* Por Vinícius Castelli
A efervescência da música instrumental nos municípios de Santo André, São Bernardo, São Caetano, Mauá, Diadema, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra é o universo retratado pelo segundo episódio da série documental Territórios Sonoros do ABC, que ganhou o nome Cidades das Máquinas Sonoras.
Se no primeiro episódio, batizado como Cidades de Atitude, desbravamos a relação de diversas vertentes do rock revelando uma grande diversidade de histórias e a pluralidade de artistas na região do ABC paulista, agora, no segundo capítulo da série, não é diferente.
Linguagens musicais distintas, acadêmicas e não acadêmicas, o cenário da música instrumental para as mulheres, o preconceito, as ações de fomento à música são alguns dos assuntos que tecem a narrativa do filme com o intuito de responder uma pergunta: afinal, como é o ABC quando o assunto é música instrumental?
O ABC pulsa música instrumental em diversos caminhos. Alguns se dedicam a releituras dos clássicos do jazz, como as que são realizadas pelo grupo de mulheres Lady Bird Quartet, à partir da obra do compositor e pianista norte-americano Duke Ellington (1899-1974). Já outros percorrem uma trajetória focada nos sons mais contemporâneos, como aposta a banda Otis Trio.
A Nomade Orquestra, por exemplo, condensa dentro de uma sonoridade diversas referências e gêneros musicais, desde o jazz e o funk da década de 1970, ao rock, blues e afrobeat, criando uma música instrumental potente e com muita personalidade. Para compreender se faz necessário a escuta.
A região do ABC paulista ganha destaque no cenário da música instrumental e isto se deve, em partes, pelo fomento do poder público, por meio da realização de festivais e encontros, tal como o “Festival de Inverno de Paranapiacaba”, realizado pela Prefeitura de Santo André, e que conta também com o apoio do Sesc. Algumas casas de espetáculo da região, que apostam nesse tipo de sonoridade, também desempenham um papel fundamental nesta história, como por exemplo a Apostrophe que fica em Santo André e há muitos anos dedica um dia da semana para os artistas de jazz mostrarem seus trabalhos.
Conhecida por ser uma região de metalúrgicos, as cidades do ABC paulista revelaram alguns dos maiores nomes da música instrumental do País. A Banda Metalurgia é um dos exemplos por onde passaram músicos de grande destaque, como o trombonista Bocato e o baterista Cláudio Baeta, que é um dos participantes do documentário.Ambos os músicos, aliás, surgiram a partir da Banda Mirim Baeta Neves, criada nos anos 1960, em São Bernardo, e capitaneada com afinco pelo maestro Irineu Negri Garcia.
“Quis ensinar música de verdade para eles (as crianças). Já tinham conjuntos musicais, tinham alguns bailes. Sentia deficiência deles como músicos. Queria dar condições para eles serem músicos de verdade”, recorda Irineu.
O maestro conta que os alunos, ao longo dos anos, iam se moldando enquanto seres humanos também:
“Às vezes viajavam e a cidade não tinha condição de dar assistência correta. Os meninos eram alojados em casas de família e tinham que aprender como se comportar”.
Fomentar a música instrumental e descobrir locais na região que possam abrir espaço para essa linguagem musical também faz parte dos objetivos do Stefano Moliner, renomado contrabaixista e compositor de Santo André.
“Há 15 anos me empenho em procurar locais, não especializados em música instrumental, que me permitam tocar esse tipo de música e fomentar esse tipo de música para pessoas não familiarizadas”, revela Moliner.
Ele busca mostrar ao público que música instrumental não é música para elite:
“É popular, uma expressão espontânea. Do povo para o povo. Todo mundo tem uma relação muito íntima com a música. É raro alguém que não goste de ouvir música nenhuma. Alguma expressão vai te tocar. Quero levar isso para as pessoas da região”. – ressalta Stefano
Pluralidade poderia ser sinônimo para a região representada neste documentário. Outro exemplo disto é o trabalho desenvolvido pelo Conde Favela Sexteto, com músicas autorais e misturas que vão do sambajazz ao free jazz, e destacam a importância da música negra no cenário.
A região do ABC também conta com uma das mais importantes orquestras do país: a Orquestra Sinfônica de Santo André, conduzida sob a batuta do maestro Abel Rocha.
O Teatro Municipal da cidade abriga os trabalhos da sinfônica andreense, mas que se ampliam por toda a região e chegam inclusive a populações menos favorecidas com diversos eventos gratuitos fora dos palcos. A orquestra aposta em projetos sociais e de acessibilidade, como por exemplo a ação Concertos Sensoriais, que proporciona o contato com a música para pessoas com deficiência auditiva por meio da vibração dos instrumentos.
Outro grande nome de destaque no cenário da música instrumental é o Fernando Sardo, multiinstrumentista e criador dos grupos YaNur e GEM (Grupo Experimental de Música). Curioso desde criança, ele conta que iniciou seu contato com os instrumentos musicais na garagem do seu pai, que era repleta de ferramentas. Quando ele quis fazer música, não pediu um instrumento de presente, se aventurou a construir o próprio:
“Peguei as ferramentas dele e construí uma guitarra, um contrabaixo para o meu primo”, recorda Fernando.
Sardo, que estudou na renomada instituição da Fundação das Artes de São Caetano, já registrou a construção de mais de 160 instrumentos, com uma pesquisa sonora que percorre os cinco continentes.
Outro investigador de sonoridades é o Luciano Sallun, também participante do GEM e membro do conjunto Pedra Branca. O músico conta que teve os primeiros contatos com a música na escola, por meio do rock, e em casa, com as aulas de piano da mãe. Além disso, ele destaca a importância de espaços públicos como a Casa da Palavra Mário Quintana, em Santo André, que recebe diversos eventos culturais.
“A cena de música é sempre muito forte no ABC. É uma cena que está sempre buscando algo, tentando uma resistência, fazer algo que não seja comercial”, destaca Sallun.
O som instrumental local é representado fortemente pelas mulheres na região. Exemplo disso é a guitarrista Luciana Romanholi. Ela conta como sua vivência na região do ABC influenciou no seu jeito de tocar:
“Frequentar espaços diferentes. Sou de São Bernardo, ia ver show na cidade, ia ao Canja com Canja (extinto projeto idealizado pela Prefeitura de Santo André voltado para artistas locais), tinha de tudo. São as influências da minha vida. Em outro local isso é difícil de acontecer. Pelo fato de o ABC ser uma região com várias cidades e diversas características, isso abre a cabeça”, conta Luciana.
Anette Camargo, pianista e compositora de São Bernardo, é outro nome que representa as mulheres da região na música instrumental. Ela teve seu primeiro contato com a música por meio de um pianinho de brinquedo, comprado na feira por sua mãe, e daí em diante trilhou seu caminho sempre ligado ao meio musical se destacando no universo da música instrumental.
Para ela, o território do ABC foi e é de grande importância para sua entrada e estada no universo da música. Tanto que cita locais públicos onde aconteciam eventos, como a Concha Acústica e a Praça dos Meninos, ambos no bairro Rudge Ramos, em São Bernardo.
“Fundação das Artes é um lugar muito especial, onde fui muito feliz. Onde conheci meus amigos, meu esposo. A Fundação me salvou em vários aspectos. Era adolescente, estava com problemas em casa, pelo falecimento da minha mãe. Foi um lugar sagrado para mim”, afirma Anette.
Ela conta que fica feliz quando as pessoas a abordam para lhe dizer que ficam felizes de ver uma mulher se apresentando nos palcos, tocando instrumentos e cantando.
“Isso nos incentiva. A gente tem que sempre estar brigando, provando. Mas a gente não pode se cansar. Tive muita história de cara que desmarcou show porque uma semana antes do trabalho achou que eu não ia tocar” (pelo fato de ser mulher). – relembra Camargo
Mariana Oliveira, saxofonista do Lady Bird Quartet, se lembra que em seus primeiros passos na caminhada musical, contou com apoio do colega Stefano Moliner:“Ele me chamou para tocar na Casa Amarela. Foi um primeiro passo de todos. É sempre bom apoiar uma mulher no que ela está fazendo, independente do que seja”. A Casa Amarela é um local em São Bernardo que abre espaço para artistas locais e independentes.
Para nós, da equipe de produção do Territórios Sonoros do ABC, investigar o cenário musical da região foi um grande desafio que proporcionou um resultado incrível e enriquecedor. Ao longo da pesquisa para a construção deste segundo episódio da série, nos deparamos com a colaboração entre artistas de diferentes gerações, musicistas que estão cumprindo seu papel e inspirando e empoderando outras mulheres no meio artístico, a cultura negra se destacando nos palcos e demonstrando sua ancestralidade por meio da música.
Além disso, outro ponto que nos chamou a atenção, é que os artistas locais não precisam ir muito longe para buscar suas inspirações, fazem isso com seus conterrâneos. Exemplo é a maioria ter citado a importância da Banda Metalurgia e o quanto o trabalho feito por aquele grupo, nos anos 1980, os influenciam até hoje.
Plural é a palavra que define o cenário musical na região do ABC paulista. A diversidade cultural das pessoas que vieram de diversas regiões do país e do exterior para estabelecer no ABC sua morada, é refletida nos inúmeros caminhos e vertentes explorados no cenário da música instrumental.
O termo “instrumental” pode até sugerir que este tipo de música seja realizada apenas por instrumentos, mas há muitos experimentos da inserção da voz nas melodias, como realiza a Anette Camargo, pianista e compositora. É uma “música universal” como gosta de chamar o Hermeto Pascoal, lembrado pelo Stefano Moliner no documentário. Conseguir falar por meio do instrumento, fazendo melodias, é o sentimento definido pela instrumentista Luciana Romanholi, observação que exemplifica bem a amplitude e significado da música instrumental.
As vozes da música instrumental ressoam pelas cidades do ABC e do mundo, por meio da diversidade destes artistas, incansáveis no seu trabalho de criação e empenhados em angariar cada vez mais visibilidade a este cenário musical. Te convidamos a escutar e viajar pelos sons e vozes destas Cidades das Máquinas Sonoras assistindo ao segundo episódio da série documental Territórios Sonoros do ABC. Aperte o play e boa viagem!
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* Vinícius Castelli já foi colunista e repórter de cultura do Diário do Grande ABC, além de ter cuidado de uma coluna na Rádio Globo, autor do blog Pilha na Vitrola e consultor para bandas independentes
Territórios Sonoros do ABC é uma série de documentários realizada pelo Sesc São Caetano e o Sesc Santo André que busca retratar como as cidades da região do Grande ABC colaboraram para a formação do cenário musical brasileiro nas últimas décadas. O projeto conta com roteiro e pesquisa do músico e jornalista Vinícius Castelli; e do músico e produtor cultural Ruy Rascassi. A direção, produção e montagem é do Bruno Badain. A assistência de direção, assistência de produção e de montagem é da Sui Sui Laurent.
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