ANTÔNIO | Inéditos com Aline Bei

31/03/2022

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Inéditos - Aline Bei
Ilustrações: Luyse Costa

sentir pena de algo é enxergar no outro uma miséria que é tua, meu pai dizia
e agora que ele se foi eu morri 
nas pernas, ele que me fazia correr pelo bairro 
corpo parado é corpo alvo de doenças do espírito
nessas corridas, ele gostava de conferir se as casas que não viraram prédio seguiam resistindo como a dele, a mesma que estou agora 
enquanto empacoto a multidão de objetos que um morto sempre deixa para trás.
aqui, (pega o taco) neste piso solto de madeira cósmica
reencontro não só a criança que fui
mas também o seu tropeço 
que em hora desconhecida perderá os seus vapores 
em silêncio, exatamente como as luzes dos fogos de artifício.
meu pai adorava essa casa, se sentava 
naquela cadeira azul.
bebia seus vinhos de garrafa densa, nunca me contou de onde tirava aquilo, talvez do fundo 
de um navio pirata.  
ele enchia o copo, o mesmo do pingado 
e me dizia 
numa mistura de santo, sambista e filósofo 
da sensação de pertencimento que ele lia na boca dos meus primeiros anos
ou de um urso que eu tive chamado Antônio 
e que adoeceu, o fiz adoecer de não sei qual enfermidade  
só para cuidar dele 
como o meu pai cuidava de mim. 
não me tornei médica.
nem sou particularmente feliz ao chegar em casa, tirar o meu casaco 
e vislumbrar a palidez dos meus olhos enquanto guardo as chaves 
na gaveta. 
quando morre um pai (encaixa o taco no vão sem piso)
eis o aviso que faltava a respeito da nossa própria morte 
um aviso que começa quando você nasce
e que te envolve os ombros quando você tem um filho.
um corpo pode ser uma pedra por anos
pode ser um muro 
por longos anos
um corpo pode ser a ponte, pode ser a festa e assim atravessar metade de um século, mas 
um corpo não é interminável
um corpo é um corre perigo
o corpo do meu pai – fina luz no vão da porta – escapou 
por 75 anos 

Inéditos com Aline Bei - Antônio - Ilustração: Luyse Costa

até que uma gripe se misturou com o frio que ele guardava no peito quando corria as suas manhãs sem blusa. eu também posso morrer disso. posso ser atropelada, posso 
me afogar em uma nuvem, morrer de éter, mas por enquanto é o meu pai quem acabou no agora e isto sim é interminável, essa manhã de 84 horas pela casa que é meu pai nos azulejos é meu pai no banheiro fazendo a barba é a sombra 
do meu pai menino 
fingindo não me ver atrás da porta, é meu pai 
atrás da porta
com os seus pés largos 
e os seus pontos brancos no canto da boca, o que é isso? 
neve, você não sabia? que hálito é feito de neve? 
e o olho?
de ovo.

e o cabelo?
eletricidade. não acredita? pois faça um teste, vá 
para a frente da televisão.
viu? os Titãs estão te querendo 
lá dentro da tela.
ah, o mundo! que você me mostrou, pai, você que nunca teve ciúmes das suas pequenas sensações, ao contrário, você as cantava em qualquer esquina, era terno com as coisas à sua volta, sabia que o ressentimento era líquido 
e se você não guardasse o sulco 
em um vidro 
ele se espalharia pelo corpo 
amarrando o voo, devorando frestas. 
quando lembro que você não está mais aqui
meu vidro se abre, pai, e se por um instante eu me distraio do meu luto 
é porque a sua presença tinha tamanha fibra que ela borra até o seu desaparecimento e
não me diga que não adianta venerar um morto, sei que tampouco adianta venerar um vivo
tudo o que fazemos, o fazemos por nós. 
desejo que os seus ossos, pai, tenham encontrado uma boa posição para nutrir a Terra. e que os vermes, ao se alimentarem de sua carne, possam incorporar as suas virtudes 
e os que tem asas
que espalhem 
o sal desse velho homem pelo mundo
ele que me deu 
uma infância de pertencimentos
para que eu assista – cinema no cérebro – o que há de mais fronteiriço com a felicidade 
enquanto corro 
pelo bairro 
morta de pena dos cães.

ALINE BEI é escritora e já publicou O peso do pássaro morto (Nós, 2017),  romance de estreia que ganhou o prêmio São Paulo de Literatura e o prêmio Toca, além de ser finalista do Prêmio Rio de Literatura. Seu livro mais recente é Pequena coreografia do adeus (Companhia das Letras, 2021).

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