Leia a edição de maio/22 da Revista E na íntegra
Ilustrações: Luyse Costa
Naquele dia, quando acordei, o rosto da mãe – não o verdadeiro, que há tempos eu não via, mas aquele que só os meus olhos guardavam –, irrompeu em minha memória feito uma dor. Eu vivia há anos noutra cidade, longe, muito longe da mãe; estava habituado à tentação das lembranças e compensava a distância com a regularidade das cartas e dos telefonemas. Se não podia desfrutar de sua presença, deixava que vivesse a sua história plenamente dentro de mim. Como seu filho, único, eu lhe seguira os passos, aprendendo a mover, com as palavras, a saudade para outro lugar.
Mas, apesar das numerosas tarefas que me exigiram atenção nas horas seguintes, daquela vez, ao longo do dia inteiro, seu rosto reaparecia à minha frente, assumindo a forma de tudo o que eu mirava. A mãe, certamente, lá, do fundo de meu próprio mundo, me chamava para fora. Ela se sobrepunha às camadas do meu vazio, recobrindo-o, de uma ponta a outra. E, ao fim da tarde, a ferida de sua ausência se abrira, exigindo de mim uma decisão imediata.
Era hora de revê-la, não porque se aproximava o seu aniversário, ou porque, em breve, seria Páscoa; não, não havia motivo algum que me obrigasse a ir ao seu encontro, como sempre eu fazia, embora raramente nos últimos anos. Tampouco era um aviso de minha intuição, para a qual quase nunca dava ouvidos – eu vivia resignado às incertezas! –, alertando-me, em sua linguagem obscura, que algum mal se instalara silenciosamente nela (um dia haveria de acontecer com todos nós!), e não era o meu dever, mas, sim, o meu amor, que me punha, agora, numa rota, em direção a ela.
À noite, enquanto jantava sozinho, a estranha quietude do bairro onde eu morava, irrigado por ruas nervosas e barulhentas, recordou-me a sua casa, quando, menino, no silêncio do quarto escuro, eu confundia os estalidos que, inesperadamente, espocavam do assoalho, com passos de fantasma, e corria à sua cama, transido e mudo, o coração a trovejar. Paciente, ela me acalmava, dizendo, Não pense nisso, e, acariciando-me os cabelos, completava, Pense em outra coisa! Começava a me contar histórias divertidas, que, então, ocupavam o lugar do meu medo; assim, aos poucos, fui transferindo seu ensinamento para outras instâncias da vida, colocando um pouco de sol, mesmo se pálido, acima das sombras que tomavam meu pensamento em horas de aflição.
Decidi então visitar a mãe no dia seguinte; fiz uma pequena mala – duas trocas de roupa apenas –, e me deitei no sofá, diante da tevê, sem prestar atenção naquilo a que assistia, tomado pela sua força, viva, como se o seu destino estivesse ali, colado ao meu, até que o seu rosto – mundo concentrado! – foi, lentamente, lentamente, substituído pela névoa do sonho.
Acordei cedo, o dia ainda em botão, mas pronto para se abrir sem pressa, como meus olhos que, bem fechados, viam lá no fundo, de novo, as feições da mãe, mais suaves. Se pensar nela deixava de ser algo bom – mas, ao contrário, me doía –, eu, sempre fiel à ordem de suas palavras, ditas há tanto tempo, Pense em outra coisa!, tentei me distrair, cuidando dos preparativos da viagem. Quando me dei conta, ela saíra de minha mente – baixara às profundezas do passado, para emergir, depois, eu sabia, à consciência do instante –, enquanto eu me concentrava no ato de fechar o portão da garagem de casa, dirigir até o posto de gasolina para abastecer e, em seguida, pegar a estrada.
Durante duas horas, transitei pela rodovia quase deserta, o movimento escasso de veículos, o ritmo monótono; vez por outra, eu via lá adiante um caminhão se arrastando, feito um réptil, e logo o ultrapassava. Havia urgência em mim, mas a paisagem, em outra velocidade, abria-se devagar, à medida que os quilômetros se sucediam, as plantações de cana oscilavam ao vento, o sol se elevava no horizonte, imperceptivelmente, e, não sei por que – talvez porque tivesse acontecido num dezembro distante –, lembrei-me de uma manhã, ainda criança, quando cheguei à sala de aula e não encontrei a professora de todos os dias, mas outra. Bonita. E mais jovem. Fiquei surpreso, como meus colegas de classe. Não entendia por que aquela desconhecida estava lá – faltava tão pouco para o ano terminar! Não entendia, sobretudo, aquelas suas palavras: Eu sou a substituta! Substituta, a mãe me ensinaria depois, era quem ocupava o lugar de alguém ausente.
E como o caminho era longo, muitos e muitos quilômetros ainda a percorrer, fiquei de olho em outras lembranças que passavam, sem pressa, em minha mente, como as plantações de cana na estrada, os trechos de montanha, as terras aradas e, no meio delas, a mãe fulgurava, sempre do jeito que eu a via, naqueles tempos, quando voltava da escola: ela, em seu avental desbotado, com o pano de prato entre as mãos, envolta na nuvem de vapor que subia das panelas.
Então, quase ao meio-dia, cheguei à sua (minha) cidade. Não era mais a mesma dos meus olhos: a entrada, antes sem sinalização, exibia um portal e uma placa de boas vindas. As ruas, de paralelepípedos, estavam sujas de terra vermelha e fuligem de queimada. A casa da mãe, de sua vida inteira, e parte da minha, esperava-me ali, concreta, no mesmo endereço, como das outras vezes. Entrei – a porta, ela só fechava à chave na hora de dormir –, e, para não assustá-la, se me visse, de repente, como um fantasma a deslizar no assoalho, eu a chamei em voz alta, Mãe, mãe. Ninguém respondeu.
Fui à cozinha. Ouvi o som de descarga, água correndo na pia do banheiro, passos apressados pela sala, e a sua voz, Filho! filho!, é você?, aproximando-se. Virei-me e lá estava ela, a mãe, a real, com seus cabelos brancos, a curva dos lábios e a cor dos olhos que eu via em mim mesmo, quando me flagrava no espelho. Que surpresa boa!, ela disse e me abraçou. Pois é, surpresa até pra mim, eu falei. O que deu em você, ela perguntou? Nada, respondi, Eu vim te ver. Ela perguntou, Vai passar o fim de semana aqui?, e eu, Vou, é claro!, e, aí, o contentamento entrou, de uma vez, em seu rosto.
Ela moveu uma cadeira e disse, Senta, filho, e eu me sentei à sua frente, eu desejava estar ali, com ela, e estava. Naquele momento, eu só queria dizer a ela que nada era comparável ao seu rosto entre o vapor das panelas, quando eu, ao voltar da escola, entrava na cozinha e a encontrava atrás daquele avental desbotado. Eu só queria dizer o quanto sentia a sua falta, embora ela estivesse ali, diante de mim, um dentro do outro; eu queria dizer o quanto me doía não sermos mais, como naqueles tempos, uma jovem mãe e seu filho criança.
Mas, eu não disse nada disso: eu falei da viagem, do sol, dos canaviais ondulando na estrada, do portal da cidade e das ruas empoeiradas. Falei, sem cessar, dessas coisas que existem só para a gente lembrar e, em seguida, esquecer. Falei, falei, falei, usando, em seu lugar, outras palavras. E tanto era a minha sinceridade que, lendo o rosto da mãe – eu tinha certeza –, ela estava escutando justamente aquelas que eu substituía.
JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA é escritor. Entre algumas de suas obras publicadas estão Aos 7 e aos 40 (2016), Trilogia do Adeus (2017), Aquela água toda (2018), Elegia do irmão (2019) e a mais recente Inventário do Azul (2022), todas pela editora Alfaguara. Suas histórias foram traduzidas para diversos idiomas, e ele já recebeu os prêmios Jabuti, APCA, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Fundação Biblioteca Nacional e os internacionais Guimarães Rosa e White Ravens.
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Neste mês, refletimos sobre o retorno da atividade turística a partir de novos mapas que fomentam a economia local e valorizam a diversidade cultural de uma região. Ao repensar o turismo, convidamos você a dobrar a esquina, descobrir outras narrativas e visitar novos universos dentro da sua própria cidade. Aproveite para conferir as novidades do processo de retomada dos roteiros do Turismo Social do Sesc São Paulo.
Além disso, a Revista E traz outros destaques em maio: uma reportagem que defende a importância do livre brincar como ação essencial para o desenvolvimento das crianças; um papo com a atriz e performer Denise Stoklos sobre processo criativo, velhice e família; um passeio visual pelos figurinos do CPT_SESC, centro teatral criado por Antunes Filho no Sesc Consolação; um depoimento com Sebastião Salgado sobre sua imersão na floresta, o que gerou a exposição Amazônia, no Sesc Pompeia; um perfil de Maria Firmina dos Reis, fundadora da literatura abolicionista no Brasil; um encontro com Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta e uma das principais vozes do empreendedorismo negro no país; um roteiro por espaços e projetos que praticam o acolhimento materno na capital paulista; o conto inédito As Substitutas, do escritor João Anzanello Carrascoza; e dois artigos que abordam conquistas e desafios da presença das mulheres indígenas na literatura.
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