Foto: William Galvão
Por Simões Neto*
Seduzir: verbo transitivo direto que significa “convencer com arte e manha, persuadir com astúcia”. Não há quem tenha dois dedos de prosa com a artista Lotus Lobo que não se sinta seduzido pelas suas histórias, pelo seu jeito mineiro de falar e o modo como discorre, com leveza, sobre impressões cunhadas em materiais tão brutos e pesados como as pedras; cortantes, como os flandres; e ásperos, como os papelões.
Assim como não existe a mínima possibilidade de se falar sobre litografia brasileira sem encontrar, no caminho, o robusto nome de Lotus Lobo: mulher, mineira, forte e ícone no seu ofício e do seu tempo. Dá orgulho vê-la em atividade, com quase 80 anos, repleta de ideias e pronta para ensinar ao mundo “um trem, como se diz em Minas” de lições sobre longevidade, inteligência e sensibilidade no fazer manual.
A entrevista que você lê foi inteiramente realizada por um aplicativo de mensagem, o que mostra o quanto Lotus está atenta às tecnologias que a cerca. Mas, como pergunta Luciano Gusmão, no texto de 1970 presente no catálogo da mostra, “uma velha técnica de impressão, como a litografia, pode vir a ser uma nova técnica de imagem?”. Ele diz, nas linhas seguintes, que “a novidade é uma questão de estrutura, um modo previsível de arranjar as coisas”.
E, nesse quesito, Lotus é mestre: “a litografia é uma técnica tradicional e inesgotável. No entanto, é a sua estrutura e a sua construção, como artista, que torna a coisa atual. Hoje, consigo estruturar meu pensamento em trabalhos digitais, inclusive com alguns em exposição em ‘Fabricação Própria’”, diz a artista. O que se vê na mostra é fruto de uma bela história de vida, alinhavada entre Belo Horizonte, sua terra natal, e passagens marcantes por Tiradentes e São João del-Rei (MG).
Pai e mãe, ouro de Minas, coração, desejo e sina
Ela diz que a grande influência de sua carreira foi a família. “Os meus pais eram de São Paulo. Ele, Waldomiro Lobo, músico popular. Ela, Eugênia Bracher, cantora lírica. Nasci em Belo Horizonte e vivi muitos anos aqui (Lotus mora na capital mineira até hoje). A minha passagem por São João Del-Rei foi em 1963”, diz a litógrafa ao instigar a nossa imaginação e continua: “fui com meus primos, durante a Semana Santa, pintar e desenhar. Nessa época eu tinha 20 anos. Lá, eu conheci o João Quaglia, um baiano, que já havia estudado na Europa. Ele casou com uma moça de São João Del-Rei e morava lá. Descobri que ele era litógrafo”, relata o primeiro contato da artista com o que seria a sua profissão.
Desse período de formação, Lotus diz que sua carreira foi permeada por impulsos de mudanças e descobertas. “Frederico, irmão mais jovem da minha mãe era pintor e todos os sobrinhos queriam aprender pintura: fui também. Eu estudava no Instituto de Educação para ser professora. Nesse período, conheci a Escola de Guignard (de Alberto Guignard, pintor e professor, que ficou famoso por retratar paisagens mineiras). Na época, a escola funcionava em um prédio em construção do Palácio das Artes, mas as obras paralisadas. Então, achei que seria mais avançado estudar na Escola Guignard (1961), onde lecionaria, mais tarde, durante 30 anos, e deixei de lado as aulas do tio Frederico. E isso me levou a trazer o João Quaglia para lecionar lá também, que foi meu primeiro professor (1963)”, detalha a artista.
“Sobre minha passagem por Tiradentes, conheci a cidade nos anos 1960, mas só em 1980 eu fui convidada a dirigir uma casa de gravura na cidade. Então, morei durante sete anos, onde realizei um trabalho intenso e trago lembranças inesquecíveis”.
As pedras e a litografia
Para conhecer Lotus Lobo é preciso saber que seu contato com a impressão em pedras deu-se por um acontecimento casual “e que eu não imaginaria que seria um norte para a minha vida inteira”, relembra. “Com a influência do João Quaglia, eu já era ligada à litografia. O Palácio das Artes estava em construção e eu, curiosa, percebi que havia, no porão, uma sala sempre fechada. Mas, um dia, ela abriu e estava sendo guardada por um moço chamado Natalício que me perguntou: você quer aprender? Eu disse: o quê? Tinha uma prateleira cheia de pedras e prensas litográficas, eu não conhecia esse material”, diz.
“Foi quando ele me apresentou os primeiros rudimentos e meu interesse só cresceu. A pedra, em um certo sentido, me aprisionou, porque continha nela imagens da antiga Imprensa Oficial. Então, quando eu fecho os olhos (sorrisos afetivos no áudio), eu vejo muito essa cena que mudou o meu futuro”, emociona-se.
Produção coletiva em volta do processo
“Fazer litografia sozinha é muito difícil (risos). Eu, no princípio, com 20 anos, trabalhei só: granitava, desenhava, gravava e imprimia a pedra. Mas, quando se tem prensa e pedra, sempre tem um grupo de pessoas que se junta em volta do processo. Eu sou professora também, fui da Escola Guignard quase 30 anos, também montei o atelier e trabalhei dois anos na Universidade Federal de Minas Gerais. Então, eu sempre tive um contato coletivo a partir do meu grupo de alunos, porque eu amo ser professora”, diz.
Lotus se enche de orgulho ao dizer que muitos deles se tornaram grandes artistas e que até hoje a acompanham. “Na exposição no Sesc Pompeia, por exemplo, está comigo o Ângelo Marzano. Inclusive ele assina o filme superoito que faz parte da mostra”, lembra e arremata: “o fato é que fazer litografia é um ato coletivo”.
Vasta criação para embalagens de manteiga, biscoitos, fumo e banha
No decorrer de sua intensa produção, a artista constituiu um importante acervo de pedras litográficas, matrizes em zinco e embalagens em folha de flandres da Estamparia Juiz de Fora, Minas Gerais, das décadas de 1930–1960. “Em suportes como pedras, papel, plástico, acrílico e folha de flandres desenvolvi desenhos de antigas marcas de produtos alimentícios: manteiga, balas, biscoitos, fumo e banha”, relembra.
O acervo foi tornando robusta a sua coleção iconográfica na produção de obras de diversos períodos de sua trajetória artística. Essas experiências, inauguradas nos anos 1970, foram importantes na construção discursiva de Lotus e reverbera na sua produção contemporânea.
Não é à toa que os trabalhos de Lotus Lobo figuram nos acervos das Coleções Públicas dos principais museus brasileiros: do MAP de Belo Horizonte aos Museus de Arte de Salvador, Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. Seu trabalho intenso gerou mais de trinta exposições individuais do período de 1962 a 2018.
E sua participação na X Bienal de São Paulo, em 1969, foi icônica: Lotus Lobo foi contemplada com o Prêmio Itamaraty ao exibir três objetos-gravuras manipuláveis pelo público.
Simbiose entre a memória e a atualidade
Lotus diz que existe interação o tempo todo entre a memória e o novo. “Elas se encontram a todo instante. Com respeito à memória ou utilização de marcas antigas eu sempre tive um interesse histórico em recolher esses desenhos que vinham nas pedras. O processo exige um polimento antes de estampar o desenho”, conta. “Eu tenho realmente um acervo gigantesco de imagens de todas as pedras que já passaram pela minha mão: mais de 1.000 exemplares. Atualmente, possuo quase 120 restauradas e que não foram impressas. Inclusive, algumas estão presentes em ‘Fabricação Própria’. Eu sempre gostei disso”.
A artista lembra ainda que expor essa riqueza de fazeres manuais ficou mais forte depois da parceria com o curador Marcelo Drummond. “Ele é atento e inteligente e vem aprovando essas minhas ideias. Marcelo me deu uma extensão e visibilidade nas propostas de curadoria e temos abraçado essa missão com muito fervor”, finaliza.
* Simões Neto é jornalista, especializado na cobertura de Arte, Design e Arquitetura.
Serviço
? Fabricação Própria – Lotus Lobo
? 14/10 a 30/01/2022
⏰ Funcionamento: Terça a sexta, das 14h às 20h. Sábados, domingos e feriados, das 11h30 às 17h30
? Grátis | Classificação indicativa: livre
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