Por Maitê Freitas*
Em 2014, quando estive em Brasília, em frente ao prédio do Supremo Tribunal perguntei para uma vendedora ambulante como chegar ao Senado, ela me respondeu: “precisa passar por palmares”. Quando olhei para a direção apontada pela vendedora, entendi que se tratava das palmeiras plantadas no jardim da Praça dos três poderes. Ainda que “palmares” fosse apenas uma indicação do paisagismo local, se as escolhas históricas para estruturação social fossem justas, a “paisagem” das relações raciais no Brasil seriam outras.
O Quilombo de Palmares seria um marco para além do lugar ou de uma data comemorativa, estaria relatado nas páginas didáticas e faria parte do imaginário brasileiro como um símbolo da primeira experiência de república do país, liderada por mulheres negras e que tinham os homens como aliados na organização social do quilombo. O Brasil se entenderia como uma nação quilombola e os espaços de aquilombamentos não seriam vistos como excêntricos, mas como um modo de vida sustentável. As populações e culturas negras não seriam tema, seriam a chave para acessar conhecimentos das diversidades que compõem a identidade brasileira.
Para realizarmos um debate racial consistente é preciso soltar as amarras e questionar a forma como os marcos da história oficial vêm sendo transmitidos e direcionados nos livros didáticos, na produção televisiva e, principalmente, nas linguagens artísticas brasileiras. O dia 20 de novembro é, para além de uma data comemorativa, símbolo das conquistas dos movimentos negros que fazem uma contraposição direta ao 13 de maio, data em que a história oficial tentou, durante décadas, instituir como sendo um momento de liberdade para os escravizados.
Todos sabem como os negros são tratados. Todos sabem como o dia 13 de maio de 1888 não refletiu uma experiência real de libertação ou liberdade. Dar à população de escravizados as condições de sobrevivência e inserção social não estavam nos planos “áureos”.
Os planos de embranquecer a população brasileira não deram certo. As teorias eugenistas falharam. Se o plano era embranquecer a população brasileira e extinguir os fenótipos afro, os eugenistas falharam. Ainda que a ausência de políticas públicas tente inibir a existência de 53% da população brasileira, a comunidade negra – a despeito de todo racismo – criou formas e tecnologias de sobrevivência: seja por meio samba no fundo de quintal, nas famílias de santo ou nos bailes blacks, poetry slams, batalhas ou na gastronomia – o Brasil é negro.
Se entendemos que o 13 de maio não representa e nunca representou uma real liberdade, não representou a criação de condições para que os escravizados construíssem formas de sustento e qualidade de vida; compreendemos, então, que a nossa experiência de liberdade tem outros indicadores e agentes políticos. Alguns deles, pouco conhecidos dos livros de história e do calendário de feriados: a luta de Teresa de Benguela, a Revolta dos Malês, a Revolta da Chibata, a criação do Teatro Experimental do Negro, a Marcha Nacional das Mulheres Negras, a descoberta do fóssil da Luzia e a eleição da primeira deputada negra trans Érica Malunguinho, por exemplo.
Pensar o processo de construção das afrobrasilidades a partir do mote de 13 de maio a 20 de novembro é tornar possível a compreensão de uma trajetória repleta de atravessamentos, diversidades e pluralidades sobre aquilo que se compreende por ser negro no Brasil, em especial em São Paulo. Pensar esse processo durante sete meses é nos desafiar a olhar para as formas que temos nos aquilombado e criar efêmeros aquilombamentos nas programações de instituições socioculturais. É sair do lugar comum que nos transformou em tema do 20 de novembro e nos inserir em uma estrutura narrativa mais respeitosa com o que produzimos.
No processo de reconstruir os imaginários identitários e aquecer o debate sobre as relações étnico-raciais, a criação de novos vetores – que tensionam os normativos históricos é mais do que mudar um paradigma – é construir a possibilidade de que os heróis venham do povo, sem pompas e honrarias. Possibilitar que Zumbi, Dandara, Aquotirene e Aqualtune sejam lembrados. Reverenciar as Carolinas, as Tulas, as Evaristos e a produção literária de mulheres negras que narram heroínas do cotidiano. É preciso rever e reconstruir os referenciais bibliográficos que compõem os imaginários desde a infância.
13×20 são sete meses para recriar e ressignificar os sentidos e o entendimento do que é ser negro neste país. 13×20 são sete meses que podem ser vistos como sete caminhos por onde histórias e experiências estéticas – seja nos palcos, na gastronomia, nas artes visuais, na música, nas praças – fluirão e exaltarão a história, que a história não conta.
O que fazemos ao longo do tempo são “aquilombações”: nas giras, nas rodas, nas aparelhas, nos coletivos negros, nas feijoadas e pagodes das esquinas. Nos aquilombar tem garantido tornar menos árida a experiência de viver numa cidade, num estado, num país cujos sistemas legais não querem nos enxergar.
Ainda que os acervos e patrimônios da humanidade sejam queimados, nosso crânio-Luzia se mantem vivo em nós. Somos feitos dessa matéria-prima que atravessou, em condições insalubres, os porões dos tumbeiros; e do som dos corpos lançados ao mar que fez brotar o marabaixo no Amapá, que da saudade das terras de l’África; desse banzo, se fez cultuar jongos e sambas.
Ainda que disparem 13, 80 e 111 tiros contra os nossos corpos, ainda assim nos levantamos e construímos experiências de liberdade com arte, com poesia, com afeto.
Ainda que tentem nos impor uma experiência de uma liberdade efêmera, nossos atabaques, nossos cantos, nossa umbigada, nosso giro (e subvertendo todas as expectativas): nós nos levantamos.
Ainda que queimem os acervos e as memórias, somos descendentes e resistência de Luzia e nossos passos serão rastros para os que chegam.
Em pé caminhamos na luta, em luta, transformando o luto em verbo, e construímos nossos quilombos.
Salve os quilombolas de Palmares, de Benguela, do Grajaú, de Itaquera, do Bixiga, da Liberdade e de todas as Sampas-periferias!
Salve Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, que nos convocaram para que reaquilombássemos!
Salve a reintegração de posse de nossas narrativas ocupando as ruas, as rodas, os palcos e os espaços!
É tempo de levante!
* Maitê Freitas é jornalista, atriz e produtora. Mestranda em Estudos Culturais pela USP. Colabora com o projeto Empoderadas e idealizadora da coleção Sambas Escritos.
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De 13 de maio a 20 de novembro, todas as unidades do Sesc São Paulo oferecem ações artísticas, reflexivas, experimentais e formativas que abordam as lutas, conquistas, manifestações e realidades do povo negro. Acompanhe a programação completa aqui.
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