Leia a edição de junho/22 da Revista E na íntegra
Ilustrações: Luyse Costa
O barco rasga o rio Negro em linha reta, como a tesoura de uma costureira cortando de um só golpe uma peça grande de tecido. Pedro nunca deve ter visto uma costureira na vida, Letícia se dá conta, menino de cidade grande não conhece costureira. O nariz prateado da proa embica e desce, embica e desce, quicando num ritmo que ela já apreendeu e reproduz mentalmente, até notar que a água se tornou barrenta – alcançaram o Amazonas. Para ver melhor o encontro entre os rios, ela pendura a bolsa no ombro, se levanta e vai para perto da cabine, onde um homem jovem com traços indígenas pilota a embarcação. São águas túrbidas e agitadas, impenetráveis. Quando ela se vira para voltar ao seu lugar, percebe-se observada por dois homens que bebem cerveja, uma mãe que amamenta e uma velha que limpa as unhas com um palito de churrasco. Sacolas, caixas e bolsas cheias de frutas e mantimentos se espalham pelo chão e em cima dos bancos. Só ela não leva quase nada, apenas uma maleta de viagem. Constrangida, Letícia enxuga a testa com o dorso da mão e tira os óculos escuros Ray-Ban antes de se sentar de novo.
Como Pedro veio parar aqui? Pensa em pegar na bolsa uma pastilha de menta, mas é uma lata de Altoids, importada, cara, que ela comprou na sala de embarque do aeroporto. Pode ofender a humildade dessas pessoas. Desiste. Careiro. Por que o nome do lugar é Careiro? Ela se lembra de quando Pedro tinha quinze anos e tomou uma cartela de diazepam. Na ocasião, ele explicou que seu desejo não foi morrer, mas conhecer outro mundo, melhor que este em que vivemos. Letícia é psiquiatra, então seguiu a cartilha, providenciando psicólogo, antidepressivos, ansiolíticos e um personal trainer para prática de atividade física regular. Mas Pedro continuava a repetir: não tenho fome de viver. Mesmo depois, na universidade, apesar da namorada e dos amigos, afirmava não gostar de nada. Por fim, Letícia sugeriu a eletroconvulsoterapia. O pai tinha outra mulher, outros filhos, não se envolvia muito, no entanto, quando soube disso, reprovou: quer dar choque na cabeça do menino? Você fala como se eu estivesse propondo uma lobotomia, mas esses eletrochoques hoje são humanizados. Ela tentou explicar o procedimento, mas pai e filho acharam monstruoso. Você me odeia mesmo, Pedro disse. E Letícia se calou, todos se calaram. O assunto desapareceu e aquela tristeza se tornou parte da paisagem.
Não é um porto, mas uma rampa em que o barco monta até parar com o focinho para cima. Um dos sujeitos envolvidos naquele negócio para com a mão estendida aos passageiros. Um a um, descem homens e mulheres com suas bagagens. O barco balança e Letícia entontece, se agarrando com força àquela mão, que permanece aberta com a palma para cima e os dedos levemente arqueados, firme como um pilar. Ela percebe que não devia ter apertado, apenas se apoiado depressa, como os demais passageiros, sente-se ingênua e um pouco ridícula. Obrigada, ela diz, mas o homem não responde. Em terra firme, olha para um conjunto de casas de madeira equilibradas sobre palafitas, para um pasto alto e verde à esquerda e para uma pequena feira, onde todos parecem feirantes e ela, a única cliente. O rio Amazonas está baixo, ao invés de água e vitórias-régias, há mato e lixo sob e ao redor das casas. Letícia enxuga um buço de suor e sacode a camisa empapada antes de seguir em frente.
Nas bancas mirradas da feira, há frutas que ela nunca viu e cujos nomes desconhece – tucumã, pupunha, bacaba –, peixes frescos fora do gelo, farinhas de várias gramaturas e peças de carne cravejadas de moscas. As carnes estão escurecidas, ressecadas, terríveis e são indolentemente espanadas por um velho sem camisa. Ele não usa espanador, mas um galho com um saco rasgado na ponta. É para esse homem que ela pergunta pela casa de Genilson. O velho indica uma calçadinha de madeira, também sobre palafitas, e fala para que siga naquela direção. Genilson mora perto de um bar, quando acabam as casas. Quando acabam as casas? É, lá no final. Ela agradece nervosa. Pensa que pode ser uma armadilha, melhor confirmar com outra pessoa. Ah, vou dar uma volta primeiro, obrigada. E parte para o lado oposto. Caminha sobre palafitas até o pasto, onde os bois e as vacas ruminam e as andorinhas se perfilam em fios de eletricidade. Bebe um gole da água que levou e retorna. Pergunta à primeira mulher que encontra sobre a casa de Genilson e recebe a mesma resposta, que ele mora perto de um bar. Bom, então é verdade. Letícia avança por entre as casinhas de madeira, investigando portas abertas, intimidades, desconfiada dos que cruzam seu caminho sem devolver bom dia. Teme um assalto ou um sequestro, disseram com muita ênfase que é perigoso uma mulher sozinha na Amazônia. Passa repetidamente pelas mesmas casas até perceber que se perdeu. Além de insegura, está aflita com os cães sarnentos que circulam mutilados e irritada com as crianças que passam correndo e por pouco não a empurram lá embaixo, em cima do lixo, mas caminha, caminha até encontrar o bar.
A calçada acaba onde um casebre sem pintura se equilibra vesgo, com uma janela mais baixa que a outra. De fato, não há nada depois – só pode ser a casa de Genilson. Letícia vê um rapaz sem camisa aparecer à porta. É o menino que ela pariu, negro de sol, descalço e tão magro quanto Cristo. Ele caminha para a mãe num abraço, dois palmos mais alto que ela. Choram, sem escândalo, e se apalpam. Fez boa viagem, mãe?
Ah, sim, muito boa. Vem, ele diz, tomando a maleta que ela carregava. Parece tão tranquilo, cheio de uma maturidade que beira à indiferença e que Letícia desconhece. Na casa, ela é apresentada a Genilson, um homem de uns sessenta anos, cor de cobre, com nariz de chuchu e cego de um olho. Vê redes, remos e outros apetrechos embolorados de pesca junto às paredes, com certeza instrumentos de trabalho. Então é aqui que você está morando? É, sim. Eu nunca imaginaria, se você não tivesse dito. Letícia examina cada canto, sem acreditar que Pedro largou os estudos para viver entre tábuas, sem geladeira, sem tevê, na companhia de um bruto. Meu filho, por quê? Ela sabe que começar assim não é estratégico, mas não conseguiu evitar. Pedro balança a cabeça como a mãe balançava quando ele era pequeno e falava bobagem. Talvez porque eu seja feliz aqui, mãe. Ela olha para Genilson, que exibe a alegria de seus poucos dentes, o olho cego brilhando um azul impossível. Aqui? Sim, aqui, o filho responde. Depois de desaparecer por dois anos, de quase matá-la de preocupação, ele fala em felicidade. Letícia passa as mãos pelas têmporas, caminha até a janela, onde vê o Amazonas se estender licoroso de tão turvo. Ouve os motores distantes dos barcos, o cacarejar das galinhas embaixo das palafitas, as andorinhas. Uma lágrima pesada escorre. Pedro oferece uma cadeira, prestativo como jamais esteve, irreconhecível. Ela seca o rosto depressa, antes que o filho perceba que está chorando. Depois se abana e sorri como se gostasse, como se entendesse. Ufa, ela diz. Faz um calor desgraçado.
PAULLINY TORT é escritora e seu romance de estreia, Allegro ma non troppo (Oito e Meio, 2016), foi semifinalista do Prêmio Oceanos, em 2017. Erva Brava (Fósforo, 2021), seu primeiro livro de contos, reúne doze histórias que orbitam Buriti Pequeno, cidade fictícia incrustada no coração de Goiás.
A EDIÇÃO DE JUNHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Nesta edição, celebramos os 30 anos da ECO-92, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento que, no começo da década de 1990, propôs uma série de debates e compromissos dos quase 180 países participantes com a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente. Nesta reportagem, propomos um resgate histórico sobre os marcos e conquistas ambientais no Brasil e no mundo e revelamos quais os ecos da ECO-92 três décadas depois de sua realização.
Além disso, a Revista E de junho traz outros destaques: uma reportagem que destaca a diversidade de estilos, formações e técnicas na produção contemporânea de música de câmara; uma entrevista sobre parentalidade com a psicanalista Vera Iaconelli; um depoimento de Zezé Motta sobre os mais de 50 anos de carreira; um passeio visual pelas obras da exposição Xilograffiti, em cartaz no Sesc Consolação; um perfil de Lygia Fagundes Telles, um dos maiores nomes da literatura brasileira; um encontro com Marcio Atalla, que defende a adoção de uma vida mais ativa para o bem-estar a e saúde a longo prazo; um roteiro por 5 espaços que celebram a cultura japonesa em SP; o conto inédito “Careiro”, assinado pela escritora Paulliny Tort; e dois artigos que celebram o legado do sociólogo e crítico literário Antonio Candido.
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