A peça Salamaleque é baseada na cartas trocadas Nadime e Nicolau Arbex | Foto: Thaís Fero
O cenário é uma cozinha. Aromas e sabores são personagens. Elizete, interpretada por Valéria Arbex, conversa com a plateia e prepara delícias árabes: coalhada seca, homus e Babaganoush.
A peça Salamaleque – que passou pelo Sesc Itaquera durante a programação do Experimenta: comida, saúde e cultura – conta a história real de Nadime e Nicolau, avós da Valéria.
Eles nasceram em Yabroud, na Síria, e migraram para o Brasil ainda jovens. Enquanto eram noivos, trocaram cartas de amor durante 1937 e 1939. Essa correspondência serviu como base para a construção do monólogo da neta.
Um passado cheio de gostos que transbordam pelo teatro a cada espetáculo. A comida é fio condutor da peça. E vai além, cada prato é uma forma de unir presente e passado.
“Desde a concepção da peça, já tinha decido que o cenário seria uma cozinha. É um lugar intimista”, afirma Valéria. “O aroma e o paladar são instrumentos artísticos, que contribuem para contar a história.”
Os cheiros de nostalgia invadem o recinto, junto com cheirinho de pão árabe. Ao final da peça, o público é convidado para o banquete.
“Alimentação sempre foi uma forma de resistência de costumes na cultura árabe”, recorda Valéria. “Acredito que a peça ajuda desmistificar os estereótipos que foram construídos após 11 de setembro e com a atual crise dos refugiados”.
GOSTO DO PASSADO
Histórias que reúnem a alimentação com nossas raízes são frequentes. Quem não recorda do gosto da comida de mãe, avó ou tia e começa a salivar?
Para Valéria, as lembranças podem ser acessadas nos temperos árabes da esfiha e do quibe cru, que sua avó juntava aos punhados e colocava diretamente em sua boca.
Sabores, receitas e ingredientes podem nos conectam com os antepassados. Cada prato é uma sobreposição de gerações que vão modificando preparos, alterando condimentos ou apenas dando um toque pessoal.
Para mim, que nunca conheci minha avó materna, a comida sempre foi um elo com o passado. Dona Anita morreu poucas horas após o meu nascimento.
Restaram as histórias que minha mãe conta, as fotos que já estão um pouco desbotadas e, o mais preciso para mim, o seu caderno de receitas.
De família italiana, ela viveu grande parte da sua vida na Mooca, bairro da zona leste de São Paulo. Anita era conhecida por ser uma cozinheira de mão cheia. Suas receitas são o seu grande legado.
As páginas de seu antigo caderno já estão amareladas e se desprenderam do caderno. No seu interior, além das diversas receitas, encontrei recortes de revistas, rótulos de produtos e cartas para parentes distantes.
Muito mais do que a possibilidade de reproduzir seus famosos pratos, seu caderno de receitas é um portal para uma convivência que não tive.
Conheci um pouco de sua personalidade e de seus gostos em cada receita. Fui apresentada a seu circulo de amigas cada vez que encontrava um título como: “Glacê de chocolate da Dona Carmem do 4 A”, em referência as suas vizinhas dos pequenos blocos de prédio. Até tive contato com a infância da minha mãe, por meio de seus desenhos de casinhas e flores que colorem as páginas.
Nem minha mãe e nem eu conseguimos reproduzir com exatidão suas tortas, massas, molhos e bolos. Mas cada vez que abrimos o caderno para preparar uma de suas receitas, temos um pequeno aperitivo de sua presença.
COMIDA SAGRADA
Valeria e eu não somos as únicas a enxergar na alimentação um elemento de conexão com o passado.
Conheci Priscila Novaes durante o bate-papo sobre comida afro-brasileira, parte da programação do Experimenta: comida, saúde e cultura.
A história dela sempre foi temperada pela culinária. Priscila começou a cozinhar porque não conseguia colocação no mercado de trabalho. Montou uma barraca de café da manhã na estação de Guaianazes da CPTM, na zona leste de São Paulo.
Para se aprimorar, ela fez curso técnico de gastronomia e começou atuar como autônoma.
“Apesar de gostar de cozinhar, eu não me identificava com a comida que preparava”, recorda Priscila. ”Eu não encontrava informações sobre a culinária das minhas ancestrais africanas com a mesma facilidade que achava sobre as gastronomias italiana e japonesa.”
Isso mudou quando ela conheceu a Mãe Lucila D´Osun, que ocupa o cargo de Yalasè no Candomblé. Foi dentro da cozinha do terreiro que ela entendeu a importância sagrada da comida e descobriu sua vocação.
No ano passado, ela criou a empresa Kitanda das Minas, um buffet especializado em comida africana, que mistura a comida contemporânea com os saberes ancestrais.
Priscila também é a organizadora do livro Ajeum – O Sabor das Deusas, que reúne artigos sobre a luta pelo reconhecimento do trabalho das mulheres negras ligadas à culinária.
A palavra Ajeum em iorubá significa o ato de comer, mas também lembra que esse é um momento de compartilhamento e interação entre as pessoas. Dentro e fora do Candomblé, a comida tem múltiplos significados.
Para Priscila, a preparação da comida é uma ligação com o plano espiritual e com sua tradição ancestral. Para Valéria, alimentação é arte e uma forma de resistência da cultura árabe. Para mim, é uma forma de conhecer e manter a memória da minha avó.
E para você, o que a comida representa?
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