O Modernismo Brasileiro é plural, complexo, tenso e irreverente. Não se limitou a linguagens artísticas específicas (como a literatura, artes plásticas e música), pois que se ampliou no campo cultural, e ainda hoje não se deixa enquadrar num registro temporal definitivo. Seus lastros e geografias alimentam debates atuais – muito embora a Semana de Arte Moderna de 1922 tenha sido vista como abre-alas de uma ação prospectiva ordenada em chave modernista. Conforme os estudos se ampliam, novos olhares sobrevêm e dinamizam a compreensão do evento.

Em razão da efeméride do centenário da Semana de Arte Moderna, a Revista do Centro de Pesquisa e Formação apresenta o dossiê Diversos 22, que corresponde a uma das diversas ações realizadas pelo Sesc São Paulo, nas diferentes linguagens, como apresentações, shows, exposições, encontros, seminários e cursos, a fim de incentivar as reflexões em torno dos projetos, memórias e conexões relativos a este marco, articulado ao bicentenário da Independência do Brasil.

O conjunto de artigos que compõe o dossiê pretende participar do debate crítico acerca da Semana de Arte Moderna, sem desconsiderar sua importância e seu legado para a cultura brasileira. Realizada no Theatro Municipal de São Paulo, a Semana de 22, como é mais conhecida, foi um evento artístico-cultural que reuniu apresentações em diversas linguagens artísticas (poesia, pintura, escultura, música e arquitetura), além de conferências, com o intuito de promover uma nova visão da arte e da sociedade, inspirada pelas vanguardas europeias.

As manifestações artístico-culturais causaram impacto no público que compareceu ao teatro, embora não se possa afirmar que os desdobramentos desse impacto tenham sido imediatos. Os efeitos do evento viriam a ser sentidos nos anos e décadas subsequentes à sua ocorrência, quando a Semana passa a ser reconhecida como marco cultural, adquirindo notoriedade e figurando nos manuais de história, crítica literária e de artes. Sua importância também se deve a uma construção de base sociológica.

Diante da escassez de reflexões sobre o que de fato ocorreu, e sobre quais eram as condições culturais da cidade onde se deu a Semana, o dossiê busca discutir suas contradições, ausências e ressignificações, reconhecendo também os feitos daqueles que não figuram no discurso canônico. Ao mesmo tempo, oferece um panorama cultural da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, de maneira a situar o leitor quanto as intenções e a programação exibida nos dias da Semana, destacando também seus atores, a recepção e o abalo que causou naquele momento.

É imprescindível ampliar o debate para outras iniciativas, eventos e movimentos também modernistas que ocorreram em diversas regiões do país, e no próprio contexto paulista. Embora não tenham integrado os acontecimentos da Semana, sendo em alguma medida eclipsados por esse fenômeno cultural nas periodizações posteriores, eles figuram e convivem de forma dissonante nos relatos mais recentes, em meio a disputas processadas nos âmbitos da crítica cultural, literária e de arte.

O artigo que inaugura o dossiê apresenta o cenário cultural da cidade, por meio da programação dos teatros de São Paulo durante os dias do “festival”. Em “O Moderno para além do Modernismo: atividade teatral na São Paulo de 1922”, Virgínia Bessa examina tanto o repertório exibido na cidade nas noites da Semana de Arte Moderna quanto o sistema de teatros que se estruturava em São Paulo; explora sua relação com a modernização da sociedade paulistana, contestando a ideia de que a modernidade teatral, tanto em São Paulo como no Brasil, se atrasara em relação à das outras artes; e, assim, fornece um panorama sobre as possibilidades culturais da cidade no primeiro quarto do século XX.

Com ênfase na música de Heitor Villa-Lobos, Camila Fresca dimensiona em “A música da Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos” os impactos da Semana, mirando a produção intelectual e a atuação de um de seus organizadores, Mário de Andrade, que estabeleceu os pressupostos de criação de uma arte nacional que seriam definitivos para os caminhos da música e da cultura brasileiras ao longo do século XX.

Universo caro aos modernistas, as culturas populares ganham destaque no artigo de Caio Csermak sob duas óticas. “Só me interessa quem não sou eu: culturas populares e Modernismo Paulista” analisa o papel que as culturas populares tiveram no contexto da Semana de Arte Moderna de 1922, combinando a análise de textos dos próprios modernistas com revisões historiográficas sobre a Semana e o Modernismo Paulista.

O autor investiga como os modernistas estabeleceram visões e usos diversos das culturas populares e o lugar que estas tiveram e têm nos vários desdobramentos estéticos e políticos do Modernismo. Em seguida, o autor analisa os mesmos temas partindo de uma perspectiva reversa, interpretando a Semana e seu Modernismo por meio de categorias oriundas das epistemologias populares.

Em “Modernismos, no plural”, Luís Augusto Fischer, professor titular de Literatura Brasileira no Instituto de Letras na UFRGS, propõe uma mudança no emprego do termo Modernismo, deslocando-o da associação com as ideias dos paulistas ligados à Semana de Arte Moderna de 1922 para uma acepção mais abrangente e capaz de incluir autores e obras modernizantes de outras partes do país.

No artigo intitulado “A Semana que o Rio ignorou: outros modernismos…”, o professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Letras da UFMG Leandro Garcia Rodrigues analisa o Modernismo de verve mais conservadora do Rio de Janeiro, que resultou de uma experiência diferente dos arrojos vanguardistas de São Paulo.
Doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS e indígena Macuxi, Julie Dorrico escreve sobre a exclusão indígena em “A fortuna crítica (da exclusão): Makunaimî na literatura indígena contemporânea”, no qual apresenta a Literatura Indígena, discute a apropriação e folclorização das narrativas indígenas por autores não indígenas e demonstra a exclusão sem diálogo dos povos indígenas promovida por teóricos brasileiros.

A artista visual Renata Felinto completa o dossiê com uma investigação acerca de artistas pretos e pretas em face à Semana de Arte Moderna de 1922 e seus desdobramentos nestes cem anos. Trabalhar com a ausência, nas frestas, desconstruir a fantasia do mito da democracia racial e focar na atualidade do campo das artes visuais a partir da escrita de outras narrativas históricas é o que propõe o artigo intitulado “Enterrar o saudosismo da ausência: não estivemos em 1922, porém estamos em 2022”, que destaca o desafio de encarar novas abordagens sobre a história das artes visuais no Brasil.

A publicação se amplia com as contribuições de três pesquisadoras que participaram da programação promovida pelo Centro de Pesquisa e Formação.
Mariana Villaça, professora de História da América na Unifesp, examina as políticas culturais na América Latina e o nexo entre as políticas culturais de determinadas instituições com as políticas culturais governamentais e os contextos políticos.
Realizadora circense e doutora em Sociologia pela USP, Maria Carolina Vasconcelos Oliveira discute o circo contemporâneo, analisando os pressupostos que ancoram a classificação e a própria definição da arte circense.

Escrito pela professora associada no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP Cecília Mello, o terceiro texto da seção trata dos principais momentos e características da cinematografia do Leste Asiático — China Continental, Hong Kong, Taiwan, Japão e Coreia do Sul —, que se constitui atualmente como um dos mais importantes polos de cinema do mundo e em franca ascensão.

Ex-alunas e ex-alunos do Curso Sesc de Gestão Cultural apresentam três artigos nesta edição: Mateus Sartori Barbosa publica “Planos municipais de cultura: reflexões e análises na elaboração, implementação e fortalecimento das políticas culturais”; David da Silva Júnior, Denilson de Jesus Silva, Lydia Arruda e Marleth Reis contribuem com “Crises e recomeços: reflexões sobre sustentabilidade financeira de espaços culturais auto-organizados em São Paulo”; e Bruna Hitos Pereira, Sandra Leibovici e Nilson Hashizumi escrevem “Os impactos da política pública e a ocupação das ruas para práticas de lazer e cultura na cidade de São Paulo”.

O entrevistado desta edição é o pesquisador e jornalista Marcos Augusto Gonçalves, autor de um importante livro sobre a Semana de Arte Moderna. No diálogo são abordadas questões como a contribuição da Semana de 22 para o projeto de construção da nação, o papel das periferias na inovação cultural e temas como identidade, racismo e sociedades tradicionais, que ganham relevo nas comemorações do centenário.
Publicados pelas Edições Sesc, Mário de Andrade, epicentro: sociabilidade e correspondência no Grupo dos Cinco (2022), de Mauricio Trindade da Silva, e Uma história das sexualidades (2021), de Sylvie Steinberg, foram resenhados pelos professores Luiz Carlos Jackson e Alexandre Filordi de Carvalho, respectivamente.

As seções finais da revista trazem os trabalhos da escritora Bruna Beber, que preparou os poemas “Encruzilhada” e “Roda de tiririca”, e do fotógrafo Ed Viggiani, que aborda no ensaio “Tempos” as inúmeras faces da cidade transformadas em lembranças pela ação da fotografia.

Boa leitura!

Danilo Santos de Miranda
Diretor do Sesc São Paulo