Fotos: Ivan Bonifacil
Por Antonio Filogenio de Paula Junior*
O batuque de umbigada conhecido também como tambu ou caiumba, é uma tradição cultural afro-brasileira de origem bantu que se desenvolve no país desde o período escravista. A historiadora Linda Heywood (2010) diz que desde o séc.XVI se encontram registros de grupos étnicos da África bantu em território brasileiro.
A matriz étnico-linguística bantu é composta por um conjunto de etnias que desfrutam de diferenças culturais, mas também semelhanças, sobretudo linguísticas e outras ligadas a cosmovisão, o que indica uma base epistêmica que colabora no reconhecimento dessa proximidade. A extensão geográfica da presença bantu no continente africano é ampla percorrendo boa parte da África subsaariana até o extremo sul do continente.
É interessante pensar que esta amplitude geográfica se deu também nas Américas, em especial no Brasil, no qual a dispersão bantu acontece de norte a sul do país, deixando ao longo de todo território traços dessa cultura, constituída através da resistência ao processo de coisificação destinado aos escravizados. O sentido de vida dessas populações é viabilizado a partir da cultura dialogada entre as heranças africanas e a realidade local. Deste universo de (des) encontros surge muito do que é a cultura afro-brasileira. Para o antropólogo Kabengele Munanga (1996) até os elementos de organização social bantu foram compartilhados, entre eles está o próprio modelo dos quilombos.
Por conta dessa presença no Brasil, parte significativa do que representa a cultura afro-brasileira é de origem bantu. A capoeira, o samba, o jongo, a caiumba, a congada, o maracatu, entre outros são expressões do universo matricial bantu recriado no Brasil. De acordo com Bueno; Troncarelli e Dias (2015) os estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo são recebedores de escravizados de origem bantu e, ainda nos dias de hoje, são reservatórios de tradições específicas, algumas delas existentes apenas no sudeste.
A região do médio Tietê ou oeste paulista é o lugar que foi gestado o batuque de umbigada, sendo o seu principal local de desenvolvimento as fazendas de cana de açúcar e café. Esta região compreende vários municípios que durante décadas conseguiram manter viva esta tradição e, mesmo após a escravidão não deixou de sofrer perseguições e a consequente marginalização de sua prática.
Alguns municípios entre o início e meados do séc.XX foram gradativamente deixando de compor o circuito das cidades batuqueiras, pois os seus participantes foram sendo gradativamente diminuídos por conta de pressões internas e externas, entre elas o olhar punitivo e pecaminoso por parte da sociedade. Também outras necessidades forçaram migrações, fazendo com que praticamente fosse extinta a caiumba nessas localidades.
Porém, os municípios de Capivari, Piracicaba e Tietê protagonizam há décadas a iniciativa de juntar esforços para preservar a tradição da caiumba, sendo estes os municípios que de certo modo lideram as ações do grupo. Recentemente veio integrar o grupo o município de Rio Claro que retomou as atividades públicas do batuque em meados do ano 2000.
As cidades de São Paulo e Barueri também são inseridas no contexto das localidades herdeiras desta tradição por receberem uma quantidade expressiva de migrantes negros oriundos do interior em busca de melhores oportunidades e condições de trabalho. Alguns tentando fugir do preconceito racial existente nos municípios do interior paulista. Com isto, principalmente a capital São Paulo tornou-se através de alguns bairros o cenário batuqueiro na capital que tem como seus moradores mais antigos pessoas da região do médio Tietê.
A importância dessas pessoas se evidencia principalmente quando se faz o histórico da comunidade negra paulistana e algumas de suas organizações populares, entre elas as escolas de samba. A madrinha Eunice fundadora da Escola de samba Lava-pés era piracicabana e mantinha a tradição do batuque de umbigada, o mesmo acontece com o Sr. Toniquinho batuqueiro, sambista e compositor que participou da fundação de algumas escolas de samba paulistanas, como estes, uma série de pessoas fizeram a sua contribuição na constituição da cultura afro-paulista na capital do estado.
Para o historiador Noedi Monteiro (2018), um dos primeiros aspectos históricos referente à presença bantu no médio Tietê, refere-se ao fato de que a região foi a maior concentradora de mão de obra escravizada logo após a capital paulista, o que para a pesquisadora Gloria Cavaggioni (2018) revela o aporte cultural manifesto pelos bantus nesta região e a consequente existência da caiumba. A cidade de Campinas foi a que mais recebeu escravizados no interior paulista, seguida por Piracicaba.
Para Paula Junior (2014) pela tradição oral ou oralidade, a caiumba é transmitida de geração em geração. É uma tradição secular que não foi interrompida até os dias de hoje. Uma herança africana constituída no Brasil e mantida pela comunidade.
A preservação do batuque passou e ainda passa por desafios, entre eles destaca-se:
– a escravidão: posições contraditórias marcam este período, pois tanto perseguiu como em alguns casos permitiu a sua prática com interesses e objetivos sempre voltados ao olhar externo. Por exemplo, havia a restrição por parte da Igreja e de alguns senhores, mas também havia a tolerância como forma de abrandar os ânimos e descontentamentos no ambiente da senzala.
– pós-abolição: colocou o negro na condição da marginalidade, algo que se fez presente na monarquia e se mantém na república, momento em que as lutas por participação social e cidadania se tornam ainda mais marcantes. A abolição não estabelece condições de cidadania ao negro na sociedade brasileira.
Por conta dessa situação, a discriminação do negro representa a marginalização de suas culturas e a constituição do espaço geográfico na periferia das cidades se torna o processo de territorialização de práticas culturais. Os terreiros das fazendas são agora estabelecidos nos terreiros periféricos das cidades, locais em que a caiumba irá encontrar o espaço para sua existência, manifestação e transmissão. Em alguns casos, houve a apropriação de espaços centrais que se constituíram em áreas de resistência negra e, com isto, locais de preservação. Este é o caso dos clubes sociais negros organizados como sociedades beneficentes.
A maneira de lidar com as questões econômicas, o desinteresse por parte de alguns dirigentes públicos assim como a inserção dessas culturas no cenário tecnológico são hoje desafios colocados para se refletir os caminhos da manutenção e preservação da caiumba. No entanto, a tradição é viva como diz Hampaté Bâ (2010), e desse modo dialoga com o tempo presente com todos os seus desafios e é nesse cenário que ela, ao mesmo tempo em que é ameaçada, retoma o seu sentido.
Para procurar dar conta dessa demanda desafiadora foram surgindo ainda em meados dos anos 90 movimentos internos protagonizados pelos próprios batuqueiros, alguns entusiastas e pesquisadores no sentido tanto de ampliar os registros sobre a prática, a pesquisa e documentação, assim como o de garantir a transmissão dos mesmos aos mais jovens a partir de projetos educativos que atualmente estão em pleno desenvolvimento, um dos mais antigos, senão o mais antigo desta nova fase é o Projeto Casa de Batuqueiro iniciado em Piracicaba.
No conjunto de preocupações do projeto estão à preservação da tradição oral e dos valores epistêmicos de matriz bantu expressos na caiumba, entre eles a ancestralidade, a comunidade, a oralidade e a espiritualidade. Estes elementos são pilares de uma tradição que atravessa os séculos tendo como prioridade dar aos seus participantes uma unidade comunitária.
Nesta perspectiva a festa, termo utilizado pelos batuqueiros para dizer dos seus encontros, é o momento no qual a transmutação de algo ruim em bom e do sofrimento em alegria é realizado, momento em que pelo toque do umbigo a desarmonia é substituída pela harmonia e o equilíbrio pode ser restabelecido. Trata-se da recomposição do eu no mundo, do ser em suas várias dimensões se redescobrir em unidade e o entendimento de que somente se é com outro. Algo registrado na milenar filosofia ubuntu dos bantu.
A caiumba é um encontro ancestral, celebrativo da vida no qual os tambores = ngomas são os comunicadores dos mundos: material e espiritual, sempre conectados, são também uma representação da ancestralidade. Quando a mulemba / quinjengue, o tambu, a matraca e os guaiás começam a tocar estão realizando narrativas que evocam a sacralidade do tempo.
A festa do batuque é a festa da vida, a celebração dos encontros e a reunião dos cumbas, os mestres e mestras da palavra, que reorganizam a sociedade em comunidade contribuindo para uma imersão que inspira a comunhão entre as pessoas numa relação de horizontalidade. A caiumba conduz a experimentação concreta da vida comunitária, entendendo que somente se é junto, portanto uma ética que amplia a noção de mundo e de convivência.
A cada momento que é oportunizado os espaços de abertura e comunicação de práticas como a caiumba, se colabora diretamente tanto na preservação, divulgação das mesmas, como na constituição de uma humanidade ampliada e diversa, na qual a partir de diferentes experiências civilizatórias se pode reconhecer saberes e ampliar o conhecimento. Desse modo, potencializamos as condições de enfrentamento dos desafios contemporâneos que afligem a todos.
Nguzo!
*Antonio Filogenio de Paula Junior é batuqueiro, filósofo, mestre e doutorando em Educação
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Antônio e Vanderlei Benedito Bastos falam mais sobre o Batuque de Umbigada no vídeo:https://www.youtube.com/embed/ezODCnOxuJs
“É no tempo presente que as coisas acontecem e se recriam. No tempo presente eu celebro a memória dos antepassados e eu faço a crônica daqueles que estão aqui. Eu choro, eu rio e isso celebra a vida.”
O grupo Batuque de Umbigada abre o ciclo Percursos da Tradição do Sesc São Paulo. Estará no Sesc Itaquera (16/2), Campo Limpo (17/2) e 24 de Maio (23/2).
Leia mais sobre o assunto aqui.
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