Cineastas, produtores culturais e psicanalistas falam sobre a importância da experiência na sala escura em nossas vidas – e de como a ausência dela nos afeta neste momento
Por Flavia Guerra e Thiago Stivaletti
Estamos há mais de um mês em quarentena. O isolamento social afeta o humor de todos. Há dias melhores e dias piores. E entre as tantas coisas de que abrimos mão, fica a pergunta: qual o tamanho da falta que sentimos do cinema?
O CineSesc pediu para que cineastas, produtores culturais e psicanalistas respondessem a essa pergunta. O psicanalista Diego Penha, doutorando na USP e especializado em cinema, lembra que o cinema é um fenômeno historicamente coletivo, assim como os circos, feiras e parques de diversões – e esse traço sobrevive até hoje na nossa experiência de entrar numa sala com estranhos. “Não existe uma pequena sensação de que entramos em uma sessão cercados de desconhecidos e saímos com alguns cúmplices? Talvez seja porque entramos estranhos uns aos outros, e saímos com uma experiência em comum“, observa. “Nessa experiência de comunidade, temos a circulação de importantes afetos que podem se encontrar embotados numa situação de isolamento social. Mas isso é um pequeno sacrifício justificável durante a pandemia que vivemos“.
Laís Bodanzky, diretora da Spcine – agência da prefeitura de São Paulo que fomenta a produção e exibição de cinema na cidade – e autora dos filmes “Como Nossos Pais” e “Bicho de Sete Cabeças”, também pensa que não existe substituto à altura da tela grande. “Ir ao cinema é sair de casa, é um evento completo. É o que você faz antes e depois de ver o filme. Ver o filme de uma forma coletiva, chorando junto, rindo junto. Lembro, por exemplo, da experiência de aplaudir um filme no final da sessão junto com toda a plateia. E olha que não era uma pré-estreia e não tinha ninguém da equipe do filme ali para ser aplaudido”, conta. Ela revela um outro motivo bem pessoal de preferir a sala escura ao filme em casa. “Minha poltrona é tão confortável que muitas vezes eu acabo dormindo! Já dormir no cinema é raríssimo pra mim, mesmo quando não estou gostando do filme“.
Se dormir no cinema não é a melhor opção, obviamente, sonhar é mais que recomendado. Graziela Marchetti, coordenadora de programação do CineSesc, vê o cinema como uma atividade muito próxima da produção de sonhos que realizamos durante o ato de dormir. Para ela, assistir a filmes numa sala escura leva a uma imersão que nos convida a mergulhar em histórias e ativar nosso imaginário sugerido por imagens e sons sedutores. “As associações que surgem a partir de cada filme não são produzidas apenas pela nossa consciência. E sim por mecanismos psíquicos mais amplos e profundos. Isso certamente nos ajuda a enriquecer nossa experiência subjetiva e social“, afirma.
Já o cineasta Gregório Graziosi, diretor de longas como “Obra” e “Tinnitus”, comenta que o cinema é uma experiência tão socialmente importante que gosta de não só ver o filme junto com a plateia como de observar a movimentação do cinema. “Assistir a um filme em casa é diferente de ver com um coletivo de pessoas que se prepara ao mesmo tempo para sentir e dividir as emoções simultaneamente. Eu sinto falta de ver a reação das pessoas ao saírem de um filme. Gosto de ir ao cinema e, enquanto espero a minha sessão, gosto de observar os rostos de quem acabou de ver o filme que vou assistir, de reparar como aquele grupo de pessoas reagiu ao filme, o que está estampado nos rostos, nas expressões, nas emoções, gostando ou não do filme“, conta ele.
Digital como aliado, mas sem substituir o cinema
Diretora da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre em outubro na capital, Renata de Almeida é otimista e lembra que, mesmo sem as salas, o cinema pode ser “um super companheiro” neste momento difícil de isolamento. “O cinema é o companheiro ideal mesmo para quem está enfrentando a quarentena sozinho. Enriquece a nossa vida emocional, nos faz viver outras vidas, ensina a nos colocar no lugar dos outros”, analisa. Ela conta que, há algumas semanas, ao tentar ver filmes em casa para a seleção da Mostra, não conseguiu se concentrar porque estava com a cabeça tomada pelas notícias da pandemia. “Mas em alguns dias isso passou, e eu voltei aos filmes justamente pela necessidade de sair um pouco dessa realidade dura“.
Graziela concorda com Renata: “Quem tem a oportunidade de frequentar salas de cinema, sabe o quanto essa experiência começa quando nos deslocamos na cidade e, muitas vezes, não tem data e hora certas para terminar. O cinema, nesse sentido, é uma experiência cultural e social. Porém, estamos vivendo um período de grande restrições sociais. E tudo isso faz com que as pequenas experiências ganhem mais importância. O cinema em casa ou as séries, em momentos de restrição como esse, podem sim cumprir com nosso desejo atávico por socialização. E por que abriríamos mão de chegar um pouquinho mais perto dessa experiência, ainda que projetada dentro de nossas casas? Creio que as séries e os filmes também podem nos ajudar a ter algum amparo social necessário“.
Para a produtora e programadora Anna Karina de Carvalho, de Brasília, a importância emocional de ir ao cinema é imensa e este hábito não é facilmente substituído. “É uma perda enorme não poder ir ao cinema; para muitos é a única maneira de socialização. Quantas vezes no Cine Cultura (onde Anna foi diretora de programação por oito anos) eu vi até pedido de casamento? Quantos aposentados podem ir sozinhos, mas conhecem pessoas que se tornam seus amigos? O impacto é muito grande e atinge a população de uma maneira bem brusca, tirando um hábito que é um dos mais acessíveis.” comentou Anna Karina. Ela também é diretora do BIFF – Brazilian International Film Festival, que realizou sua última edição toda online no final do mês de abril. Mas ela não abre mão do festival físico no cinema em 2021: “As salas nunca podem fechar. Não há nada melhor que um festival acontecer presencialmente, pois é um lugar de encontros, trocas muito ricas e necessárias. Que a gente nunca perca nossos cinemas, nossa interlocução com o público“.
Estou com saudades do cinema. O que devo fazer?
O cinema saiu de cena nesta fase de isolamento enquanto o streaming ganhou muita força. Se até a TV, aberta ou paga, se entregou às reprises por pura necessidade, é nos catálogos das plataformas que muita gente está se apoiando para buscar o seu entretenimento.
A psicanalista Maria Homem, que discute em seu trabalho questões ligadas ao cinema, à literatura e à subjetividade contemporânea, não vê concorrência entre diferentes mídias. “A literatura, o cinema, o contar histórias não morrerão jamais. Agora, o que eu chamo ‘cinema’ é a sala de cinema? É a sala de casa? É o clã reunido em volta da fogueira contando histórias?“
“Não sei dizer“, pondera. “O cinema enquanto sala entrará em crise, sobretudo em um mundo pós-pandemia? Talvez. Mas o ato de se deixar levar pelas peripécias dos inúmeros Ulisses e Penélopes que ocupam os catálogos ecléticos dos serviços de streaming seguirá firme e forte“.
No entanto, Diego Penha lembra que o maior inimigo da experiência fílmica em casa são as telas competidoras, sendo o celular a principal delas. Ao menor sinal de tédio, respondemos mensagens e checamos redes sociais. “A questão aqui é um mal uso do tédio“, diz, citando uma antiga teoria do psicólogo alemão Hugo Mauerhofer. Segundo ela, seria a sensação de tédio causada pela escuridão e pelo silêncio a chave que prepararia o espectador para um melhor mergulho na narrativa fílmica.
Francis Vogner dos Reis, crítico de cinema e coordenador do Festival de Tiradentes, concorda. Para ele, a concentração dentro da sala de cinema é um dos maiores ganhos trazidos pela sétima arte e o elemento que mais pode fazer falta durante o isolamento. “Com a internet e o streaming, a gente para as imagens, avança, abandona, retoma, vê trechos. O aparato tecnológico vira vítima da dispersão e da ansiedade. Na sala de cinema, pedimos uma moratória à ansiedade comum dos nossos tempos. É uma experiência da atenção concentrada, algo cada vez mais raro e fundamental“.
Já Graziosi encontrou uma forma criativa de ampliar a experiência de ver um filme em casa. “Uma estratégia que eu encontrei foi marcar um horário com as pessoas com quem a gente quer estar junto, mas que não pode encontrar por ora, para ver o filme ao mesmo tempo. É uma solução um pouco charmosa para a gente poder estar junto das pessoas que a gente gosta”, comenta. “E depois combinamos um horário para conversar online sobre o filme“.
Graziela, do CineSesc, sugere extrapolar as telas dos cinemas e de casa: “Para quem divide a casa com mais pessoas, fica ainda mais convidativo produzir algo em coletivo. Construir histórias e interpretá-las, leituras em grupo, edições de vídeo via app de celular. Tudo isso pode se relacionar com cinema e nos ativar o imaginário tão inspirado pelos filmes.”
Laís Bodanzky lembra que este é o momento de ir além das grandes plataformas tradicionais de streaming para buscar as pequenas que têm pipocado aos montes na internet. É o caso da Spcine Play, que reúne, além de inúmeros filmes brasileiros em documentário e ficção, belos destaques de festivais como o É Tudo Verdade e a Mostra Internacional de Cinema, tudo gratuito neste momento. Além de outras opções de plataformas que concendem degustação gratuita de 15 a 30 dias para que o usuário tenha contato com seus catálogos de filmes.
Para terminar, um convite feito pela psicanalista Maria Homem neste momento de isolamento. Basta seguir algumas regras bem simples para se sentir, nem que seja por duas horas, de volta ao cinema:
– Apague todas as luzes. Faça silêncio. Não converse no meio do filme. Não o interrompa jamais porque você não tem esse poder. É um projecionista que está agora operando a sala de cinema da sua casa.
– Respeite o mundo e o timing criado pelo filme. Suporte algumas poucas horas sem se deixar puxar pelo aterramento da falação infinita do celular ou dos outros que compartilham o espaço com você.
– Esqueça, só neste momento, a insistência do princípio da realidade que teima em te seduzir. Entregue-se ao filme. Qualquer que seja ele.
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