Leia a edição de outubro/22 da Revista E na íntegra
A trajetória acadêmica e profissional do curitibano Francisco Marés – ou Chico Marés, como é conhecido – começou no curso de jornalismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2006. Desde então, ele passou por veículos como o jornal Gazeta do Povo, onde foi repórter de política durante cinco anos, e o portal POP, no qual atuou como editor de esportes. Em 2016, mesmo ano em que ganhou o Prêmio ANJ (Associação Nacional de Jornais) de Liberdade de Imprensa (com mais quatro colegas, por uma investigação sobre o Poder Judiciário paranaense), Marés se mudou para a Inglaterra, onde fez um mestrado em jornalismo interativo pela Universidade de Londres (City), com foco em dados e redes sociais. Na volta, foi contratado como repórter da Lupa, agência de checagem de notícias e de combate à desinformação criada em 2015, no Rio de Janeiro. Foi promovido a editor e, em 2021, a coordenador de redação, cargo que ocupa atualmente. Além de acompanhar o noticiário, verificando informações falsas ou imprecisas, corrigindo-as e divulgando os dados corretos, a Lupa tem uma frente de educação midiática, com oficinas e treinamentos para ensinar técnicas de apuração e alertar sobre os riscos das narrativas falsas que circulam nas redes sociais. Neste Encontros, o jornalista fala sobre os riscos da desinformação no ambiente digital e os desafios para combatê-la.
A gente [na Lupa] não gosta muito de usar o termo fake news, porque ele é um pouco limitado e, ao mesmo tempo, muito amplo. Parece contraditório, mas vou explicar. É limitado, porque surge no contexto das eleições de 2016 nos Estados Unidos, e tratava de conteúdos que imitavam notícias, que pareciam sites de verdade, mas eram completamente inventados. Naquele contexto, esse termo se popularizou para se referir a algo que é muito mais amplo: a desinformação. Ela não necessariamente vai vir no formato de uma notícia, de “pseudojornalismo”. Vai vir também como um vídeo, uma foto, uma montagem, como um card com texto nas redes sociais, uma mensagem de WhatsApp, e numa dezena de outros formatos. Então, ao chamar fake news, você acaba limitando o espectro da desinformação.
O que é a desinformação? É um conjunto de informações falsas. Pode ser um conteúdo falso, uma grande narrativa falsa, mas que é pensada deliberadamente para enganar usuários, especialmente nas redes sociais, a partir de uma narrativa falsa. Tem finalidades diferentes: pode ser para obter ganhos políticos ou financeiros; golpes para você experimentar [por exemplo, um suplemento alimentar], além de ofertas falsas. Sempre que o governo lança algum auxílio, já vem alguém enviando uma mensagem falsa no WhatsApp para tentar enganar outros e roubar dados. Enfim, há muitos formatos possíveis de desinformação, mas, basicamente, são conteúdos manipulados.
Se um conteúdo é [ou parece] falso, a gente vai verificar, sem se deter muito para analisar se foi intencional ou não. Nos Estados Unidos, eles têm conceitos mais bem trabalhados, que são misinformation e disinformation [a diferença entre eles é justamente a questão da intencionalidade. No primeiro, ela não está presente, mas no segundo, sim]. A misinformation abrangeria até um erro jornalístico honesto, por assim dizer. O fato é que se desinforma mesmo sem intenção, e a gente verifica e contextualiza.
A TENDÊNCIA, GERALMENTE,
É ACHAR QUE AQUILO COM QUE
EU CONCORDO É VERDADEIRO
E AQUILO DO QUE DISCORDO É FALSO
[No período de campanha eleitoral,] além de checar desinformação, a gente fez a checagem de entrevistas e discursos, principalmente dos presidenciáveis e candidatos aos governos de São Paulo e Rio de Janeiro. Fora do período eleitoral, a gente tem uma reunião semanal para ver o que vai fazer naquela semana, o que há de coisas mais amplas de reportagem, checagem de discurso e pautas que não são de verificação de desinformação. [Além disso,] a gente tem um monitoramento constante de redes sociais para pautas de verificação. É algo que a gente vê toda hora. Temos uma parceria com o grupo Meta, pela qual nos passam informações de possíveis conteúdos falsos que estão viralizando no Facebook e no Instagram. A gente também usa uma ferramenta deles para complementar esse monitoramento, além de um “disque-denúncia” no WhatsApp. Geralmente, um repórter da Lupa vai ver quais são os elementos que a gente tem que checar, e vai atrás de fontes que vão confirmar se aquilo é verdadeiro ou provar que é falso. A partir do momento que ele escreve a matéria e descreve a checagem, o editor revê tudo o que ele já fez, todo o método utilizado e as fontes. Isto é uma coisa que a gente deixa bem clara na metodologia: não dá para deixar de mencionar de onde você tirou [uma informação ou explicação]. Você tem que ter uma fonte para aquilo e um link direto para a fonte. Cada desinformação exige um determinado approach [abordagem]. Há um jeito de verificar uma foto falsa, que não é a mesma de avaliar um texto ou um vídeo falso.
Esse é um ponto fundamental para a Lupa. A gente consegue trabalhar a checagem dos fatos dentro de uma escala limitada. Não vamos resolver sozinho esse problema [da desinformação]. Para superá-lo, você tem que ter um esforço muito grande, não só do jornalismo, mas também das plataformas de redes sociais. Elas devem ter medidas mais efetivas para bloquear e desencorajar esse tipo de produção. É preciso pensar, também, na sociedade em geral, no leitor. Muita coisa precisa mudar, e uma das mais fundamentais é justamente essa questão da educação [midiática]. A tendência, geralmente, é achar que aquilo com que eu concordo é verdadeiro e aquilo do que eu discordo é falso. As pessoas precisam aprender a lidar com a internet, entender como se relacionar nesse meio e se comunicar de forma saudável.
Assim como a pandemia tem sido um solo fértil para a desinformação, as campanhas eleitorais apresentam muita desinformação. Esta tem sido nossa prioridade: verificar conteúdos que tentam descredibilizar o processo eleitoral e as eleições. Essa é a desinformação mais grave no atual momento. A gente tem uma parceria com o TSE [Tribunal Superior Eleitoral], com o programa Fato ou Boato [do qual também fazem parte veículos como UOL, Estadão, AFP (Agence France-Presse), E-farsas, Comprova, Aos Fatos, Fato ou Fake (do g1) e Boatos.org]. Muitos estão trabalhando juntos com o TSE para monitorar esse tipo de desinformação que tenta descredibilizar [instituições] e enganar o leitor ou dissuadi-lo de alguma forma. E a gente está muito mais preparado hoje do que em 2018.
A deepfake [técnica de síntese de imagens e sons baseada em inteligência artificial e usada para combinar vídeos já existentes com novas falas e imagens, reproduzindo a voz e o rosto da pessoa] é uma ameaça gravíssima, que pode ser muito difícil de verificar. É uma ameaça no horizonte que vai estar sempre pairando, mas a gente tem que continuar botando esse tema no ar. No Brasil, a gente tem também o [jornalista e influenciador digital] Bruno Sartori, que popularizou muito esse conceito de deepfake para o humor. Mas, a gente tem lidado com outros tipos de falsificação [de vídeos], de edição, em que eu falo A, B e C, e você corta o B. Isso, inclusive, tem sido muito mais preocupante, danoso e tem viralizado mais que as deepfakes.
A gente sempre teve desinformação, mas um fenômeno muito particular e específico é a desinformação nas redes sociais. O que aconteceu principalmente nos últimos 10 anos foi, primeiramente, a expansão em massa das redes. Houve uma espécie de quebra em relação ao emissor na comunicação, uma mudança muito radical. Isso, em si, não é uma coisa ruim, é ótima, na verdade. As pessoas agora têm mais capacidade de expressar o que pensam, suas opiniões, o que veem, e de se contrapor ao discurso oficial. Mas, isso também abriu uma janela para pessoas mal-intencionadas. Esse fenômeno, [que se tornou] um problema muito forte dentro das redes a partir de 2012, 2013, quando o Facebook [atual Meta] se popularizou no Brasil. O problema foi crescendo até explodir, e a resposta institucional – tanto das empresas de redes sociais quanto da própria imprensa e do aparelho estatal – é muito mais lenta. Hoje, no entanto, há uma resposta mais forte, tanto das plataformas, quanto da sociedade em geral. E há um ceticismo muito maior do usuário com a internet. Então, acho que não vamos ser para sempre reféns da desinformação no ambiente online, pelo contrário: acho que será uma questão pontual e contextual nesse período de adaptação da sociedade às redes sociais. Sou razoavelmente otimista no longo prazo.
*Ouça, em formato de podcast, a conversa com o convidado. A mediação é de Adriana Reis Paulics, jornalista e editora da Revista E.
A EDIÇÃO DE OUTUBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Neste mês, celebramos as ações solidárias organizadas pela sociedade civil para o combate à fome no país. Na reportagem “Alimentar a mudança”, divulgamos dados alarmantes sobre o cenário de insegurança alimentar no Brasil e indicamos iniciativas e projetos transformadores para enfrentar essa situação, como o Organicamente Rango, a Gastronomia Periférica e o Experimenta!
Além disso, a Revista E de outubro traz outros destaques: uma reportagem que destaca a força do jazz enquanto música afrodiaspórica, diversa e combativa; uma entrevista sobre música, literatura e sociedade com Adriana Calcanhotto; um depoimento de Cassio Scapin sobre a força da comédia e o despertar dos musicais brasileiros; um passeio visual pelas obras da exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros; um perfil de Dias Gomes (1922-1999), nome primordial da dramaturgia brasileira; um encontro com o coordenador da Agência Lupa Chico Marés, que fala sobre checagem de informações; um roteiro por 6 espaços que propõem atividades artísticas para aguçar a sensibilidade das crianças, em outubro; poemas inéditos do escritor Paulo Scott; e dois artigos que destacam a importância da educação midiática para o combate à desinformação.
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