Foto: Rogério Vieira
Por Jeremias Brasileiro*
Eles estão chegando, o alvoroço na rua é deslumbrante, os sons invadem os becos, as casas, os ares, ajuntamento de negros pelas vielas, “nunca se viu tanto negro! São congos, moçambiques, mojolos, minas, quiloas e benguelas, cabindas e rebolos”, com suas congadas, seus reis congos, a desfilar pelas ruas coloniais do Rio de Janeiro no início do século XIX. É assim que o memorialista Luiz Edmundo (1956), relata por meio de um poema coreográfico, a realização de um préstito de Congada, festejo anual comemorado naquele século, no período colonial. É com esse viés que Nina Rodrigues também menciona no mesmo período, a coroação de reis negros denominados então de Reis Congos por serem em sua maioria compostos de escravizados e oriundos dos povos bantos.
Muitos creditam a Mário de Andrade ter sido um dos precursores das pesquisas etnográficas que contemplaram as manifestações da Congada. Mesmo emitindo alguns juízos de valor a respeito desses festejos no interior paulista, ele reuniu um extenso material etnográfico que se tornou fonte de investigação para muitos estudiosos da cultura popular. Mas é com Alfredo João Rabaçal que surgirá um trabalho de fôlego, um escopo do início da historiografia da Congada no Brasil. A coleta de dados para constituição de seu trabalho, teve início no final da década de 1959, utilizando todos os referenciais bibliográficos disponíveis à época.
O que torna o trabalho de Alfredo Rabaçal em certo sentido um clássico, é sua capacidade de articular a presença temporal e espacial dessas práticas em diferentes épocas e em mais de uma dezena de estados da federação, compreendendo um período que vai dos fins do século XIX (1880) a meados do século XX (1960), esboçando um panorama dessa manifestação cultural e religiosa no Brasil, revelando a presença de um universo cultural da Congada constituída de realidades bastante heterogêneas.
Mesmo sob um cenário de existência escravista, os africanos celebravam a vida como sabiam fazê-lo, e nesses momentos se libertavam dos brancos e de suas maneiras de ser. A gestualidade corporal impregnada de ressoar de tambores também perturbava os senhores e por isso, o Congo, o Congado, as Congadas eram, e, continuam sendo, as mais vivas representações dessas resistências seculares.
Entende-se aqui a terminologia Congo como aquela que suscita, revivifica, capaz de redimensionar no presente, uma memória de antepassados, uma memória cultural proveniente dos povos “bantos” oriundos de algumas regiões do antigo Reino do Congo, entre as quais situavam a província de Angola e outros reinos com seus reis e rainhas. Daí porque ao reviverem essa memória cultural, os escravizados instituem no Brasil não a concepção de reinos, mas de várias formas de “Reinados” celebrados através de embaixadas que na literatura será mais conhecida por meio de danças dramáticas ou Congadas.
Quanto a um dos conceitos de Congadas utilizado em larga medida pelos próprios praticantes da manifestação, é uma conceituação associada às rememorações de reinados africanos por meio de festejos, festas, festividades, onde estão incluídas as procissões, coroações, desfiles de apresentações de Grupos, Guardas, Bandas ou Ternos; novenas, novenários, missas campais, almoços coletivos e outras atividades ligadas ao contexto da festa e a expressão denominada de Congado, é compreendida como uma prática de organização sociocultural cotidiana dos grupos, uma manifestação cultural e social que acontece no decorrer do ano, independentemente da data em que se realiza as festejos congadeiros.
Desse modo, identifica-se igualmente em um mesmo objeto com nomenclaturas diferenciadas, modos distintos de representações. O congo como lugares de memórias alicerçadas em um passado distante, de antepassados, de ancestralidades; a congada, como lugar de cultura popular por meio das manifestações festivas, religiosas, culturais, uma tradição em permanente transformação, e, o Congado, enquanto lugar de experiências socioculturais cotidianas.
Essa manifestação cultural e religiosa atravessou a temporalidade dos séculos, permeada de ancestralidade em conexão com o presente e apontando para o futuro, de tal sorte que ela está vivíssima em grande parte do território brasileiro e em Minas Gerais passam de mil grupos reconhecidos, com suas festas da Congada que ocorrem o ano todo, de janeiro a dezembro. É por isso, uma das práticas culturais mais completas do Brasil, pois é capaz de agregar em um mesmo espaço temporal, uma pessoa de cem anos, junto a uma criança de 05 anos, anciãos e jovens, mulheres de todas as idades, compõem esse mosaico cultural que é um verdadeiro arco íris de fé e resistência cultural afro-brasileira.
*Jeremias Brasileiro é doutor em História social pela Universidade Federal de Uberlândia.
—
Para saber mais clique aqui.
Utilizamos cookies essenciais, de acordo com a nossa Política de Privacidade, para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando, você concorda com estas condições.