Por Flamínia Manzano Moreira Lodovici*
Por um compromisso com diálogo e o respeito
A situação pandêmica que estamos vivenciando no Brasil nos faz evocar o diálogo entre o Papa Francisco e o Padre de Corviale, quando ambos concordam que necessitamos “estar o mais próximo possível dos idosos sozinhos; durante o isolamento, telefonar para eles, para entender como estão, se precisam de alguma coisa”.[1] Dizeres estes que chamam a atenção das comunidades no sentido de tal tarefa ser um dever cristão e ético a todos os cidadãos, pelo menos para amenizar a situação de isolamento, e consequente invisibilidade, a que as pessoas de mais idade acabam reduzidas na sociedade contemporânea.
Mas nos lembremos que tal recomendação papal de 2018 reitera um alerta dramático de Simone de Beauvoir, manifesto em Velhice, seu livro de 1970[2], sobre a invisibilidade dos velhos, a invisibilidade em seu sentido negativo, que advém do fato de as famílias e a sociedade em geral, não terem presente em seu cotidiano a questão com as demandas, de ordem física ou psíquica, de seus velhos.
E dizer que essas preocupações aconteciam quando os velhos e pessoas com alguma vulnerabilidade ainda não passavam pela obrigatória reclusão familiar deste 2020, ano quando ainda mais se faz abater, sobre certas pessoas, a responsabilidade pela falta de autocuidados preventivos diante da Covid-19. Quando se fazem ver, além disso, pessoas que se rebelam por não querer isolar-se em suas casas, violando o afastamento social mesmo sob o perigo de serem infectadas e transmitirem o coronavírus a familiares e amigos…
O preconceito que permeia as relações humanas em toda a sua história de vida, especialmente o etário, é que parece justificar tal isolamento visto pela sociedade como devendo ser apenas o dos velhos. Ainda que estivesse correta do ponto de vista da contribuição social para conter o avanço da pandemia, como realizar tal feito, posto que 17% dos idosos moram sozinhos e 33% com mais uma pessoa, em geral, o cônjuge, que quase sempre é alguém da mesma faixa etária? Esses dados são da segunda edição da Pesquisa Idosos no Brasil (2020), e deixam claro que para muitos idosos, é inevitável sair para, por exemplo, fazer compras de produtos essenciais e em muitas dessas viagens, têm sofrido represálias.
Outro dado revelado pela mesma pesquisa indica que os velhos mais recebem do que oferecem ajuda, com destaque para as atividades realizadas fora de casa, 25% para fazer/carregar compras e 22% para ir ao médico. Se não é a ajuda prática a grande questão, como ser a contribuição?
A mensagem papal recomenda providências singelas, mas muito tocantes e significativas dirigidas a essa crescente geração, fragilizada ou dependente, ora em seu isolamento obrigatório, e que pode estar experimentando sensações de estranhamento, de cansaço, de angústia, ou de desespero entre quatro paredes, sem troca de ideias, nem desejando incomodar outras pessoas.
Bastam algumas palavras de coragem e esperança, em um simples telefonema, para que esses idosos se sintam amparados, em vez de excluídos como grupo considerado de risco, e de se transformarem como seres humanos, ao lhes ser restituída, por uma simples troca de afeto, a justa posição familiar e social: a de pais, ou avós, ou de amigos queridos.
As consequências de um tal gesto humano às pessoas idosas ou àqueles desprivilegiados socialmente (por terem comorbidades, ou por serem negros, pobres, mulheres, gordos, de baixa escolaridade…) podem felizmente ultrapassar, e em muito, o que há de concepções cristalizadas na sociedade sobre o envelhecimento e a velhice, sobre a dependência, sobre o lugar reservado na sociedade aos menos favorecidos.
Isso porque tais felizes consequências vão de encontro a concepções equivocadas sobre o que é ser uma pessoa humana, em cada fase da vida, que subjazem aos preconceitos, à discriminação (o preconceito em ação) e à decorrente estigmatização, por exemplo, contra os de mais idade, antes tão invisíveis, e agora expostos indiscriminadamente em charges midiáticas de muito mau-gosto, e sem que a maior parte das pessoas se apercebam de seus lamentáveis efeitos.
Ilustração reproduzida nas redes sociais
Acresce-se a isso que, em situações de mal-estar da sociedade como estas da reinante pandemia, tornam-se exacerbados os manifestos nesse sentido, chegando à culpabilização. Se o velho sai à rua e se, por esta ou outra via, é afetado pelo coronavírus, ouve-se a voz da desresponsabilização: “Ora!, o problema é dele; culpado é ele próprio por escapar, por teimosia ou caduquice, às determinações oficiais de isolamento!”
Reações como essa ajudam a desvelar o preconceito contra os idosos percebidos por 82% dos entrevistados no Brasil (entre idosos ou não-idosos), conforme a mesma pesquisa. Ao serem perguntados como acham que são vistos pelos jovens, os velhos relatam situações que passam pelo desprezo, desrespeito, maltrato, incompreensão e distanciamento empático, isto é, “os jovens agem como se não fossem envelhecer”, entre outras formas de agressão.
Velhos que são autônomos, de vida independente ou quase independente que, na verdade, precisam manter-se no dia a dia, que costumam sair às compras de alimentos, ir aos médicos ou, no caso dos mais fragilizados ou dependentes, dar um passeio ao sol com um familiar ou um cuidador, que tentam vencer, enfim, a imobilidade, a solidão… Como não sair à rua mesmo em situação de pandemia?, a pergunta que se coloca diante das necessidades e exigências para uma vida cotidiana digna desses velhos.
Apresentar comorbidades pode ser a condição de saúde das pessoas em qualquer idade, mas especialmente acontece a gerações contempladas em viver mais anos, a respeito das quais o preconceito reitera-se sob as mais variadas formas: o incômodo causado, por exemplo, em um consultório médico, dentário, ou em um elevador, a partir de uma leve tosse ou espirro de um velho. Sem falar nas demais modalidades preconceituosas mencionadas pelo geriatra Leme (2011): o preconceito que “pode vir travestido de ironia: Nem parece que tem essa idade!; de desdém: Quem gosta de velho é reumatismo!”; da ira automobilística: Vai cuidar dos netos, Dona Maria!, e mesmo de um falso e ‘protetor’ carinho: Deixe que eu faço, vovô, o senhor não tem mais idade para isso” (p. 39).[3] Segundo o estudioso, o que há de comum a todas essas manifestações é a “atitude simplista de imaginar que todos os idosos sejam iguais, sem qualquer diferença relativa à história de vida, saúde, cultura etc.”.
Como os velhos acham que são vistos pelos jovens?
A pesquisa de referência foi realizada pelo Sesc e pela Fundação Perseu Abramo em 2006, e traz, entre outras comparações importantes, a questão “Como o(a) sr(a) acha que as pessoas mais jovens vêem os idosos ? Por que o(a) sr(a) acha isso ?”. As respostas abertas foram categorizadas para fins de sistematização, e, em 14 anos, mostram alterações inexpressivas num painel majoritário de referências negativas.
Neste 2020 da pandemia de Covid19, verifica-se que as manifestações preconceituosas aparecem com mais frequência e maior agudez, afastando uma das formas mais eficientes de combater sua permanência nas famílias e na sociedade: a tolerância, entendida esta como a real aceitação da diferença existente entre as pessoas.
Conforme a cientista social Aldaísa Sposati, a tolerância deve ser exercida como “uma estratégia para que nos libertemos de certos padrões estabelecidos e que, muitas vezes, nem sabemos a razão de existirem [preconceitos passados que são de geração em geração e sem problematização sobre eles] mas que violam o direito de justiça, igualdade e equidade” (2011, p.119). A equidade vista como “forma de igualdade que respeita a diversidade de características e necessidades (…). o princípio de direitos iguais para todos”.[4] Direitos que, em uma situação de pandemia, põem à mostra as contradições existentes na sociedade, em que é exemplar a atual situação vivida em nosso país a respeito do acesso à saúde pública ou privada: enquanto os mais favorecidos socialmente têm mantida a possibilidade de seguro atendimento em rede privada e bem-abastecida de dispositivos tecnológicos em UTI, os menos favorecidos disputam leitos do SUS sempre à beira de esgotamento em muitos locais do país, algo de relevância, se considerarmos que a pesquisa sobre a qual nos debruçamos relata que 79% das pessoas no Brasil utilizam o SUS, idosas ou não.
Ser tolerante no sentido de nos darmos conta da diferença existente entre as pessoas e respeitar suas particularidades, seus interesses, em que é exemplar na atualidade a questão das habilidades requeridas para o manuseio digital. Enquanto uma boa parte de idosos faz um uso muito proveitoso de aplicativos em smartphones, navegando na internet com desenvoltura, similarmente às gerações mais jovens, outros idosos optam por fazer de seu celular apenas um telefone, preferindo a comunicação on-line com familiares e amigos próximos. Se o meio digital vem mudando nossas vidas, muda também a de idosos cuja vida pessoal, profissional, de negócios continua ativa mesmo nestes tempos de distanciamento social, graças ao home office, aos contatos on-line com clientes, com o mercado, com os amigos…
Mas, como nos faz alertar a mensagem papal, o distanciamento familiar e social pode pôr as pessoas mais idosas em sofrimento, entediadas ou angustiadas, com a sensação de não mais pertencimento a este mundo. Mas o que se pode perguntar é se essa nova realidade das relações entre as pessoas primordialmente pela via tecnológica não poderia estar prejudicando a nossa humanidade. Não estaremos todos nós, em breve, sentindo que estamos em contato com todo o mundo e ao mesmo tempo com ninguém?
Mais que nunca, voltam-nos os dizeres do Papa Francisco, ao consagrar a gloriosa missão dos educadores, deste modo: “Artesãos da humanidade, construtores da paz e do encontro”[5] mensagem que pode ser estendida a todos nós, se assumida a partir de um compromisso com o diálogo intergeracional e o respeito à diversidade de características e necessidades do ser humano.
* Flamínia atua como docente, pesquisadora e orientadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia, filiado à Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde/FACHS/PUC-SP. Foi vice-coordenadora e professora do curso de Especialização em Gerontologia da PUC-SP. Docente, Pesquisadora, e Orientadora de TCC e IC da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes/FAFICLA/PUC-SP. Atua na área da Linguagem e Gerontologia. Participa do Grupo de Pesquisa “Educação, Longevidade e Qualidade de Vida”, certificado pelo CNPq.
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[1] “Não deixar os idosos sozinhos”, a mensagem do Santo Padre ao Pe. Roberto Cassano, pároco de São Paulo da Cruz, no bairro de Corviale, em Roma, quando de sua visita em 02/04/2018, quando pediu a ele que cuidasse das pessoas mais vulneráveis, como os idosos.
[2] Beauvoir, S. de. (1990). A velhice. (5a impr.). Trad.: Maria Helena Franco Monteiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (1a ed.: 1970).
[3] Leme, L. E. G. (2011). Idosos: “Quem gosta de velho é reumatismo!”, pp. 39-48. In: Pinsky, J. (Org.). 12 Faces do Preconceito. (10a ed.). São Paulo: Contexto.
[4] Sposati, A. (2011). Social: Feios, sujos e malvados, pp. 113-120. In: Pinsky, J. (Org.). 12 Faces do Preconceito. São Paulo: Contexto.
[5] Mensagem do Papa Francisco numa videomensagem no 4o Fórum Global sobre Educação, em Dubai, Emirados Árabes Unidos, em 13/03/2016,
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