Você já experimentou comer junto com alguém que não conhece?
Sabe aquele momento em que você está sozinho ou com um amigo, entra num restaurante ou refeitório e não há mesas vazias, mas há lugares em várias mesas? Você não tem vontade de pedir para se sentar e se enturmar?
Talvez nem lhe passe pela cabeça essa ideia. Talvez você decida sentar-se na mesa já composta, mas seu amigo não goste da ideia. Talvez você peça para se sentar e não seja bem-vindo. Há quem prefira se recolher e comer sozinho. Comer com um estranho é um risco, afinal. Mesmo que seja só por dividir a mesa há quem se sinta mal diante de um estranho, por mais igual a você que ele seja.
O estudo da comensalidade passa por questões como essa e outras tantas mais. Trata da hospitalidade manifestada no ato de comer junto, em compartilhar a mesa e a refeição, a comida.
Comer é visceral, todo mundo come. O alimento é que nos põe de pé e nos dá energia para as atividades mais simples. Mas o que, como e com quem se come é um resultado do que aprendemos.
Há tempos, ouvimos dizer que comida é cultura. Em geral, isso se explica porque o ato de comer é feito de escolhas decorrentes dos nossos aprendizados já que, desde bebês e durante toda a vida, o nosso paladar vai sendo educado a partir daquilo que nos é oferecido como alimento e como refeição. Não se trata apenas do sabor ou dos nutrientes que escolhemos, ou seja, dos ingredientes que compõem o prato, mas de todo processo que envolve essa deliciosa parte da vida que é comer.
“A ideia de comida é resultado e representação de processos culturais que preveem a domesticação, a transformação, a reinterpretação da natureza”, escreve Massimo Montanari em sua obra Comida como Cultura.
A mesa é um espaço em que iguais se sentam juntos para dividir sabores, saberes e ideias. É também lugar de transcendência, de tentativa de se igualar aos que estão ao seu lado.
Não é à toa que conforme as crianças vão crescendo e sendo educadas elas passam a ter um lugar à mesa. Tornam-se participantes do ritual que compartilha os valores familiares que ali se reproduzem em símbolos, cheios de significados.
A comensalidade é um tema abrangente porque envolve num fato social total todos os valores que perpassam a sociedade: o alimento escolhido, o preparo da comida, a disposição do enxoval, das toalhas, dos pratos, talheres e copos, o tempo que se permanece à mesa, o que é permitido conversar enquanto nela se permanece, quem se senta ao lado ou à frente de quem, o tom, a luz, a temperatura e o sabor do que é servido…
Uma das coisas que mais gosto é me sentar ao redor de uma mesa junto com outras pessoas para comer, beber, falar de comida, sentir sabores e viver emoções. Eu, que amo cozinhar, além do preparo, gosto de servir e da refeição em si. Gosto de partilhar a mesa. O ato de compartilhar o momento da refeição com alguém me dá uma sensação de proximidade e até mesmo de cumplicidade com as pessoas, sinto-me conviver.
Roy Strong, em seu livro Banquete, descreve o convivium romano. Ele diz que desde a Antiguidade, tanto para os gregos como para os romanos, o convívio já era visto como uma das pedras angulares da civilização. A mesa reúne convidados que partilham prazeres e ideias, mas também nela percebem-se distinções sociais e exclusão.
Sou dessas pessoas que ama cozinhar, mas não me atenho à arte da alquimia dos ingredientes. Chego a crer que o meu verdadeiro prazer está em colocar cuidadosamente a mesa e, à mesa, aqueles ingredientes que foram cultivados, depois escolhidos e transformados em comida com vistas a outro tipo de transformação, uma alquimia social. É parte fundamental desse processo vestir a mesa com um enxoval adequado a cada ocasião, escolher toalhas, pratos, talheres e copos, dispor guardanapos, enfeitar com flores e, quem sabe até, acender velas, sem nunca deixar de pensar na louça em que serão apresentados os preparos feitos na cozinha.
Pode parecer polido demais, enfeitado demais, mas não se trata disso. Postos de lado alguns excessos, que servem como exercício da criatividade, a descrição feita não se refere apenas a dispor sobre a mesa tecidos de linho em toalhas perfeitamente passadas a ferro. O que dependendo da ocasião pode ser adequado, por que não? No entanto, diz respeito, do mesmo modo e com o mesmo valor cultural, à mesa simples, rústica, muitas vezes sem qualquer toalha ou com uma que é de plástico e que gruda o braço da gente quando encostamos. Não importa se a louça é composta por uma porcelana ou um prato âmbar do tipo Duralex. É o que e como esse ritual se dá que chamamos de cultura. Não há juízos, mas adequações.
Tudo começa com a ideia de quem vai comer o que será preparado. Então vem a escolha do cardápio que envolve além de preferências e paladares, os ingredientes disponíveis e, atrás disso o acesso a esses produtos (a isso não vou me deter porque a conversa ficaria longa demais) e como serão trabalhados (em que tempo e a partir de que técnicas) para que se transformem em comida.
Quando penso em todo esse processo, que é simbólico em qualquer sociedade, vejo que, para mim, pessoalmente, ele significa afeto. Nisso encontro razões, descubro sentimentos, emano emoções e saboreio experiências que vão muito além de meramente me sentir nutrida de ingredientes que fazem meu corpo se manter em funcionamento. Isso mantem meu corpo vivo. E há uma a diferença sensível entre funcionar e viver.
Agora… voltando ao início. Voltando àquela ideia sugerida de se sentar à mesa com alguém novo, dividir a área onde será feita a refeição ao encostar a sua bandeja de plástico na da pessoa que está à sua frente, esse pode ser o diferencial do seu dia. Esse pode ser a diferença no dia de alguém.
Por que você não Experimenta?
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Maria Cláudia Gavioli, jornalista, blogueira e editora-chefe do Minestrone.com.br. Mestranda em Hospitalidade pela Universidade Anhembi Morumbi tem como objeto de pesquisa a os negócios de comensalidade em ambientes domésticos.
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