Leia a edição de julho/22 da Revista E na íntegra
Já faz 33 anos desde que Gabriel Villela estreou como diretor de teatro em Você vai ver o que você vai ver, do escritor francês Raymond Queneau, com Rosi Campos no elenco. De lá para cá, o mineiro de Carmo do Rio Claro, formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), chegou à marca de 50 espetáculos à frente da direção. Esse feito foi obtido com Henrique IV, adaptação do texto centenário do dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936) que esteve em cartaz entre abril e junho, no Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana.
Ao longo de três décadas, Villela já dirigiu grandes nomes das artes cênicas, a exemplo de Ruth Escobar, Laura Cardoso, Walderez de Barros, Beatriz Segall, Marieta Severo, Elias Andreato e Celso Frateschi. Levou para os palcos musicais de Chico Buarque e obras de William Shakespeare, Henrik Ibsen, Albert Camus, Goethe, Schiller, Nelson
Rodrigues e João Cabral de Melo Neto, entre outros autores. Além disso, trabalhou com companhias renomadas, como Grupo Galpão, Clowns de Shakespeare e o núcleo de atores do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).
De Pirandello, Villela já havia dirigido o Galpão em Os Gigantes da Montanha, montagem que passou por unidades do Sesc São Paulo (como Pinheiros e Ipiranga), em 2013. Em seu mais recente espetáculo, dividido em três atos e orquestrado por clássicos dos grupos Queen, Supertramp e Bee Gees, a história gira em torno da coexistência entre sanidade e loucura. É contada por uma companhia de circo mambembe que evidencia como todos nós, do lado de cá do palco, também representamos diferentes papéis. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista que Villela concedeu recentemente à equipe do Sesc Vila Mariana.
Eu nem sabia disso, alguém andou contando [o número de peças dirigidas por Villela]. Apesar de parecer “pesado”, por ser “bodas de ouro” e um prenúncio de velhice, [é algo] que nesta área me dá um gosto especial porque, quanto mais velho o vinho, melhor. Eu espero não azedar? Mas, normalmente, não faço essas contagens. A gente conta os dias de trabalho, as peças que vão se antecedendo, sucedendo. Essa dinâmica de outra maneira, não é por um tempo cronológico. Um tempo, talvez, emocional. As peças caminham muito em função do cronograma político e social brasileiro. A contagem numérica fica de lado. É um casamento com o teatro, um casamento de “bodas de ouro”. Uma vida, né? Uma vida alquímica, [sendo o] ouro o elemento principal da alquimia.
Tive quase dois anos de teatro italiano muito intensos na USP. Pirandello foi o autor que a minha equipe estudou e elegeu como pesquisa. E esse jogo, de espelhamento que está nele e já vinha para mim dentro da obra do [escritor argentino Jorge Luis] Borges, é muito forte. A gente [eu e meu pai] lia o que era possível do Borges lá em Minas Gerais. Então cheguei pela metafísica do Borges e encontrei um grande libertador [Pirandello]. Um homem que liberta o
teatro no auge do realismo contemporâneo, na virada do século 19 para o 20, com as problemáticas da época. Ele morreu no comecinho da Segunda Guerra Mundial, mas viveu o baque da Primeira Guerra. E também viveu complicações sociais com a história de Mussolini, viveu um período apaixonado por uma grande diva, Marta Abba, que foi para quem escreveu determinados personagens, [segundo] uma parte da crítica supõe. E está na cara que esse
grande amor o levou a montar uma companhia de teatro. A gente usa da metalinguagem explícita nas obras dele, dessa fase amorosa.
Depois do segundo espetáculo [que dirigi do Grupo Galpão], que foi A Rua da Amargura, após Romeu e Julieta, escolhemos algo que seria impossível de colocar em praça pública: a última peça do Pirandello, Os Gigantes da Montanha, uma peça inconclusa. A gente chegou a fazer [a encenação] para 15 mil pessoas, na Pampulha, e para 7 mil pessoas por noite na Praça do Papa [em Belo Horizonte]. Havia um silêncio de morte, um silêncio de frio gelado. As pessoas [estavam] concentradas, e não é uma peça de fácil intelecção. Aliás, nenhuma peça dele [Pirandello] é fácil, porque [há] a característica de escavação, de textos estratificados, com vários níveis de leitura e abordagem. É preciso que a pessoa esteja muito acostumada a praticar metáforas, figuras de construção literária.
Então, chega-se a um determinado momento, tanto em Os Gigantes da Montanha, quanto agora [em Henrique IV], em que você não sabe em que ponto da história está. Ele [o autor] está brincando com as nossas fronteiras, com os limites de intelecção do texto. A gente sabe, por definição, que toda fronteira é tensa. Ele faz isto com a gente: enquanto não atravessamos as paredes, a sensação é de que Pirandello bota esses personagens todos dentro de um quartinho de asfixia, de ausência de ar. E o público vai sentindo a mesma coisa. Eu gosto muito dessas peças que nos jogam para vários ângulos, caminhos e espelhos. Pirandello é “abominável”, [assim] como o espelho e a cópia, porque reproduz o gênero humano como Shakespeare, como os gregos.
Henrique IV é muito rock and roll. Ele [o protagonista, que após um acidente de cavalo acredita ser o imperador romano-germânico, que viveu entre os séculos 11 e 12] transgrediu, foi excomungado pelo papa [Gregório 7]. Embora eu não conheça nenhum roqueiro que tenha sido excomungado por um papa, o caráter transgressor do personagem é muito grande. O rock and roll surgiu como canções de época, hits mesmo, desse período [dos anos] 1960, 1970, 1980. Canções muito conhecidas do grande público. Toda música tem a ver com o processo do melodrama do circo-teatro, [no qual há] uma canção que abre com o tema da cena, ou uma canção que arremata a cena, prestigiando o tema central. A ideia do circo veio depois, quando a gente falava da metalinguagem. É uma arquitetura cênica. Então, a gente optou pela metalinguagem e, com ela, colocar um circo, que é uma referência muito forte em termos estéticos, algo que eu pesquiso há bastante tempo e que cabia muito bem. O palco é uma carroça da commedia dell’arte com um trono dentro.
Henrique IV é um texto que trata de máscaras, de personas. O autor não dá uma máscara para cada personagem, ele dá várias. E a menor máscara do mundo é o nariz de palhaço, de clown. A partir delas, você começa a aplicar valores – por exemplo, um vilão. Mas, nada é de verdade, e ele [o autor] trabalha com ambiguidades o tempo inteiro. A base da máscara é japonesa, o pancake branco que nega, que anula as características do ator para ressaltar o design do personagem ou do tipo. Na tragédia grega [por exemplo], como as mulheres não podiam entrar em cena por questões sociais, os homens faziam as mulheres [daí a importância das máscaras].
O figurino é de corte medieval. Nos palhaços, a gente põe golas elisabetanas [da época de Shakespeare]. A roupa tenta trazer uma percepção que anula o corpo, que o cobre. É uma roupa antropológica que está ligada a um momento da História do homem. Pirandello, assim como Shakespeare, tem uma fantasmagoria muito própria. E a primeira parte [da peça] é toda fantasmagórica: uma companhia toda de branco. São camisolas brancas [que os atores usam], até que os personagens recebem as [suas próprias] roupas [em araras postas em cena]. A gente acabou trazendo as roupas e vestindo os personagens (…) aos olhos da plateia. Na pandemia, eu estava num sítio em Minas, com uma tia, e a gente começou a “riscar” esses figurinos.
Assista ao vídeo dessa entrevista com o diretor Gabriel Villela, disponível, em duas partes, no Instagram do Sesc Vila Mariana: PARTE 1 / PARTE 2
A EDIÇÃO DE JULHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Neste mês, quando o Sesc São Paulo promove mais uma edição do FestA! – Festival de Aprender, celebramos a ludicidade dos jogos analógicos e revelamos que, apesar do surgimento de novas tecnologias, eles atravessam gerações, atualizando-se em temas e formatos, incorporando narrativas inovadoras e estimulando o aprendizado. Nossa reportagem principal prova que o jogar, ato que perpassa todas as fases da vida, compõe uma importante parte da existência humana e contribui para o exercício da socialização e o amadurecimento de nossa criatividade.
Além dessa reportagem, a Revista E de julho traz outros conteúdos: um texto que convida o leitor a uma imersão na Trilha do Sentir, passeio sensorial e acessível em meio à restinga, na Reserva Natural Sesc Bertioga; uma entrevista com o professor e pesquisador Fernando José de Almeida sobre caminhos para a educação na era digital; um depoimento do diretor mineiro Gabriel Villela sobre dramaturgia, direção e seus 30 anos de casamento com o teatro; um passeio fotográfico pelas obras da exposição, em cartaz no Sesc Bom Retiro, que celebra as experimentações do artista Penna Prearo; um perfil de Yara Bernette (1920-2002), um dos grandes nomes brasileiros do piano no século XX; um encontro com Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital que defende não haver mais divisão entre vida on e offline; um roteiro por 5 passeios divertidos e educativos nas unidades do Sesc SP para fazer com a criançada no mês das férias; quatro poesias inéditas assinadas assinadas pelo artista Ricardo Aleixo; e dois artigos, assinados por Sueli Angelo Furlan e Thaise Costa Guzzatti, que refletem sobre o Turismo de Base Comunitária.
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