O Vale do Ribeira sempre foi um celeiro de escritores, poetas, jornalistas e outros artífices da palavra. No rol desses talentos valerribeirenses, salienta-se a figura inconfundível da poetisa Adélia Victória Ferreira, que teve respeitável projeção nos meios culturais da Capital do Estado.
Nascida na cidade de Sete Barras (SP), Vale do Ribeira, no dia 17 de novembro de 1929, Adélia era filha do casal João Lucas Ferreira e Olinda de Souza Ferreira, sendo irmã de Lília Maria Ferreira Costa, Judith E. Ferreira Reis e Maurício Lucas Ferreira.
Por volta de 1937, quando Adélia tinha 7 anos de idade, a sua família se transferiu para a cidade de Mairinque (SP), onde a futura poetisa fez o curso primário.
Adélia começou a trabalhar aos 10 anos de idade. Aos 14 anos, já demonstrando o seu talento para as letras, foi correspondente do jornal “Cidade de S. Paulo”.
Em 1948, aos 17 anos, residindo em Mairinque com a família, tendo apenas o primeiro grau escolar, Adélia decidiu fugir de casa, motivada pelo desejo de estudar Direito, com o que o pai não concordava. Tabelião, ele queria a filha no cartório, trabalhando a seu lado. Sem auxílio de quem quer que fosse, Adélia venceu, com muito esforço e dedicação, as vicissitudes que se colocaram em seu caminho.
A ADVOGADA
Estudando por conta própria, desde a adolescência, Adélia fez o Curso Clássico no Colégio São Joaquim, em São Paulo, formando-se em Latim, Grego, Espanhol, Inglês e Francês.
Cursou o Ginásio e o Colégio também em São Paulo. Depois de muito estudo, conseguiu passar no vestibular de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco (Universidade de São Paulo), realizando, assim, o grande sonho de sua vida. Iniciando o curso em 1952, aos 23 anos de idade, Adélia bacharelou-se em Direito, num dos primeiros lugares, com a turma de 1956, colando grau no dia 23 de janeiro de 1957.
Entre os colegas de Adélia elencavam-se alguns jovens que, mais tarde, teriam grande destaque nos cenários paulista e nacional: Luiz Carlos Santos (1932-2013), advogado, ministro e articulador político; Rubens Approbato Machado (1933-2016), advogado tributarista; Mário Chamie (1933-2011), advogado e poeta, criador da poesia práxis; Umberto Luiz D´Urso (1925-2014), advogado e professor, pai de Luiz Flávio Borges D´Urso, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB-São Paulo.
Por seu destaque na Academia, Adélia foi contemplada com uma bolsa de estudos de três meses na Alemanha Ocidental, com visitas às universidades das cidades de Colônia, Bonn, Frankfurt, Darmenstad e Hidelberg.
Ao mesmo tempo em que estudava, Adélia se desdobrava em vários empregos. Por dez anos, trabalhou na televisão e no teatro como atriz dramática, apresentadora, locutora etc.
Trabalhou também na Aeronáutica e no Jockey Club de São Paulo, como secretária da diretoria, e depois como procuradora jurídica.
Em 1969, numa volta ao mundo, conheceu vários países: França, Tchecoslováquia, Rússia. Estados Unidos, Japão, China, Hong Kong, Tailândia, Índia, Irã, Turquia, Grécia e Itália. Viajou também à Argentina e Uruguai. Na Rússia, dançou dentro do Kremlim.
EMANCIPAÇÃO DE MAIRINQUE
Adélia Victória Ferreira participou ativamente da emancipação de Mairinque (SP), cidade onde viveu a infância e adolescência. A primeira comissão pró-emancipação foi criada em 1950, presidida pelo cidadão Victorino Viliotti. Faziam parte dessa comissão, entre outros Gastão Bussamara, Maurílio Pereira de Araújo, João Chesine, João Lucas Ferreira (pai de Adélia) e Arganauto Ortolani.
O deputado Lino Matos, ligado politicamente a São Roque (SP), trabalhou junto à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, mas, apesar do empenho realizado pela Comissão de Emancipação, da qual participava ativamente Adélia Victória Ferreira, a pretensão mairinquense foi derrotada, com 22 votos a favor e 32 contrários. Somente em 27 de dezembro de 1958 foi aprovado o projeto que criava 67 novos municípios, inclusive o de Mairinque.
Finalmente, com a Lei Estadual nº 5.285, de 18 de fevereiro de 1959, Mairinque foi elevada à categoria de município. Em 4 de outubro daquele mesmo ano ocorreram as eleições municipais para o mandato de 1960 a 1963. Para prefeito elegeu-se Arganauto Ortolani, tendo como vice José Francisco dos Santos (Zé Enfermeiro).
Para vereadores, os eleitores do novo município escolheram: João Lucas Ferreira (pai de Adélia Victória Ferreira), Luiz Zaparolli, Severino Simões de Almeida, Waldemar Pereira, Abel Souto, Antonio Cesar Netto, Ataliba da Silva, João Chesini, José Angelini, Orlando Silva e Raul Cavalheiro. O vereador João Lucas Ferreira foi eleito o primeiro presidente da Câmara Municipal de Mairinque, para o biênio de 1960-1961.
TEATRO
Quando ainda fazia faculdade, Adélia trabalhava em quatro canais de TV: Paulista (hoje Globo), Tupi, Record e Cultura. Como atriz dramática, estreou em “A Bela e a Fera”, com o conhecido ator Dionísio Azevedo (1922-1994).
Adélia teve atuante participação no Departamento de Teatro do Centro Acadêmico XII de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que encenou várias peças teatrais.
Em 13 de junho de 1953, estreava a pela “Eu já estive lá”, do dramaturgo americano John Boynton Priestley (1894-1984), com tradução de Daniel Rocha. Do elenco, participavam, além de Adélia Victória Ferreira, também Angélica Milena, Gildásio Pereira, J. J. Tanus, Paulo Hildebrando Barbosa e Rodrigo Rodrigues de Moraes. Direção de Evaristo Ribeiro, com cenários de Clóvis Garcia.
Em abril de 1955, era encenada a peça “Rosmersholm”, do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), no Teatro Leopoldo Fróes, em São Paulo. A produção foi do Departamento Teatral da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com direção de Evaristo Ribeiro. No elenco, Adélia Vitória Ferreira (que interpretou a personagem Rebeca West), Ophélia de Almeida, José Carlos Viegas, Sérgio Salém, Amim Abujamra e José Pacheco.
“Rosmersholm”, escrita e publicada em 1886, foi representada pela primeira vez em 17 de janeiro de 1887, no Den Nationale Scene, em Bergen, Noruega. Em 1893, voltou a ser representada no Théâtre de l’Oeuvre de Lugné-Poe, em Paris, transformando-se em representante do movimento simbolista francês. A encenação de 1955 foi a primeira apresentação dessa peça no Brasil.
O crítico teatral Mattos Pacheco, em sua coluna “Ronda”, do “Diário da Noite”, de São Paulo, em sua edição nº 9.290, de 27/4/1955, mesmo reconhecendo as deficiências da montagem da peça e das interpretações, escreveu que é “forçoso reconhecer que o fato de estudantes de Direito se animarem a fazer teatro, fazer logo Ibsen, mostra coragem, decisão, interesse por um Teatro de verdade, com T maiúsculo.”
Mattos Pacheco reconheceu a performance de Adélia: “Dos intérpretes, pelo menos uma, merece destaque especial, Adelia Victória foi quem mais se aproximou da sua personagem.” E concluiu: “Os estudantes de Direito estão de parabéns, não pelo ´Rosmersholm´ que fizeram, mas pela coragem, quase audácia, de montar Ibsen e se disporem a fazer Teatro. Devem continuar.”
A POETISA
Desde a infância Adélia escreveu poesias. Durante muitos anos publicou a sua produção poética nos jornais “Gazeta de Pinheiros”, “Gazeta do Butantã”, “O Dia”, “Diário Popular”, “Voz da Poesia” (do Movimento Poético Nacional) e “Fanal” (da Casa do Poeta de São Paulo, que dirigiu por vários anos).
Em 1978, publicou o seu primeiro livro, “Cantos de Amor à vida”, no qual reuniu todos os poemas que escreveu desde aos dez anos de idade. Não fez questão de que o seu livro de estreia fosse prefaciado por um notório poeta, por considerar ser constrangedor um pedido de tal natureza. Preferiu o julgamento “dos que, lendo a sua mensagem, venham a encontrar ou não alguma similaridade com seus próprios sentimentos e com a maneira com que os traduziram por escrito”,conforme lê-se na orelha do livro.
Após se aposentar em 1977, Adélia passou a dedicar-se inteiramente à poesia, arte que cultivava desde a mais tenra idade.
Em 1973, escreveu o “Hino à Lapa”, com música do maestro Victor Barbieri.
Em 1980, ao conhecer o poeta e trovador Izo Goldman (1932-2013), a poetisa estendeu o seu amor pelo soneto também à trova. Adélia é considerada uma das maiores sonetistas brasileiras, além de exímia trovadora.
Em 1983, escreveu o “Hino da Universidade Federal de Uberaba” (MG). Do concurso, participaram onze concorrentes, não havendo, no entanto, premiação.
Adélia pertenceu a inúmeras academias de letras nacionais e estrangeiras, sendo laureada com comendas, medalhas, troféus e diplomas honoríficos, além de centenas de prêmios literários. Foi uma figura de destaque em muitas antologias poéticas, jornais, sites e blogs.
Fez parte da Casa de Francisca Júlia e da Academia Eldoradense de Letras, entidades culturais fundada em 1978 pelo poeta João Mendes em Eldorado (SP). Na ocasião, Adélia declamou a fantasia poética “Reportagem sobre Francisca Júlia e sua terra” na inauguração da Casa de Francisca Júlia; e, também, o poema “À terra de Francisca Júlia” na inauguração da Academia Eldoradense de Letras.
CASA DO POETA
Em 7 de novembro de 1948, a poetisa Colombina, pseudônimo de Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein (1882-1963) e um grupo de poetas, fundaram a Casa do Poeta “Lampião de Gás”, considerada a mais antiga associação de poetas das Américas.
A entidade teve como presidentes desde então: Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein (1948-1963); Bernardo Pedroso (1965-1971); Antônio Lafayette Natividade Silva (1972-1977); Benevides Beraldo (1977-1979); Adélia Victória Ferreira (1979-1987); Aristóteles de Lacerda Júnior (1987-1989); Walter Rossi (1989 -2001); e Wilson de Oliveira Jasa (desde 2001).
Adélia presidiu a Casa do Poeta de 1979 a 1987. Após quatro mandatos sucessivos, renunciou ao cargo, sendo eleita presidente emérita e de honra da entidade.
CINQUENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO DE 1932
Em comemoração ao cinquentenário da Revolução Constitucionalista de 1932, o Museu da Imagem e do Som (MIS), de São Paulo, em 21 de julho de 1982, convidou várias personalidades para prestarem depoimento sobre o evento. Entrevistados pelo jornalista Augusto Benedito Galvão Bueno Trigueirinho, além de Adélia Victória Ferreira, participaram também Arnaldo Caleiro Sandoval, Pedro Oliveira Ribeiro neto e Léa Surian.
Adélia falou de sua infância em Sete Barras, de onde saiu com a família aos 7 anos de idade para irem morar em Mairinque (SP). Neta de agricultores de arroz, banana e cana-de-açúcar, filha de um pai que desistiu de sua herança para se transformar em um tabelião, que era o sonho da vida dele.
Adélia recordou-se de quando, aos três anos de idade, esvaziaram a igreja matriz de todos os seus santos para os guardarem em sua casa, a maior da cidade, para que os revolucionários fossem abrigados no templo. Em frente à sua casa, havia trincheiras, e essas imagens foram tão fortes que, apesar de sua pouca idade, ficaram gravadas em sua mente.
Aos cinco anos, quando o pai lhe perguntava o que ela queria ser quando crescer, a menina respondia: “Papai, eu quero ser advogada, eu quero ser doutora em Direito!”, apesar de não saber o que era isso. Ao que o pai voltava a perguntar: “Mas por que, minha filha?”. Adélia respondia: “Para defender o pobre contra o rico!”. E defender o pobre contra o rico era algo que ia contra a sua família, a mais abastada da cidade. Mas não era isso que Adélia queria dizer: ela queria defender os que não tinham forças contra aqueles que têm o poder, referindo-se, simbolicamente, aos revolucionários, que eram destituídos de armas e munições e de condições para lutar contra o governo de Getúlio Vargas, usando a sua inventividade para assustar o inimigo, que possuía todas as armas, “para vencer uma revolução que foi feita pelo coração e pela alma”.
Como pretendia deixar o seu cartório para a filha, o pai não permitiu que Adélia fizesse sequer o curso ginasial, temendo que ela seguisse o caminho que desejava. Sendo assim, a jovem, com apenas 17 anos, fugiu de casa e, em São Paulo, fez o curso de madureza, para, depois, frequentar o Colégio Roosevelt e ingressar na tão sonhada Faculdade de Direito. Assim foi a sua juventude, sempre baseada no ideal de dignidade humana do povo paulista, ideal que nasceu quando ela tinha apenas três anos de idade vendo as lutas da Revolução de 1932.
Por ocasião do depoimento, o jornalista Bueno Trigueirinho considerou AdéliaVictória Ferreira “a primeira dama declamadora de São Paulo, que aquecia os nossos corações quando fala, quando põe toda a sua alma dizendo essas coisas tão bonitas que São Paulo tem, a nossa poesia dos nossos grandes poetas.”
Com a sua voz firme e a dicção perfeita, Adélia declamou o poema “MMDC”, de sua autoria, em homenagem aos jovens que tombaram pela defesa dos ideais constitucionalistas:
MMDC
Miragaia, Martins, Dráusio, Camargo.
A história é assim
Não só a nós agora interessa.
É a história paulista escrita em sangue
E em nome de complexos ideais:
Democracia, constituição.
Fanais da liberdade,
únicos trilhos de qualquer paz,
qualquer prosperidade.
Martins, tua seiva corre em nossas veias.
Tu, Miragaia, louros depuseste
sobre a dignidade dos paulistas
Dráusio, implantaste em nossas mentes
a flama das intenções sadias
que baseiam o natural caráter firme e nobre
da brava gente de Piratininga,
que apenas dobra os joelhos reverentes
aos céus e àquele santo,
o padre Anchieta,
que a nossa história e Deus alicerçou.
Gente que aspira sempre ver brilhar,
no supremo concerto das nações,
este Brasil que, graças ao seu sangue,
suor, lágrimas, lutas e bandeiras,
com trépida bravura, transformou
num gigante a abarcar um continente.
Camargo exulta, ainda perseguimos
a mesma meta que nos apontou
o teu espírito audaz e democrático.
A nossa fibra se retesa diuturnamente
num labor constante,
mantendo sempre a aspiração que atua.
Tu, Alvarenga, ergue-te do olvido,
também tu deves repousar
no túmulo do herói reconhecido.
MMDC
A história é assim
E a história paulista, escrita em sangue
e em nomes de complexos ideais:
Democracia, constituição.
E agora vejam, heróis,
ela interessa não só a nós,
mas ao País inteiro quando
o edifício em que acomodou
o resto da nação tende a ruir em súbita implosão.
Mas São Paulo, paternal, estende as mãos,
como sempre estendeu,
para acudir a grandeza da Pátria.
E, agora, finalmente, vai se compreender
que a límpida razão estava com vocês,
e ao bandeirante, é certo, como sempre,
há de caber o peso maior,
mais exaustivo e desgastante
do pesadelo da reconstrução.
Texto: Roberto Fortes, morador de Iguape, graduado em Letras, escritor, poeta, historiador e jornalista.
*Esse conteúdo editorial faz parte da série online “Histórias Míticas do Vale do Ribeira” que integra a programação especial em comemoração aos 100 anos do prédio histórico do Sesc Registro, nominado “KKKK”, como ficou conhecido o conjunto arquitetônico instalado em 1922 pela Companhia Ultramarina de Desenvolvimento (de cujo nome em japonês -Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha- deriva a sigla dos quatro Ks). No canal do YouTube do Sesc, o público também pode acompanhar o processo de criação das ilustrações pelo artista Sávio Soares. Além de lendas e causos populares que povoam o universo da cultura tradicional regional, as publicações trazem também crônicas sobre locais, acontecimentos, paisagens e personagens históricos do Vale do Ribeira.
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