outro: o cozinhar para si mesma.
“Sempre tinha para quem cozinhar, para a família, para os amigos. Quando há mais pessoas você faz um repertório maior, pensa em todo mundo. Pra você mesmo você pode cair no “ah é só pra mim, pode ser uma coisa mais ou menos”. Mas não, pode ser uma coisa simples. Não preciso fazer um grande banquete, mas eu percebo o que eu estou sentindo vontade. É um processo mais individual, é você olhar só para si. É cuidar do meu templo, que é a minha casa, que é esse nosso corpo, nossa existência”. Isis fala isso citando um cuscuz com um molhinho, uma das “monorrefeições”, como chama os pratos que cozinha para si com o mesmo cuidado que cozinha para os outros.
Entre suas memórias afetivas, a comida da mãe vem à tona. O arroz integral, legumes cozidos, bardana, cenoura “refogadinha no shoyu”. Falando do mistério que era para a Isis criança o “Bolo de bolo”, que sua mãe fazia com frutas e castanhas, reencontramos Abigail.
A ascendência árabe é visível em suas feições e nos arabescos que tem tatuados no pulso e na orelha. Crescida em sítio, sua relação com a comida começa desde criança, pegando frutas e verduras da horta e do pé. Jovem, aos 17, descobriu a macrobiótica. “Pra mim a alimentação tem tudo a ver com a natureza, com a minha natureza, com a natureza humana. Cozinhar é uma alquimia. Ver a transformação das coisas. Tem esse ato de doação, de você cozinhar para outra pessoa ou mesmo para mim, me alimentar”. Ela fala dos pães que gosta de fazer e do fermento caseiro, que leva 12 longas horas pra ficar pronto e que têm a ver com o gosto por ver esse processo pelo qual o alimento passa.
Sorridente, ela mexe o feijão que cozinha seu perfume na grande panela, e que foi parar na minha e nas demais tigelas em conchas postas a quatro mãos. Assim como temos um tempo para dormir, para trabalhar, para namorar, Abigail pensa que devemos também ter um tempo para preparar o nosso alimento, ainda que a rotina seja corrida. “A cozinha é um lugar de transformação total”.
As grandes panelas, inclusive, são o símbolo do que é o cozinhar para Isis. “Eu gosto disso de ter que mexer o braço, de ter que ter um envolvimento físico, descascar mandioca, descascar abóbora”. Vê-se pelos gestos de sua mãe, mexendo a colher no caldo, da onde vem esse gosto. A filha lembra da moqueca de banana da terra, um prato que para ela remete a esse fazer. Ela fala do dendê, do colorido “bonito de ver”, que lembra festividade. Enquanto ela me contava, o imaginário cheiro do prato pairava no ar.
Mãe e filha, entre muitas outras coisas, têm em comum algo que talvez não saibam: o olhar antropológico para a comida. Seja por meio do Menina Brasileira, seja pelo modo como Isis observa as pessoas e como comem, seja pelas lembranças escritas que colhem do público que as prestigia ou pela transformação citada por Abigail. Como ela mesma disse: “o alimento mexe com a inteligência, sabe? De você querer experimentar outras coisas, sabores e isso acho que eu trouxe para a minha vida. De não querer ser sempre a mesma pessoa, fazer as mesmas coisas”. Um simples arroz branco ou uma moqueca de banana da terra pode dizer muito sobre o que somos. É preparando-os que podemos descobrir o que em nós se transforma quando a água começa a ferver.
Por Sofia Calabria, Editora web do Sesc São José dos Campos.
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