Para a pessoa LGBTQIA+, um dos momentos mais significativos de sua trajetória é se assumir para sua família. Nesta ocasião, ela já se aceitou e deseja liberdade para ser quem realmente é. Porém, a partir disso, surgem as mais variadas reações dos pais e familiares: aceitação, amor, choque, raiva, violência.
De acordo com o relatório organizado pelo Grupo Gay da Bahia, do total de mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ que ocorreram em 2020, 23,50% foram na residência da vítima, um local que deveria ser de acolhimento. Mesmo que a LGBTfobia seja considerada crime pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando praticada dentro de casa, acaba tornando-se mais complicada a denúncia de familiares próximos, como pais e mães, e a vítima se vê sem ter onde buscar refúgio.
Diante da realidade desse processo sensível, o projeto do Sesc Santo André, “À minha mãe e ao meu pai, com orgulho”, convidou o público a contar suas histórias do momento em que se assumiram LGBTQIA+ para seus pais ou familiares. Os relatos resultam em experiências e emoções diversas, tanto de amor e acolhimento, quanto de dor, mas o sentimento de orgulho por serem quem são e lutar pelo direito de amar está presente em todas as narrativas.
Por meio de ações programáticas variadas e intervenções artísticas, “À minha mãe e ao meu pai, com Orgulho” celebra a identidade LGBTQIA+. “É uma homenagem a todas as histórias, de todas as pessoas que um dia tiveram a experiência de olhar nos olhos de quem amavam para viver uma vida de afeto e verdade. É também inspiração a quem ainda constrói a própria história. Experiências tristes ou felizes contribuem para nos dar mais visibilidade, nos lares e fora deles, e para uma sociedade mais justa, ciente e igualitária. Porque somos filhos, netos, irmãos, pais, somos parte das famílias e, se nos expomos, é para firmar o amor que sentimos e a que temos direito”, relata Fábio Justino, educadxr em Tecnologia e Artes do Sesc Santo André e idealizadxr do projeto.
Durante todo o projeto, um fio narrativo é construído, dando rumo às ações, que passam por vários pontos sensíveis da identidade LGBTQIA+ e a aceitação familiar. No país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, o projeto abraçou os relatos e os transformou, juntamente com os participantes, em arte. Outra camada da ação abordou o ponto de vista dos familiares que fazem parte da ONG Mães Pela Diversidade, que trouxeram apoio e acolhimento, mesmo que virtual, para aqueles filhos que não são acolhidos por seus próprios pais. Por fim, essas duas pontas se entrelaçam nos nós dos bordados do artista Julian Campos.
MURAL À MINHA MÃE E AO MEU PAI, COM ORGULHO
O projeto iniciou em outubro de 2020, convidando o público a enviar ao Sesc um texto contando como foi a experiência de assumir-se LGBTQIA+ para seus pais, mães ou qualquer outro familiar que assumisse esse laço dentro de suas famílias.
Dos relatos iniciais recebidos, a equipe de curadoria extraiu palavras e frases que viraram um grande mosaico e, estampadas, se transformaram em um universo de microcrônicas. O mural está instalado no Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Santo André e foi inspirado nos lambe-lambes, uma vertente das artes de rua, e conta com 74 frases selecionadas pela força de suas mensagens e a representatividade que revelam a partir de cada história única. O mural e a intervenção de bordados estão disponíveis para visitas gratuitas na unidade.
As frases escolhidas simbolizam o ato de coragem de se assumirem para as pessoas mais importantes de suas vidas, com a esperança de aceitação e a possibilidade de rejeição. O alívio de poder contar quem se é misturado ao medo do que pode vir. “Este mural é mais que uma coleção de depoimentos. São microcrônicas, de vidas e lembranças, que guardam pessoas e afetos. Palavras que trazem abraços, sorrisos, choros e alívios. Histórias de reencontros, de recomeços entre mães, pais e filhos”, acrescenta Fábio.
Alguns autores dos relatos tiveram a oportunidade de participar do curso “Minha Vida: um conto”, com o escritor Marcelino Freire. Na oficina, realizada entre novembro e dezembro de 2020, o autor deu dicas e exercícios para que os participantes pudessem desenvolver contos, crônicas e poemas a partir de seus depoimentos iniciais. O resultado do curso originou também a ação “Registrar é Resistir: crônicas do orgulho”. Os novos textos viraram leituras dramáticas e foram registradas em vídeo, pelos próprios autores, com a orientação do Coletivo Bodoque de Cinema. Os textos brutos do início do projeto se transformaram em diferentes produções artísticas que podem ser conferidas em www.medium.com/comorgulho.
MÃES PELA DIVERSIDADE
Depois de ouvir os filhos, o projeto seguiu com os depoimentos, mas agora na versão das mães. Em “A Voz das Mães”, foram lançados vídeos de mulheres que integram a ONG Mães pela Diversidade, respondendo aos relatos que estão expostos no mural do projeto “À minha mãe e ao meu pai, com Orgulho”. Os vídeos, disponíveis no canal do Youtube do Sesc Santo André, trazem mensagens de apoio, empatia e acolhimento.
“Eu não vou me calar, eu vou defender o que eu acredito, não importa de quem seja, não é só o meu filho, são todos os filhos que estão por aí. Eu não vou ficar quieta, porque as pessoas têm o direito de ser quem elas são sem ficarem sendo questionadas, sem as pessoas ficarem discriminando, isso não está certo e eu vou batalhar junto com outras mães”, defende Alessandra Villac no primeiro episódio da série.
As mães também apareceram em “Aos meus filhos, com Orgulho“, relatando as experiências pessoais com seus filhos que se relacionam com a história da ONG. São histórias de acolhimento e afeto, que respeitam e validam a identidade LGBTQIA+ desde a infância e evidenciam a luta diária contra o preconceito.
Ana Paula é mãe de um garoto transgênero (pessoa que possui uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento) e encontrou na ONG um suporte para a luta conjunta pela aceitação e pelos direitos de seu filho e outras crianças, jovens e adultos LGBTQIA+. “Não tem medo da sociedade que supere aquele olhar, aquela alegria, aquela vontade de expressar, ele não tinha 5 anos e estava me ensinando que a gente não pode nunca se desrespeitar. Foi emocionante pra gente também”, relata a mãe no vídeo.
“Tire seu preconceito do caminho. Queremos passar com nosso amor!”, esse é o slogan da Mães pela Diversidade, uma organização não governamental fundada com o objetivo de dar visibilidade e acolhimento às pessoas e às famílias de pessoas LGBTQIA+. A ONG apoia e promove ações que atinjam seus objetivos, além de prestar serviço jurídico e social. É uma das maiores organizações de apoio à causa LGBTQIA+ do Brasil e teve uma atuação fundamental no projeto.
ORGULHO BORDADO
Ao artista Julian Campos foi dada a missão de juntar as duas pontas do projeto: o depoimento dos filhos e o relato das mães. O resultado foi o painel Orgulho Bordado, que reuniu mais de 90 bordados organizados em conjuntos e dispostos como intervenção no Espaço de Convivência e no Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Santo André.
O objetivo de Julian era construir imagens dos relatos do projeto a partir de bordados, de uma forma que os textos não sejam simples legendas e a sensibilidade das palavras transformem-se visualmente dentro da técnica. Em 3 meses de trabalho, ele contou com uma assistente muito especial: sua própria mãe. “Trabalhar com essas histórias tendo a minha mãe como a minha ajudante, acrescentou mais uma camada de história dentro das histórias”, relata o artista, que utilizou uma variedade de materiais, cores e estampas para produzir as 130 peças que compõe a intervenção.
Julian tem muito orgulho de ter participado do projeto e de transformar os relatos de vida contados em outra forma de representação: “Eu fico muito feliz de ter ajudado a colocar essas histórias no mundo através do meu trabalho com bordado, essas histórias já existiam de muitas outras formas e essa foi só mais uma contribuição minha para que elas sejam vistas”. Sejam vistas, lidas, sentidas e interpretadas, cada um à sua maneira, com sua própria trajetória.
Julian Campos é artista visual e ilustrador. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Santa Cecília, de Santos, realiza trabalhos em diversas técnicas que prezam o fazer manual, como gravura, bordado, cerâmica e colagem, tendo o desenho como assunto e linguagem artística sempre presente em sua produção. Tem participado de exposições, mostras e salões de artes no Brasil e no exterior com sua produção voltada à linguagem gráfica – gravura, desenho, bordado e livro de artista. Reside em São Vicente, SP.
COM ORGULHO
Toda a trajetória do projeto, com as crônicas produzidas pelos participantes e seus vídeos depoimentos, os vídeos das mães e fotos dos bordados pode ser acessada pelo site www.medium.com/comorgulho. A rede social abriga textos, oferece mais conteúdos sobre os temas, concentra todas as ações em ordem cronológica e possibilita visita virtual ao mural.
“Assumir-se LGBTQIA+ pode significar muito. Qual a sua história?”. Foi assim que tudo começou. Os relatos iniciais, ainda tímidos, se transformaram em mural, crônicas e vídeos, foram abraçados pelas mães e tudo se interligou feito as linhas dos bordados. O projeto trouxe diversas ações programáticas e importantes reflexões sobre como a questão LGBTQIA+ é vivenciada nos lares, desde a revelação aos pais a como os processos vão se construindo a partir deste momento.
Exaltar com orgulho a identidade LGBTQIA+ é apoiar não só o direito de amar, mas uma luta pelo direito de existir e pela vida das pessoas, que mesmo diante da homofobia e da situação desanimadora e alarmante do país, resistem. O projeto valida as trajetórias de pessoas LGBTQIA+ e se mostra como um espaço de apoio. “Que ‘À minha mãe e ao meu pai, com Orgulho’ traga alento a quem busca, coragem a quem precisa e empatia a quem nem sabe que deseja. Porque não é um armário que a gente abre, é o coração”, conclui o idealizadxr do projeto, Fábio Justino.
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