A importância da rede de apoio. Entrevista com Vanessa Ziotti, mãe de trigêmeos

01/02/2022

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Vanessa Ziotti (centro) com os filhos Bernardo, Benício e Lucas e familiares | Foto: acervo pessoal.

De acordo com o IBGE, 24% da população brasileira têm algum tipo de deficiência. Mesmo com dados mostrando que ocupam uma parte tão numerosa na sociedade, as pessoas ainda têm dificuldade de aceitar e conviver de forma respeitosa com as diferenças. A ação Cuidar de Quem Cuida, realizada pelo Sesc São Paulo, tem como objetivo sensibilizar e inspirar pessoas, comunidades e instituições sobre assuntos relativos às cuidadoras e aos cuidadores de bebês e crianças de 0 a 6 anos e às implicações do ato de cuidar. 

Vanessa Ziotti é mãe de Bernardo, Benício e Lucas, os trigêmeos de 3 anos e 11 meses com autismo, tem 32 anos, é advogada, diretora jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa e mora na região da Saúde, em São Paulo.

Em 2013, saiu de sua cidade natal, Ribeirão Preto, para procurar trabalho na capital paulista. “Vim para cidade sozinha, só com uma mala. Recém saída de um relacionamento abusivo, tive muito apoio do meu antigo terapeuta para fazer essa mudança de vida”.

Desde muito nova esteve envolvida em trabalhos sociais e, quando saiu à procura de uma atividade voluntária, encontrou o Redome, uma organização de registro nacional de doadores de medula óssea. Foi nesse ambiente de trabalho que conheceu o Gustavo, hoje seu marido e pai dos três meninos. Em um ano eles casaram e nesse período se organizaram para ter uma vida financeira adequada para a chegada de uma criança na família, com gastos de creche e convênio médico. Terminaram de pagar algumas pendências e colocaram toda a programação numa planilha. “A gestação foi planejada, a gente queria muito ser pai e mãe de um bebê. Era um desejo comum nosso”, conta. Gustavo, que também é advogado, ajudou na decisão de qual seria o momento para engravidar.
 

A Gravidez

No dia em que foi fazer a primeira ultrassonografia e soube que eram três bebês dentro da barriga, Vanessa conta que se desesperou. “Foi muito difícil, não fiquei feliz e todo mundo para quem eu contava, se admirava e dizia que era para eu agradecer por ser tão abençoada por Deus ter me dado três vidas ao mesmo tempo. Era uma espiral de culpa. Me sentia mal também porque sempre ouvi dizer que o melhor som do mundo é o do coração do bebê batendo dentro da barriga. E eu tenho péssimas recordações dos meus exames de ultrassom. Estava sempre muito tensa, nervosa, com medo da vida, de tudo. Não aceitava estar grávida de trigêmeos, eu queria só um bebê”. Vanessa conta que teve uma gestação fisiologicamente tranquila até o momento do parto. Tirando a falta de ar, diz que se sentiu muito bem fisicamente o tempo todo. O mesmo não aconteceu com sua saúde mental. “Minha cabeça não ficou legal. Me sentia muito culpada por não estar numa ‘fase de unicórnios e fadas’, fora a solidão de viver uma experiência que mais ninguém do meu convívio tivesse vivenciado”.

Grávida de trigêmeos, morando em um apartamento de 60 metros quadrados, Vanessa viu o controle da sua própria vida se esvaindo pelos dedos das mãos. “Eu não tinha família aqui em São Paulo, tinha só a minha sogra e meu sogro, mas não podia contar com eles porque já tinham seus compromissos. O que me salvou – e salva até hoje – foi a disponibilidade da minha mãe vir morar com a gente. Sem ela, não poderia fazer nada do que eu faço hoje. O pai dos meninos cumpre lindamente seu papel na paternidade, e isso não é rede de apoio. A minha rede de apoio real é a minha mãe”, conta.

O Nascimento e o tempo na UTI

Os meninos nasceram prematuros, no momento em que a gestação chegou em sua trigésima semana. Ficaram 90 dias na UTI neonatal e nesse período tiveram diversas intercorrências. “Eu não tinha paz. Me preocupava demais com tudo, mal dormia. Demorei meses para pegá-los no colo, não os vi quando nasceram. Foi uma experiência muito traumática. Tudo aquilo que eu tinha pensado para minha maternidade, além de não estar acontecendo, todo o resto ia ladeira abaixo”.

Outro fator que Vanessa relata como uma experiência complicada foi a de os meninos saírem do hospital em tempos distintos. “Além de tudo, os bebês tinham idades gestacionais diferentes entre si, Bernardo amadureceu mais rápido e saiu primeiro. Depois de um mês, veio Lucas para casa. E só depois chegou Benício. No período que estavam dois em casa e só um internado, não conseguia ir ao hospital com a mesma frequência que ia quando estavam os três”.

Hoje, Vanessa não tem receio em assumir e reconhecer o quanto sofreu. Conta que as pessoas se sentem envergonhadas e culpadas porque romantizam muito a maternidade, e que a sociedade teria que ter a responsabilidade de acolher a maternidade e junto dela os desajustes que causa na mãe. “O primeiro ano de maternidade foi o pior ano da minha vida. E todos esses anos, da gravidez até o terceiro ano dos meninos, foram tenebrosos para minha saúde mental. Desde então, é sobre isso que eu quero falar”

Falta de referência

Vanessa conta que sua maternidade nunca esteve nos livros, nem na internet, nem em lugar nenhum. Não teve referência nem na família, na qual por várias gerações houve casos de gêmeos, só que univitelinos. “Meu caso foram três bolsas, três placentas diferentes. Engravidei três vezes diferentes durante o ciclo, por isso as idades gestacionais deles são diferentes”, explica. Com Bernardo, Lucas e Benício em casa, acabou fazendo das recomendações médicas seu pior pesadelo. “Você tem que dar peito de 3 em 3 horas, se não mamarem, você precisa dar complemento alimentar. Se não aceitarem, vão ter hipoglicemia. Vão ficar doentes. Vão morrer. E eu sobrevivia ao meu próprio desespero de não acumular tanta culpa”

A realidade se desenhou dessa forma e Vanessa não pode escolher como lidar com a maternidade, que tipo de mãe seria. Foi uma imposição pela sobrevivência dos meninos e dela própria. “Quando tive que voltar a trabalhar, eu me sentia culpada de ter que fazer outra coisa que não fosse cuidar deles. Depois, me senti culpada por não estar trabalhando direito. Dessa forma, fui me perdendo dentro de mim e percebendo que aquela depressão desenvolvida durante a gestação só se agravava”.

Sinais de comportamento

Se já tivesse, na época, todo o conhecimento adquirido durante esses anos, Vanessa conta que teria desconfiado de autismo nos primeiros dias de Bernardo em casa. O bebê rejeitava o peito, o colo e a presença da mãe. Chorava sem parar. Nada despertava sua atenção. Suspeitaram que tivesse alguma perda auditiva, mas era só desinteresse pelos estímulos, pois o exame de audição não acusou nenhum dano.

Os trigêmeos já tinham um ano e meio e ainda não falavam nada, nem interagiam entre si. “Eles chegavam a tropeçar uns nos outros, como se o corpo do outro fosse um objeto inanimado e inexpressivo, uma cadeira, o pé de uma mesa. Não existiam relações entre os três”. Depois de receber o diagnóstico dos filhos, Vanessa diz que sua primeira experiência de acolhimento afetivo coletivo foi o Lagarta Vira Pupa, um projeto formado por mães de crianças com deficiência. “É uma equipe de mulheres incríveis, completamente comprometidas com a luta anticapacitista* e contra a idealização e a despersonificação das mães e de pessoas com deficiência”.

*o termo se refere ao preconceito a pessoas com deficiência, ligado à ideia de que elas não são capazes de fazer determinadas atividades

Escola

Bernardo, Lucas e Benício frequentam uma creche municipal. As professoras e toda equipe pedagógica, segundo a mãe, são incríveis e o convívio com outras crianças é fundamental para o desenvolvimento deles

Cansaço

“Passo a maior parte do tempo não querendo ser mãe. Preferia ser madrinha, tia, vizinha, amiga da família. E isso não tem nada a ver com falta de amor. Amo muito meus filhos e jamais abriria mão deles”, desabafa Vanessa, e diz que a sociedade precisa parar de romantizar a maternidade, atribuindo culpa às mães que assumem não estarem dispostas e nem amarem a maternidade em tempo integral.

Condições favoráveis na pandemia

Dentro disso tudo, a mãe do trio de meninos assume se sentir favorecida social e economicamente em relação a outras mulheres. “Reconheço os meus privilégios por ser uma mulher branca, cisgênero, heterossexual, com curso superior, pós-graduação. Mantive meu emprego e meus ganhos durante a pandemia. Tenho minha mãe que me ajuda muito e meu marido cumprindo muito bem o exercício de pai. Existem muitas mães que vivem situações semelhantes à minha e não têm nenhuma dessas condições asseguradas!”.

@amaedostrigemeos


A rede de uma mulher é sempre outra mulher

Sobre ativismo e feminismo, Vanessa comenta: “A nossa cultura machista sugere que as mulheres não se gostem, que se vejam o tempo todo como ameaça ou risco, que se sintam dispostas a competir entre si, quando, na verdade, temos que fazer o contrário. Temos que enxergar outras mulheres como espelho e ter um olhar de generosidade e de empatia. Quando precisamos sair para trabalhar e chamar alguém para fazer o trabalho doméstico, é uma mulher que nos atende. Quando não temos com quem deixar os filhos e procuramos ajuda, é uma mulher que nos acode”

“Autismo virtual”

É comum ouvir esta expressão e Vanessa atribui ao fato de as pessoas quererem achar algo ou alguém para culpar ao invés de investigarem os comportamentos que estranham entre as crianças: “Fulano está virando autista de tanto que fica no celular”. A dificuldade é tanta de aceitar que talvez aquele ser humano pode ser diferente, que acaba encontrando um jeito mais fácil de justificar o comportamento que vê como desagradável, e passa a culpar o celular, o videogame, a televisão, ou qualquer outro aparelho ou brinquedo eletrônico.

Autismo tem cura?

Para alguém deixar de ter autismo, esse alguém teria que nascer outra pessoa, porque ela tem um desenvolvimento atípico neurológico. “O problema é que a sociedade não acolhe o autismo, e todo mundo fica com uma ideia de acabar com o que causa incômodo, ao invés de fazer o simples exercício de não se incomodar com o diferente. A aceitação do neurodiverso precisa ser uma realidade”.

(Auto)cuidado e (auto)acolhimento

Mães precisam de um momento para destinar a si próprias os cuidados que vão para os filhos na maior parte do tempo. “Não deve ser vergonha uma mãe dizer que está cansada dos filhos e que deseja um período de folga. Seja vendo um filme, fazendo alguma atividade física que gere prazer, se cuidando, fazendo unha, cuidando do cabelo, ou simplesmente dormindo. Não tem regra, cada mãe tem o direito de escolher se distrair e cuidar da saúde mental longe dos filhos da forma que lhe der mais sensação de prazer e alegria”, sugere Vanessa.

Afinal, qual cuidar é ideal?

Acompanhe nossos posts sobre neurodiversidade durante o mês de abril de 2021, clique aqui.
 

Entrevista por Tatit Brandão – formada em jornalismo, tem licenciatura em artes visuais e pós graduação em Arte na Educação. Ministra oficinas e cursos nas áreas de fotografia, trabalhos manuais, escrita criativa e narrativas audiovisuais.

Veja mais sobre o assunto aqui.

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