Doce Jorge
por Caetano Veloso
De toda a cultura musical que se desenvolveu no pós-Beco-das-Garrafas, o samba-jazz virtuoso e inventivo, Jorge Helder é a expressão mais fiel – e, ao mesmo tempo, a mais pessoal e menos redutível ao padrão. Começa que Jorge é uma das melhores pessoas que conheci entre os músicos que há, sendo também um dos melhores músicos que há entre as pessoas.
Nesse seu álbum autoral, encontram-se a doçura e a mordacidade harmônica: aquela nunca é sufocada por esta. “Samba Doce”, que abre o disco e o nomeia, é um manifesto desse casamento perfeito na complicada música instrumental brasileira. Logo vem um afro-samba com acento de ijexá saudando Caymmi, com as palavras sempre certeiras de Aldir Blanc, na voz de Dori, o mais marítimo dos filhos de Dorival. O samba-ijexá sugere polirritmias. Daí vem a Orquestra Atlântica – cuja conjunção de atabaques com metais não deixa de mostrar parentesco com a Rumpilezz de Letieres – saindo, sempre em samba, de um seis-por-oito só no couro. Mas há o piano extraordinário de Stefano Bollani: quantos pianistas há ou houve que produzam notas de tão imensa clareza?
Clareza de toque, de timbre, de ideia de significado. Todas essas coisas que vou listando fazem jus à qualidade a um tempo sincera e cheia de intencionais surpresas das composições de Jorge. Mas aí chega Rosa Passos. A madrinha e namorada de todos os brasileiros amantes do jazz. Com sua voz inocente e escoladíssima, ela é a alma da música que atravessa todas as canções e peças de Jorge. Nessa, de que ela é parceira letrista, sua voz se esconde mágica e rebrilha natural. O Chico que canta o “Bolero Blues” é o grande músico que quase ninguém vê nesse letrista e escritor fluente e preciso. Se eu tivesse a capacidade de cantar com precisão essas notas inimagináveis de Jorge Helder, eu acho que não teria forças para me conter e não me entregar ao virtuosismo do instrumentista improvisador. Ele já vem (inclusive com a companhia de Jorge) mostrando em seus últimos discos quão supermúsico ele é.
Mas as palavras são tão fortes que a gente quer se pegar à Barão da Torre e à Vinicius de Moraes. Mas o letrista passa ao castelhano e suas palavras sobre um amor em Cuba se espalham pelas vozes do Boca Livre, o arranjo de Maurício Maestro sempre à altura da melodia hiper-harmônica de Jorge. Mas o letrista volta ao português, redizendo em nossa língua exatamente o que disse em espanhol, reencontrando as coincidências entre as duas línguas ibéricas. Isso só da parte que ouvi do disco de Jorge Helder. A música brasileira está em festa com esse lançamento. O samba-jazz mais do que redime-se: reinventa-se e purifica-se. Jorge é um dos pontos altos da nossa música popular. Refina a tradição de música instrumental e traz a canção para dentro dela como ninguém.
Ouça Samba Doce gratuitamente no Sesc Digital a partir de 18 de setembro e nas demais plataformas de streaming a partir de 23 de setembro.
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