ALÉM DO DIVÃ | Entrevista com Vera Iaconelli

31/05/2022

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Leia a edição de junho/22 da Revista E na íntegra

PSICANALISTA E AUTORA DE LIVROS SOBRE PARENTALIDADE, VERA IACONELLI REFLETE SOBRE DESAFIOS E PARADIGMAS DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Nos últimos anos, redes sociais e outras plataformas digitais têm se voltado à psicanálise como uma ferramenta de autoconhecimento e compreensão das mudanças sociais que vivemos. Concomitante a esse cenário, uma grande quantidade de pessoas mostra-se interessada por essa área do conhecimento que nasceu na Europa, com a pesquisa e o trabalho do médico neurologista e psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939).

Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, Vera Iaconelli faz parte desse movimento de psicanalistas que reflete sobre o assunto e desfaz equívocos quanto ao conceito e à função da psicanálise. Em seu trabalho, a maternidade e a parentalidade já se desdobraram nos livros Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Zagodoni, 2ª ed., 2020) e Criar filhos no século 21 (Contexto, 2019).

“Está em jogo uma visão de que a sociedade ‘ajuda’ a mulher, assim como o marido ‘ajuda’ a esposa, e não que a sociedade é tão responsável pela próxima geração quanto qualquer cidadão. Então, a gente não vai ‘ajudar’ a mulher, nós vamos fazer a nossa parte, dividindo responsabilidades que são sempre da geração anterior em relação à próxima geração”, diz a psicanalista, que assina uma coluna no jornal Folha de S.Paulo e dedica-se, atualmente, ao próximo livro, a ser lançado em 2023.

Nesta Entrevista, Vera Iaconelli fala sobre parentalidade, hipervigilância nas redes sociais e sobre como a fruição cultural é necessária para manutenção da saúde mental e da qualidade de vida.

Nota-se um crescente interesse no país pela psicanálise, dado o número de perfis nas redes sociais, canais no YouTube, podcasts e outras mídias e a quantidade de seguidores. Qual seria o motivo para essa escalada de interesse?

Esse é um fenômeno complexo, porque a gente tem, por exemplo, no Brasil, uma escalada de interesse (pela psicanálise) e em outros países, um decréscimo. Tem algo que diz respeito à nossa relação com a psicanálise aqui, essa descoberta um pouco mais tardia em relação à Europa, que tem uma história própria. Quando a psicanálise é levada para a mídia e gera interesse é porque a pessoa que lê a respeito sente um alívio. Por exemplo: “Então, eu estou lutando comigo à toa”, ou “ah, então, é assim que funciona”. O psicanalista, quando é chamado a falar – e isso é recorrente para mim –, ele vai falar algo contraintuitivo, ou seja, ele sempre vai fazer um furo no discurso habitual e isso encanta as pessoas. É claro que a gente gosta de ouvir coisas do tipo: “A felicidade é um bem supremo que você conquista”, e muita gente consome esse discurso.

Porém, quando vem alguém e fala alguma coisa que é contraintuitiva e bate na sua percepção, que bate em algo que nem mesmo você reconhece, isso dá a você um ganho de consciência e lhe tira uma certa alienação. Isso é muito libertador e revigorante. Outra coisa que existe é uma curiosidade e, também, uma fantasia de que o contato com a psicanálise nas mídias bastaria para o sujeito se tratar. Como se a pessoa pudesse fazer um tratamento sem pagar o preço do atendimento, não só pagar a consulta, mas pagar psiquicamente, pagar todo investimento que há nesse trabalho.

Também observo uma confluência de fatores, como o reconhecimento de que a psicanálise trabalha essa outra coisa que ninguém mais fala e que traz muita liberdade, embora ali a gente tenha que enfrentar nós mesmos e saber quem somos. Mas, também, vejo uma certa moda, e como toda moda, ela deve diminuir com o tempo. 

E quanto ao trabalho e reconhecimento de psicanalistas brasileiros? Ainda buscamos seguir um modelo europeu?   

Existe a ideia de que qualquer um pode se tornar psicanalista, como uma certa “uberização” da psicanálise. A formação de um psicanalista é complexa, mas algumas pessoas acham que podem se tornar psicanalistas porque fizeram um cursinho teórico. Apesar disso, no Brasil, temos psicanalistas que são excepcionais e que não devem nada a profissionais de outros países nem à Europa, onde surgiu a psicanálise. A gente tem que fazer um trabalho de descolonizar essa mentalidade de que psicanálise é somente a europeia, porque depois de mais de 120 anos, temos uma produção textual muito robusta e psicanalistas muito ativos no Brasil.

São profissionais que estão produzindo levando em conta as condições brasileiras, ou seja, o fato de que nós somos um povo cuja formação foi baseada na experiência terrível da escravidão, que nossa desigualdade social não se assemelha em nada com a que existe na Europa, pela qual fomos colonizados, entre outros fatores. E tudo isso gera uma psicanálise que responde às nossas questões. Eu sou muito entusiasta da psicanálise brasileira. Isso é muito revigorante e dá entusiasmo à nova geração. 

Vera Iaconelli é a entrevistada da Revista E na edição de junho de 2022. Foto: Adriana Vichi

ESTAMOS NUMA ESPÉCIE DE CURVA DE RIO, NUMA SITUAÇÃO EM QUE TEREMOS QUE PENSAR AS PRÓXIMAS GERAÇÕES A PARTIR DE UMA VISÃO DA SOCIEDADE COMO UM TODO

Vera Iaconelli

Durante a pandemia, um dos grupos que mais apresentou doenças relacionadas à saúde mental foi o de mães solo. Esse cenário ampliou a discussão sobre quem cuida de quem cuida?

A pandemia revela o que já estava aí. É uma tragédia mundial, mas, como ela atinge a todos os laços sociais, todos os governos, todas as políticas públicas e a todas as formas como a gente se organiza enquanto sociedade, ela põe tudo à prova. No caso, esse arranjo (mãe-filho), que a gente ainda vê, é extremamente anacrônico, vem se arrastando por séculos, mas com requintes de crueldade nos últimos anos. A gente tem visto as mulheres serem inseridas no mercado de trabalho, ganhando menos e, ainda, assumindo essa contrapartida de ser sustentada por um homem, fato que nunca ocorreu para todas as mulheres, obviamente.

A contrapartida seria cuidar dos filhos nessa divisão do trabalho que foi se mostrando impossível, porque as mulheres sempre trabalharam fora de casa também. Essa história de que a mulher começa a trabalhar fora nos anos 1960 é uma coisa de classe média alta, porque elas sempre trabalharam muito. Então, o que aconteceu foi que as mulheres começaram a aspirar trabalhar fora, se tornar independentes e não depender mais do casamento. Estamos numa espécie de curva de rio, numa situação em que teremos que pensar as próximas gerações a partir de uma visão da sociedade como um todo. Mas não é isso que temos hoje.

O que temos hoje são as mulheres sustentando a casa e cuidando da casa e dos filhos. Então, elas são as provedoras de tudo: a provedora material, afetiva e do cuidado. Aí, você põe uma pandemia em cima disso, e a pandemia causa e revela: ela revela que não dá para ser desse jeito, porque essas mulheres adoecem, porque essas crianças adoecem e se a nossa geração adoece, a sociedade toda adoece. 

Ou seja, é preciso falar sobre a necessidade da formação e ampliação dessa rede de cuidado em todos os âmbitos da sociedade. 

A gente começa a ter que fazer a lição de casa e pensar: “Afinal, nós vamos realmente fingir que é possível que as mulheres sejam responsabilizadas pelas próximas gerações?”. A gente teve agora o dissabor de escutar uma mulher na política, influente, que votou contra o auxílio às mães solo, que são as antigas mães solteiras consideradas párias da sociedade porque eram “soltas”, “sem homem”. Essas “mães solteiras” se tornam “mães solo”, que dizem: “A gente está sozinha, não está devendo nada para ninguém e quer que a sociedade se responsabilize”. Mesmo assim, essa política vota contra o auxílio a essas mulheres porque ela acha que isso vai desagregar o laço familiar. Esse tipo de pensamento está aí desde o maternalismo na virada do século 19-20, que justamente pensava que a política pública não poderia beneficiar diretamente a mulher, porque isso desagregaria a família, então, ela tem que ser dependente do marido.

O que está em jogo aí? Está em jogo uma visão de que a sociedade “ajuda” a mulher, assim como o marido “ajuda” a esposa, e não que a sociedade é tão responsável pela próxima geração quanto qualquer cidadão. Então, a gente não vai “ajudar” a mulher, nós vamos fazer a nossa parte, dividindo responsabilidades, que são sempre da geração anterior em relação à próxima geração. Ainda existem mulheres que acham que têm que corresponder a esse equívoco e adoecem pensando: “Eu deveria conseguir trabalhar 12 horas por dia, cuidar dos meus filhos, estar linda e maravilhosa, pagar minhas contas e ainda ser uma mãe que consegue ler uma história no final do dia e fazer a lição de casa com o filho”. Não dá. É completamente impossível, e elas vão adoecendo tentando ou, então, achando que têm que casar por causa disso, que precisam manter um relacionamento abusivo por causa disso e uma série de outras distorções desse raciocínio equivocado.

Por isso faz parte da minha pesquisa a visão de que a parentalidade, esses laços que criam a nova geração, diz respeito a uma geração sendo responsável pela próxima, e não apenas a relação “mamãe e seu bebê”. É uma outra perspectiva totalmente implicada socialmente, pensando nos discursos e condições para se cuidar da próxima geração.   

A GENTE QUER MESMO TRANSMITIR PARA A NOVA GERAÇÃO TUDO AQUILO QUE A GENTE RECEBEU?

Vera Iaconelli

E como fica a questão da paternidade, quando vemos cada vez mais canais de discussão em páginas na internet, podcasts e outras mídias debatendo maior envolvimento na criação e no cuidado dos filhos?

Essa nova masculinidade emerge não só da luta feminina de mais de 100 anos, ela emerge da nova paternidade. Teve um pensamento que o filósofo Túlio Custódio me apontou em certa ocasião e mudou minha perspectiva: não foi a pressão do feminismo diretamente que demoveu o discurso machista, foi a paternidade. Claro que há uma relação com o feminismo, mas lá na ponta, porque quando as mulheres falam: “Toma que o filho também é teu e eu vou trabalhar fora”, e divórcios passam a ser uma possibilidade não vexatória, mas uma solução para alguns casos, os homens começam a ter que cuidar dos filhos, porque esse trabalho não remunerado da mulher começa a rarear.

Esse homem começa a ter que pensar quem ele é como pai, quem ele quer criar e também começa a se pensar. Como os filhos trazem para a gente a nossa própria mensagem invertida, como dizia Lacan, e os filhos mais do que qualquer outra pessoa, esses sujeitos começaram a se pensar como homens. Aí surge a nova paternidade e o novo homem. O homem que começa a criticar o machismo tóxico junto com as mulheres e a pensar: “Eu não quero só os deveres, eu também quero os direitos, também quero guarda compartilhada, quero tomar decisões importantes”.

Só que para fazer essa passagem, as mulheres também têm que passar o bastão, ou seja, elas também têm que recuar em alguns lugares nos quais reinavam, porque tinha uma compensação – já que o homem reina no espaço público, a mulher é a “rainha do lar”, é ela quem decide e exerce um lugar de poder na casa. Mas, fazer com que o homem entre aí, exigir que ele entre também é abrir mão desses “podres poderes”, porque, na verdade, são poderes que te minam de todo o resto. A partir daí começa toda uma nova negociação dessas relações que têm muito a beneficiar as crianças e as famílias, mas que dá muito trabalho, porque tem uma negociação de poderes, de quem faz o quê, quem se responsabiliza pelo quê.

Por isso, a gente tem um longo trabalho pela frente, mas a boa notícia é que nada muda se uma nova mentalidade não aparecer, se um novo paradigma não aparecer. E o que apareceu foi um novo paradigma de pai/homem, que afeta todos os homens, mesmo os que não são pais, porque eles estão sendo criados por novos homens. Começamos a ver, então, homens que cuidam dos filhos como pais responsáveis. Eles começam a aparecer como modelos de novas gerações e a gente precisa de modelos, senão não dá para imaginar (esse outro pai/homem).       

No livro Criar Filhos no Século 21, você lança aos leitores a pergunta: “o que é necessário para educar uma criança em nosso tempo?”. Afinal, o que é necessário para educar uma criança em tempos de sobrecarga de trabalho, escalada do consumismo e hipervigilância das redes sociais?

Acho que uma coisa para se pensar é: “O que seria o lugar dos filhos?”. Seria o lugar da transmissão de algo. Ter filhos – e pode ser que você transmita ou não a sua genética – é transmitir algo para a próxima geração, da mesma forma que você transmite algo a partir do que a geração anterior transmitiu para você. Por exemplo: vou transmitir para meus filhos minha língua materna, vou transmitir o arroz com feijão do almoço, que a gente come sentado à mesa, que a gente se cumprimenta de um determinado jeito. Vou transmitir milhares de coisas que são uma forma de existir no mundo. A forma como eu trato os meus funcionários, quem eu trato melhor a depender de cor, gênero, posição social… Enfim, tudo isso. A gente transmite em 100% do tempo milhares de expressões faciais, falas que são uma enxurrada de informações que as crianças vão tentando administrar

Isso é a parentalidade: transmitir para uma nova geração o caldo de cultura, a língua, tudo o que vem da geração anterior. E os pais são a capilaridade desse processo, são a ponta final na relação criança-adulto. Então, o que a gente precisa hoje? Primeiro, a gente precisa deixar de achar que pode fazer isso no piloto automático, de um jeito ingênuo, e começar a pensar: “A gente quer mesmo transmitir para a nova geração tudo aquilo que a gente recebeu?”. Será que a gente vê que nossa sociedade está colapsando? Então, o que, de fato, a gente quer transmitir?

Seria o caso de a gente pensar em transmitir uma crítica à nossa sociedade, mas de um jeito que não deixe as crianças desesperadas como nós estamos? Precisamos começar a pensar que, se a sociedade é muito capitalista, muito consumista, muito capacitista, que valores na sua vida você quer transmitir? Agora, o que uma nova geração precisa, genericamente, transmitir para outra são os próprios valores, a linguagem, um lugar no mundo, ou seja, a configuração de cuidados que possibilita um lugar no mundo, e uma possibilidade daquele sujeito se emancipar de você, para uma independência.

Tudo isso está no jogo daquilo que seria o papel dos pais, mas também diz respeito à nossa sociedade repensar consumo, alimentação, repensar estilo de vida, os laços que a gente faz, o que a gente realmente dá valor, se é importante trocar de carro ou ir a pé. Acho que a coisa que a gente mais precisa fazer é se repensar.   

Vera Iaconelli é a entrevista da Revista E na edição de junho de 2022. Foto: Adriana Vichi

A ARTE NUNCA FOI E JAMAIS SERÁ SUPÉRFLUA, OU UM LUXO, PORQUE ELA ESTÁ ALI NAS NECESSIDADES MAIS BÁSICAS PARA SE SOBREVIVER AOS MOMENTOS DE PENÚRIA E PARA PODER VIVER

Vera Iaconelli

Em uma de suas colunas no jornal Folha de S.Paulo, você reflete sobre a emissão deliberada de opiniões, sem filtros e sem censura nas redes sociais. O que estaria desencadeando esse tipo de comportamento?

A formação de todos nós é um grande processo de abdicar do prazer individual em nome do bem comum. Abdicar do que em psicanálise a gente chama de um “gozo individual” em nome de um bem comum. Então, desde pequenininho, você queria comer tudo sozinho, mas seus pais falavam que você tinha que dividir com seu irmão. Você dividia a contragosto, mas te elogiavam – “Ai, que bonitinho ele dividindo com o irmão”–, e você se alimentava daquele elogio. Tem todo um jogo no qual a gente vai a duríssimas penas aprendendo a controlar os impulsos, a controlar o que fala. Isso é civilizatório e permite que a gente tenha relações, que não saia se matando.

Então, tudo que os pais se furtam de fazer com medo de serem repressivos, mas que é absolutamente necessário, como o fato de que as crianças não batam nos pais, não batam nos outros, não xinguem, os pais têm que transmitir isso para os filhos, porque quando não o fazem é péssimo para as crianças. Assim, a gente faz essa renúncia pulsional, da saciação imediata, em nome de um bem comum, para ser inserido no mundo. Mas esse prazer individual fica represado. Como nosso desejo de sair e dizer cobras e lagartos o tempo todo. É um exercício diário contar até mil toda vez que alguma coisa te desagrada.

Só que com a ferramenta da internet, as pessoas viram ali um megafone para falar tudo aquilo que estava represado, todos os incômodos que elas não se dão ao trabalho de perguntar de onde vêm. Porque, quando você tem uma conversa tête-à-tête, mesmo fora de uma análise, o outro te checa e fala: “Mas de onde você tirou isso?”. As pessoas que te conhecem podem checar com você aquela informação. Agora, quando você põe um megafone anônimo, ninguém te checa e você “goza” em termos psicanalíticos.

Daí, as redes sociais se tornam um campo solto do sadismo e do masoquismo, uma zona livre da incivilidade que a gente sempre teve e que está em nós, mas antes os sujeitos tinham que se responsabilizar mais pelo que falavam. Hoje você fala um palavrão impensável e na rede social você é uma sigla, uma frase, você não coloca seu nome lá, mas quem leva o xingamento aparece e, ainda assim, quem xinga recebe um monte de likes e pensa: “Nossa! Todo mundo gosta de mim”.

Então, essa é uma situação grotesca que tende a se tornar cada vez mais violenta até o momento em que iremos pensar em criar uma etiqueta e responsabilizar. Hoje a gente tem alguns momentos importantes de responsabilização de algumas figuras públicas que falaram o que não deviam. Isso gera uma comoção, mas não estanca a ferida. É importante que todas sejam responsabilizadas.

Ainda sobre as redes sociais, vivemos a chamada “cultura do cancelamento”. Por que o julgamento e a condenação se fazem cada vez mais presentes nesse espaço?

A questão do cancelamento tem muitas nuances. Tem, sim, a ideia de que quando eu critico o outro eu me ponho na posição de “sou melhor que ele”, mas, pensando na resposta anterior, se tem um jogo de gozo de um lado, é de se esperar que tenha um recalque do outro. Acho que são sintomas da mesma coisa. Normalmente, as pessoas tiram frases de um contexto e agem como o chicote do mundo dizendo o que pode e o que não pode ser dito e que a pessoa errou. Só que ela se exime de pensar sobre o próprio erro e entra num lugar de superioridade. Além disso, acho que o que está em jogo nessa relação é a dificuldade que a gente tem de se entender sujeito, de se entender de uma forma mais complexa. A gente vai errar, nossas limitações são permanentes.

Agora, eu diria que algumas pessoas precisam ser canceladas. Jogo de gozo na minha timeline não tem. Essa fantasia de liberdade de expressão é o fim da civilização, porque, então, meu vizinho me dá bom dia e eu respondo xingando. Acredito que, por um lado tem algo a ser cancelado, que são os casos extremos, e por outro, algo a ser pensado. Acho ótimo quando cometo um erro e a pessoa me fala: “Vera, essa expressão não pode ser usada mais, porque ela remete a tal coisa”. Esse tipo de comentário eu agradeço.

Outras vezes, não concordo, mas agradeço a ponderação. E aí a gente entra num cenário que parece ter virado uma raridade e que se chama diálogo. As redes sociais se revelaram como uma ferramenta que nos afeta pelo anonimato e pela falta de responsabilização. Uma ferramenta que é pouco propícia ao diálogo, apesar de haver exceções, mas que também revela algo em nós que estava escondido.  

“AS REDES SOCIAIS SE REVELARAM COMO UMA FERRAMENTA
QUE NOS AFETA PELO ANONIMATO E PELA FALTA DE RESPONSABILIZAÇÃO

Vera Iaconelli

Em entrevistas, você já falou sobre a importância da fruição cultural para compreensão do que sentimos e o espaço que ocupamos em diferentes esferas da vida. De que forma a arte tem exercido um papel importante na promoção da saúde mental, principalmente na pandemia? 

Como canta a banda Titãs: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte” [trecho da canção Comida, do álbum Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, de 1987). E num nível estratosférico, porque nós somos seres condenados a buscar sentido na vida. A gente não quer só sobreviver, a gente precisa viver e isso a gente vê desde o bebê recém-nascido. Ele não pode ser criado só no nível da necessidade. Infelizmente e felizmente, a gente precisa basicamente de sentido, de laço afetivo, de desejo, de se sentir amado. Somos ávidos por esse encontro com a gente mesmo, com o outro, com os afetos. A gente simplesmente não sobrevive sem isso.

Então, mais do que nunca, esses momentos excepcionais, como pandemias e guerras, são momentos em que o oxigênio da arte precisa ser bombeado em nós. Isso ficou muito claro e, para quem não sabia, foi a grande chance de entender porque a arte nunca foi e jamais será supérflua ou um luxo. Ela está ali nas necessidades mais básicas para sobreviver aos momentos de penúria, para poder viver. E a vida é sempre muito maior do que o aparelho psíquico, do que a linguagem, do que as nossas competências mentais são capazes de abarcar. E essa experiência da vida é tão brutal que ela às vezes exige formas de nomeação que a linguagem não dá conta. A linguagem vai até certo ponto e ela tem que escapar para essa outra linguagem que é a arte: uma linguagem que escapa dessa racionalidade para nomear o inominável.

O que acontece com a arte é que ela nomeia. Quando você assiste a uma peça e chora, você está se identificando e reconhecendo ali a nomeação da sua experiência. Quando você lê um livro, a mesma coisa, quando você fica com raiva daquele personagem, ou com medo, todos esses são afetos que estão sendo vividos ali numa experiência de nomeação, de simbolização, de reconhecimento, de troca. Temos vários momentos nos quais a arte nos salva. Por isso, quando um governo se mostra contra a arte e diz que ela é supérflua, na verdade eu acho que ele sabe a potência da arte e o risco que ela tem de nos conscientizar de quem somos, do que vale a pena, do que queremos. Ela é extremamente revolucionária e perigosa, sempre foi. Todos os governos autoritários entenderam isso e todos reprimiram artistas e produções artísticas. 

Sabemos que, neste momento, você vem se dedicando ao próximo livro. Será um mergulho sobre outras questões e perspectivas acerca da maternidade e de gênero?  

Tive que reduzir muito as minhas atividades e comecei um sabático em março para me dedicar a esse livro e mergulhar nisso que estou chamando, provisoriamente, de “maternidade em crise”, uma vez que ao se tratar de maternidade em crise, trata-se de paternidade em crise e sociedade em crise, porque são todas formas de reproduzir o laço social. Estou tentando mapear um pouco esse beco onde a gente caiu em relação às próximas gerações, e tentar entender de onde a gente vem e aonde a gente chegou para pensar em, eu não diria soluções, melhores questões sobre como cuidar da próxima geração. Esse é um problema de toda a sociedade e acho que a gente tem que pensar sobre isso de uma forma arejada, aberta, pensando nas questões interseccionais, de gênero, no feminismo, nas questões raciais, nas questões de classe. Parar de pensar nessa relação da maternidade ou da paternidade a partir exclusivamente da relação mamãe-bebê, papai-bebê.

Então, esse próximo livro reunirá todo o meu trabalho nas últimas décadas. Ele propõe que a gente pense, por exemplo, sobre a paternidade de homens trans que pariram, ou seja, crianças que nascem sem uma mãe biológica. Discussões para a gente começar a pensar e abrir mão de coisas que se tornaram anacrônicas. A previsão é de que seja lançado no primeiro semestre de 2023.  

A EDIÇÃO DE JUNHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Nesta edição, celebramos os 30 anos da ECO-92, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento que, no começo da década de 1990, propôs uma série de debates e compromissos dos quase 180 países participantes com a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente. Nesta reportagem, propomos um resgate histórico sobre os marcos e conquistas ambientais no Brasil e no mundo e revelamos quais os ecos da ECO-92 três décadas depois de sua realização.

Além disso, a Revista E de junho traz outros destaques: uma reportagem que destaca a diversidade de estilos, formações e técnicas na produção contemporânea de música de câmara; uma entrevista sobre parentalidade com a psicanalista Vera Iaconelli; um depoimento de Zezé Motta sobre os mais de 50 anos de carreira; um passeio visual pelas obras da exposição Xilograffiti, em cartaz no Sesc Consolação; um perfil de Lygia Fagundes Telles, um dos maiores nomes da literatura brasileira; um encontro com Marcio Atalla, que defende a adoção de uma vida mais ativa para o bem-estar a e saúde a longo prazo; um roteiro por 5 espaços que celebram a cultura japonesa em SP; o conto inédito “Careiro”, assinado pela escritora Paulliny Tort; e dois artigos que celebram o legado do sociólogo e crítico literário Antonio Candido.

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