Depois de mais um ano de pandemia e 500 mil vidas interrompidas, está evidente que o enfrentamento a COVID-19 foi um fracasso no Brasil. A crise sanitária, política e econômica é resultado principalmente da aposta do governo federal no negacionismo e na imunidade de rebanho. Essa estratégia, no mínimo perversa, já foi destrinchada por outros autores, sendo objeto inclusive de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em curso no Senado Federal. Quero explorar aqui outras questões, que dizem respeito ao enfrentamento da pandemia na escala local, das cidades e nos bairros.
Evidente que a ausência de uma articulação nacional e a política negacionista gerou impactos em todas as escalas, mas aqui quero explorar especificamente os equívocos das políticas públicas municipais no enfrentamento à pandemia. Esses equívocos e limites passam, em boa medida, pelo fato de que o desenho e a implementação das políticas públicas são descolados dos territórios e das reais demandas e necessidades da população. Políticas públicas são construídas, de maneira geral, de cima para baixo. Funcionam como produtos, elaborados e implementadas a partir de uma perspectiva que desconsidera as especificidades e contextos presentes nos diferentes lugares da cidade. Embora essa problemática seja anterior, a crise gerada pela COVID-19 escancarou como é urgente superá-la.
Desde o começo da pandemia ficou evidente que alguns territórios eram mais afetados do que outros, tanto nos níveis de mortalidade e hospitalização, quanto nos impactos de ordem econômica e social. Ou seja, a pandemia tem uma expressão territorial e a disseminação do vírus e seus impactos são distintos nos diferentes lugares da cidade. As populações mais expostas ao vírus foram em um primeiro momento os trabalhadores da linha de frente, e isso não se resume somente aos médicos, mas também a profissionais de enfermagem, recepção, segurança, manutenção e limpeza dos hospitais; bem como uma imensa força de trabalho que nunca (ou pouco) parou nesse período – garis, diaristas, motoristas de ônibus, entre outros. Nas cidades brasileiras, são esses(as) trabalhadores(as), majoritariamente negros e residentes nas periferias e territórios populares, que pagaram (e ainda pagam) o preço mais alto dessa pandemia.
Embora fosse de conhecimento geral que os impactos da pandemia seriam distintos e maiores nos territórios em que residem os trabalhadores dos serviços essenciais, nos municípios brasileiros em geral as políticas de enfrentamento à pandemia não foram pautadas por estratégias territorializadas que protegessem as pessoas e territórios mais expostos ao vírus. São exemplos do que poderia ter sido feito: distribuição de máscaras pff-2 em terminais e locais com grande circulação de trabalhadores; testagem e identificação dos bairros e lugares onde o ciclo de contágio está mais avançado – informação necessária para subsidiar ações específicas de proteção e cuidado a essa população; rastreamento de contatos estabelecidos por quem testou positivo para COVID-19 e garantia de condições de isolamento para quem precisa; acompanhamento comunitário das populações mais vulneráveis, com atuação combinada entre agentes comunitários de saúde e lideranças territoriais.
O desenho de uma estratégia territorializada de enfrentamento a pandemia exige a utilização de cartografias e ferramentas de mapeamento para monitorar e controlar o ciclo de contágio pela doença. As cartografias deveriam ser um dos instrumentos principais no combate ao coronavírus, já que constituem a base de uma estratégia voltada à proteger as pessoas mais vulneráveis. A partir de ações como as mencionadas acima poderíamos ter evitado que mais pessoas fossem contaminadas e por consequência evitar o colapso do sistema de saúde. Além dos mapas e de bons “diagnósticos” territoriais, para construir uma política territorializada é necessário a participação direta e efetiva dos atores locais: organizações comunitárias, movimentos sociais e coletivos. Para compreender as dinâmicas de cada território é fundamental reconhecer os conhecimentos e as práticas locais.
Na contramão do Estado, verificamos uma efervescente produção de cartografias por grupos locais, que mobilizaram mapas com objetivos distintos para reduzir os impactos da pandemia na escala local: desde a identificação de casos de covid em uma quebrada ou favela; até o mapeamento e mobilização de redes de solidariedade, facilitando doações e viabilizando ações de cuidado e proteção. Esse conjunto de cartografias da pandemia reforçam o fato de que nos territórios vulneráveis não existem somente ausências, mas também potências e tecnologias. Entretanto, as políticas públicas desenhadas de cima para baixo desconsideram e até desperdiçam esse potencial.
A cartografia, como conhecimento estratégico, serviu em primeiro lugar para fins militares e de dominação (LACOSTE, 1988), mas também pode ser utilizada para libertar. No Brasil, esse uso contra-hegemônico dos mapas ganha força com as cartografias sociais, um conjunto de metodologias para a elaboração de mapeamentos coletivos, onde as comunidades passam a ter autonomia para realizar suas próprias leituras territoriais. Um dos trabalhos pioneiros no âmbito da cartografia social está descrito na publicação “Carajás: a guerra dos mapas” (ALMEIDA, 1993), que denuncia as violações contra os povos indígenas e identifica os aparatos do Estado em coalizão com interesses industriais e privados no âmbito do “Projeto Grande Carajás”, em região localizada entre os estados do Maranhão, Pará e Tocantins.
A cartografia social provoca um alargamento do campo cartográfico, ao passo que outros atores se apropriam dessas técnicas e passam a produzir cartografias. Trata-se de um exemplo importante da atuação da universidade como agente transformador da realidade, já que a partir dessa colaboração foram produzidas inúmeras cartografias que não só denunciam a lógica do saber-poder cartográfico, mas que também projetam ou prefiguram uma “geografia desejada” (Milton Santos, In: BARROS, 2016). Um exemplo disso é trabalho desenvolvido pelo projeto a “Nova Cartografia Social da Amazônia”.
A cartografia como ferramenta de luta, resultante do legado das cartografias sociais, ganha outra escala a partir dos sistemas de informação geográficos. Isso mais recentemente, a partir dos anos 2000. Às ferramentas digitais e online de mapeamento ampliaram significativamente as possibilidades de produzir cartografias, implicando inclusive no surgimento de “ativismos cartográficos” (SANTOS, 2011). Projetos como “Observatório de Remoções”, “De Olho nos Ruralistas”, são exemplos disso.
Há muito tempo que as cartografias são mobilizadas como instrumentos no combate a epidemias e emergências de saúde coletiva. Entretanto, a efervescente produção de cartografias ativistas voltadas enfrentamento de uma pandemia é uma novidade. Cito aqui alguns exemplos de trabalhos realizados no contexto pandêmico e que envolviam mapeamentos para: (i) denunciar e dar visibilidade aos impactos da pandemia; (ii) potencializar as redes de solidariedade; e (iii) subsidiar estratégias autogestionadas para proteção e cuidado.
Denunciar e dar visibilidade aos impactos da pandemia: os trabalhos desenvolvidos pelos projetos Redes da Maré (Maré, Rio de Janeiro/RJ)” e De Olho na Quebrada (UNAS Heliópolis, São Paulo/SP) mostram a potência das cartografias para denunciar violações de direitos humanos e dar visibilidade aos impactos da pandemia em escala local. No Rio de Janeiro, Redes da Maré fez uma série de boletins denunciando a subnotificação de casos confirmados e óbitos por Covid-19 e os equívocos dos mapas institucionais sobre a favela da Maré.
Em São Paulo, os jovens do projeto De Olho na Quebrada se debruçaram sobre os impactos da pandemia em Heliópolis, produzindo uma série de pesquisas sobre emprego e renda, saúde alimentar e especialmente sobre o “Acesso à Internet na Pandemia” que reforça urgência do direito à internet com qualidade, no momento em que às atividades escolares e profissionais dependem em grande medida desse serviço.
Potencializar as redes de solidariedade: grupos de pesquisadores e/ou cyberativistas mapearam iniciativas com objetivo de divulgar e facilitar doações de dinheiro, alimentos e insumos de proteção. Por exemplo, a Rede de Apoio Humanitário nas e das Periferias procurou estabelecer conexão entre iniciativas locais, com apoio logístico e criação de um aplicativo que conecta apoiadores e iniciativas locais na Região Metropolitana de São Paulo. Já o Instituto Marielle Franco lançou o Mapa Corona nas Periferias com objetivo de dar visibilidade às iniciativas de combate contra o coronavírus nas favelas e periferias do Brasil. Outro exemplo é a “Plataforma das práticas colaborativas de combate à covid-19 e das redes de solidariedade”, ferramenta colaborativa que mapeou mais de duas mil iniciativas da sociedade civil e de universidades em todo o Brasil.
Na escala local, o Mapa Maloqueiro das Bocas de Rango, elaborado em parceria pelo Mundaréu da Luz e Coletivo Paulestinos, criou uma ferramenta para que a população das ruas do centro de São Paulo pudesse localizar as “bocas de rango” com maior facilidade. As bocas de rango, na linguagem da rua, são os lugares onde se consegue uma refeição gratuita. O mapa que virou lambe-lambe orientou sobre quais as bocas de rango abertas durante os primeiros meses da pandemia, momento em que muitas delas ficaram fechadas.
Subsidiar estratégias autogestionadas para proteção e cuidado: mapas também subsidiaram iniciativas de organizações locais para proteção e cuidado da população mais vulnerável. Um exemplo bastante interessante é protagonizado pela rede de cursinhos comunitários da Uneafro, que realizou uma formação online e capacitou Agentes Populares de Saúde que atuaram nos territórios onde ficam os núcleos do cursinho popular. Outro exemplo é a atuação dos presidentes de rua, na favela de Paraisópolis, lideranças mapeadas pela associação de moradores que foram responsáveis pela identificação e monitoramento de pessoas idosas ou com comorbidades no seu território de atuação específico. Também precisa ser mencionada aqui a em colaboração de organizações comunitárias que em parceria realizaram a testagem em massa e rastreamento comunitário no complexo da Maré, o que reduziu a mortalidade por COVID-19 em 60% nesse território.
Esse texto não tem pretensão de mapear a totalidade dos ativismos cartográficos na pandemia, mas sim refletir acerca dos processos e dos usos dessas cartografias no contexto atual. Entretanto, é curioso perceber um ponto comum em todos os trabalhos mencionados: o fato de representarem as favelas e periferias sob o prisma das potencialidades, não apenas das ausências e carências como é de praxe das cartografias e diagnósticos “oficiais”.
O contexto pandêmico escancarou não só conflitos e desigualdades como também a capacidade de auto organização de comunidades. Mesmo com poucos recursos e poucos incentivos por parte do poder público, movimentos e coletivos mobilizam os saberes locais e realizam iniciativas territorializadas para o enfrentamento a COVID-19. Evidentemente que sozinhas essas organizações comunitárias não tem condições de superar todos os desafios existentes, as políticas públicas são fundamentais, a questão é: de que políticas públicas estamos falando? Os aprendizados acumulados ao longo da pandemia deixaram evidente que as políticas atuais, desconectadas dos territórios e de suas potências, não são suficientes. Ousar não é só possível, mas necessário.
Referências bibliográficas:
ACSELRAD, Henri. Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2008.
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Carajás: a guerra dos mapas. Belém: Falangola Editora, 1993.
BARROS, Ana Maria Leite (Tradução). Resposta de Milton Santos as Questões de Michel Foucault à revista Hérodote e respostas dos geógrafos. Vitória/ES, Geografares (UFES), 2016 (pp. 16-17)
LACOSTE, Yves. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a Guerra. Campinas: Ed. Papirus, 1988.
SANTOS, Renato Emerson dos. Ativismos cartográficos: notas sobre formas e usos da representação espacial e jogos de poder. Costa Rica: Revista Geográfica da América Central, 2011.
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