CASAMENTO COM O TEATRO | Depoimento de Gabriel Villela

30/06/2022

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Leia a edição de julho/22 da Revista E na íntegra

COM MONTAGEM DE HENRIQUE IV, DE PIRANDELLO, NO SESC VILA MARIANA, DIRETOR MINEIRO GABRIEL VILLELA CELEBRA 50 ESPETÁCULOS EM TRÊS DÉCADAS

Já faz 33 anos desde que Gabriel Villela estreou como diretor de teatro em Você vai ver o que você vai ver, do escritor francês Raymond Queneau, com Rosi Campos no elenco. De lá para cá, o mineiro de Carmo do Rio Claro, formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), chegou à marca de 50 espetáculos à frente da direção. Esse feito foi obtido com Henrique IV, adaptação do texto centenário do dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936) que esteve em cartaz entre abril e junho, no Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana.

Ao longo de três décadas, Villela já dirigiu grandes nomes das artes cênicas, a exemplo de Ruth Escobar, Laura Cardoso, Walderez de Barros, Beatriz Segall, Marieta Severo, Elias Andreato e Celso Frateschi. Levou para os palcos musicais de Chico Buarque e obras de William Shakespeare, Henrik Ibsen, Albert Camus, Goethe, Schiller, Nelson
Rodrigues
e João Cabral de Melo Neto, entre outros autores. Além disso, trabalhou com companhias renomadas, como Grupo Galpão, Clowns de Shakespeare e o núcleo de atores do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).

De Pirandello, Villela já havia dirigido o Galpão em Os Gigantes da Montanha, montagem que passou por unidades do Sesc São Paulo (como Pinheiros e Ipiranga), em 2013. Em seu mais recente espetáculo, dividido em três atos e orquestrado por clássicos dos grupos Queen, Supertramp e Bee Gees, a história gira em torno da coexistência entre sanidade e loucura. É contada por uma companhia de circo mambembe que evidencia como todos nós, do lado de cá do palco, também representamos diferentes papéis. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista que Villela concedeu recentemente à equipe do Sesc Vila Mariana.

“BODAS DE OURO”

Eu nem sabia disso, alguém andou contando [o número de peças dirigidas por Villela]. Apesar de parecer “pesado”, por ser “bodas de ouro” e um prenúncio de velhice, [é algo] que nesta área me dá um gosto especial porque, quanto mais velho o vinho, melhor. Eu espero não azedar? Mas, normalmente, não faço essas contagens. A gente conta os dias de trabalho, as peças que vão se antecedendo, sucedendo. Essa dinâmica de outra maneira, não é por um tempo cronológico. Um tempo, talvez, emocional. As peças caminham muito em função do cronograma político e social brasileiro. A contagem numérica fica de lado. É um casamento com o teatro, um casamento de “bodas de ouro”. Uma vida, né? Uma vida alquímica, [sendo o] ouro o elemento principal da alquimia.

PIRANDELLO E BORGES

Tive quase dois anos de teatro italiano muito intensos na USP. Pirandello foi o autor que a minha equipe estudou e elegeu como pesquisa. E esse jogo, de espelhamento que está nele e já vinha para mim dentro da obra do [escritor argentino Jorge Luis] Borges, é muito forte. A gente [eu e meu pai] lia o que era possível do Borges lá em Minas Gerais. Então cheguei pela metafísica do Borges e encontrei um grande libertador [Pirandello]. Um homem que liberta o
teatro no auge do realismo contemporâneo, na virada do século 19 para o 20, com as problemáticas da época. Ele morreu no comecinho da Segunda Guerra Mundial, mas viveu o baque da Primeira Guerra. E também viveu complicações sociais com a história de Mussolini, viveu um período apaixonado por uma grande diva, Marta Abba, que foi para quem escreveu determinados personagens, [segundo] uma parte da crítica supõe. E está na cara que esse
grande amor o levou a montar uma companhia de teatro. A gente usa da metalinguagem explícita nas obras dele, dessa fase amorosa.

MUITAS CAMADAS

Depois do segundo espetáculo [que dirigi do Grupo Galpão], que foi A Rua da Amargura, após Romeu e Julieta, escolhemos algo que seria impossível de colocar em praça pública: a última peça do Pirandello, Os Gigantes da Montanha, uma peça inconclusa. A gente chegou a fazer [a encenação] para 15 mil pessoas, na Pampulha, e para 7 mil pessoas por noite na Praça do Papa [em Belo Horizonte]. Havia um silêncio de morte, um silêncio de frio gelado. As pessoas [estavam] concentradas, e não é uma peça de fácil intelecção. Aliás, nenhuma peça dele [Pirandello] é fácil, porque [há] a característica de escavação, de textos estratificados, com vários níveis de leitura e abordagem. É preciso que a pessoa esteja muito acostumada a praticar metáforas, figuras de construção literária.

Então, chega-se a um determinado momento, tanto em Os Gigantes da Montanha, quanto agora [em Henrique IV], em que você não sabe em que ponto da história está. Ele [o autor] está brincando com as nossas fronteiras, com os limites de intelecção do texto. A gente sabe, por definição, que toda fronteira é tensa. Ele faz isto com a gente: enquanto não atravessamos as paredes, a sensação é de que Pirandello bota esses personagens todos dentro de um quartinho de asfixia, de ausência de ar. E o público vai sentindo a mesma coisa. Eu gosto muito dessas peças que nos jogam para vários ângulos, caminhos e espelhos. Pirandello é “abominável”, [assim] como o espelho e a cópia, porque reproduz o gênero humano como Shakespeare, como os gregos.

Chico Carvalho (ao centro) interpreta Henrique IV no espetáculo homônimo, que tem cenografia de J.C. Serroni e esteve em cartaz no Sesc Vila Mariana, de abril a junho de 2022. Foto: João Caldas.
Chico Carvalho (ao centro) interpreta Henrique IV no espetáculo homônimo, que tem cenografia de J.C. Serroni e esteve em cartaz no Sesc Vila Mariana, de abril a junho de 2022. Foto: João Caldas Filho.

REPERTÓRIO MUSICAL

Henrique IV é muito rock and roll. Ele [o protagonista, que após um acidente de cavalo acredita ser o imperador romano-germânico, que viveu entre os séculos 11 e 12] transgrediu, foi excomungado pelo papa [Gregório 7]. Embora eu não conheça nenhum roqueiro que tenha sido excomungado por um papa, o caráter transgressor do personagem é muito grande. O rock and roll surgiu como canções de época, hits mesmo, desse período [dos anos] 1960, 1970, 1980. Canções muito conhecidas do grande público. Toda música tem a ver com o processo do melodrama do circo-teatro, [no qual há] uma canção que abre com o tema da cena, ou uma canção que arremata a cena, prestigiando o tema central. A ideia do circo veio depois, quando a gente falava da metalinguagem. É uma arquitetura cênica. Então, a gente optou pela metalinguagem e, com ela, colocar um circo, que é uma referência muito forte em termos estéticos, algo que eu pesquiso há bastante tempo e que cabia muito bem. O palco é uma carroça da commedia dell’arte com um trono dentro.

JOGO DE MÁSCARAS

Henrique IV é um texto que trata de máscaras, de personas. O autor não dá uma máscara para cada personagem, ele dá várias. E a menor máscara do mundo é o nariz de palhaço, de clown. A partir delas, você começa a aplicar valores – por exemplo, um vilão. Mas, nada é de verdade, e ele [o autor] trabalha com ambiguidades o tempo inteiro. A base da máscara é japonesa, o pancake branco que nega, que anula as características do ator para ressaltar o design do personagem ou do tipo. Na tragédia grega [por exemplo], como as mulheres não podiam entrar em cena por questões sociais, os homens faziam as mulheres [daí a importância das máscaras].

Fazem parte da montagem Henrique IV várias menções contemporâneas, como o figurino e a maquiagem no estilo dos filmes do diretor italiano Federico Fellini, e canções de bandas como Queen e Bee Gees, interpretadas pelos atores. Foto: João Caldas Filho.
Fazem parte da montagem Henrique IV várias menções contemporâneas, como o figurino e a maquiagem no estilo dos filmes do diretor italiano Federico Fellini, e canções de bandas como Queen e Bee Gees, interpretadas pelos atores. Foto: João Caldas Filho.

ESCOLHA DE FIGURINO

O figurino é de corte medieval. Nos palhaços, a gente põe golas elisabetanas [da época de Shakespeare]. A roupa tenta trazer uma percepção que anula o corpo, que o cobre. É uma roupa antropológica que está ligada a um momento da História do homem. Pirandello, assim como Shakespeare, tem uma fantasmagoria muito própria. E a primeira parte [da peça] é toda fantasmagórica: uma companhia toda de branco. São camisolas brancas [que os atores usam], até que os personagens recebem as [suas próprias] roupas [em araras postas em cena]. A gente acabou trazendo as roupas e vestindo os personagens (…) aos olhos da plateia. Na pandemia, eu estava num sítio em Minas, com uma tia, e a gente começou a “riscar” esses figurinos.

Assista ao vídeo dessa entrevista com o diretor Gabriel Villela, disponível, em duas partes, no Instagram do Sesc Vila Mariana: PARTE 1 / PARTE 2

Leia também um texto de Rachel Sciré, editora web do Sesc Vila Mariana, sobre o espetáculo Henrique IV

A EDIÇÃO DE JULHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, quando o Sesc São Paulo promove mais uma edição do FestA! – Festival de Aprender, celebramos a ludicidade dos jogos analógicos e revelamos que, apesar do surgimento de novas tecnologias, eles atravessam gerações, atualizando-se em temas e formatos, incorporando narrativas inovadoras e estimulando o aprendizado. Nossa reportagem principal prova que o jogar, ato que perpassa todas as fases da vida, compõe uma importante parte da existência humana e contribui para o exercício da socialização e o amadurecimento de nossa criatividade.

Além dessa reportagem, a Revista E de julho traz outros conteúdos: um texto que convida o leitor a uma imersão na Trilha do Sentir, passeio sensorial e acessível em meio à restinga, na Reserva Natural Sesc Bertioga; uma entrevista com o professor e pesquisador Fernando José de Almeida sobre caminhos para a educação na era digital; um depoimento do diretor mineiro Gabriel Villela sobre dramaturgia, direção e seus 30 anos de casamento com o teatro; um passeio fotográfico pelas obras da exposição, em cartaz no Sesc Bom Retiro, que celebra as experimentações do artista Penna Prearo; um perfil de Yara Bernette (1920-2002), um dos grandes nomes brasileiros do piano no século XX; um encontro com Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital que defende não haver mais divisão entre vida on e offline; um roteiro por 5 passeios divertidos e educativos nas unidades do Sesc SP para fazer com a criançada no mês das férias; quatro poesias inéditas assinadas assinadas pelo artista Ricardo Aleixo; e dois artigos, assinados por Sueli Angelo Furlan e Thaise Costa Guzzatti, que refletem sobre o Turismo de Base Comunitária.

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