Ed. 82 – Conexões Ancestrais, Idosos Digitais

09/05/2022

Compartilhe:

Foto: Adailton Oliveira da Silva

Por Zulaiê B. Silva

Um mestre de cultura popular figurando como educador digital. Idosos, em ambiente virtual, acompanhando passos de danças populares, interagindo com histórias da cultura brasileira. Vitalidade física e emocional potencializadas por vivências e narrativas de manifestações tradicionais características do nosso país, colocadas em perspectiva com as memórias e trajetórias percorridas no curso da vida dos participantes. Longevidade e oralidades em conexão, fazendo pulsar o ancestral em meio digital.

Essas foram as principais propostas do curso Ritmo, Cultura Popular e Envelhecimento, uma série de dez encontros virtuais realizados entre abril e maio de 2021, ministrado por mestre Carlos Caçapava. Acompanhado de seus inseparáveis tambores e da bailarina e educadora física Karla Magalhães, idosos frequentadores do Trabalho Social com Idosos (TSI) das unidades de Interlagos, Araraquara, Rio Preto e Belenzinho puderam imergir no universo das batucadas brasileiras e dos passos ancestrais que guardam as nossas tradições, embalados por cirandas, cocos, carimbós e outros ritmos. Entre junho e julho de 2021, o curso foi realizado junto aos idosos das unidades do Sesc Santo André, São Carlos e Taubaté. Ao todo, cerca de 80 idosos acompanharam de forma totalmente remota esse mergulho pelo Brasil brincante que nos habita e nos identifica. Cada um em sua casa, com smartphones, notebooks e muito empenho coletivo, passando por diversas frentes de conexão envolvendo tecnologias, expertises e persistências, instabilidades e êxitos.

Para seguir esse baile, o olhar técnico dos profissionais ligados ao TSI se manteve atento às diretrizes institucionais do programa, proporcionando uma janela de protagonismo em autonomia das pessoas idosas, na medida em que a atividade partiu de conhecimentos transmitidos por um mestre de cultura popular de 67 anos, voltados a um público majoritariamente idoso, tendo como tônica a tradição oral, a diversidade cultural, as memórias afetivas e corporais experimentadas e transmitidas ao longo dos anos, tendo a troca de experiências e impressões um lugar de destaque. Enquanto isso, toda uma rede de suporte tecnológico se empenhava em criar um cenário adequado para o desenrolar dos encontros.

Entre danças e desafios, a equipe Sesc se debruçou sobre a importância da contratação de uma rede de apoio digital que, para além da viabilidade operacional, pudesse gerar renda para o coletivo popular envolvido, criando um ambiente confortável para o mestre-educador e sua rede de mediação, fomentando a autonomia digital para uma comunidade voltada às tradições populares que, ainda que concentrada simbolicamente na figura de um mestre de cultura popular, se consolida com um trabalho de base que traz consigo valorização e fortalecimento comunitário. Isso se refletiu na participação de Terena Reis e da produtora audiovisual Kambinda Produções, figurando como assessores digitais imprescindíveis para a realização dos encontros e para seu registro, resultando em vídeos de coreografias finais apresentadas pelos participantes como resultado do curso. Esse suporte se deu com a montagem e operação de câmeras, computadores e celulares, gravação e edição de imagens, e com a escolha atenta das esferas de apoio operacional e humano que circundaram esse processo que colocou ritmo, cultura popular e longevidade em movimento.

Ainda sobre a composição desse instrumental, é preciso destacar a ação e o comprometimento dos educadores de tecnologias e artes e programadores do Sesc para a produção de materiais, apostilas e vídeos didáticos sobre o acesso a diversas plataformas digitais e aplicativos. Eles participaram no início de cada encontro, propondo orientações iniciais com instruções de boas práticas em ambiente virtual apresentadas e reforçadas pelas equipes contratadas, colaborando para um bom desenvolvimento do curso e proporcionando uma cada vez maior autonomia digital ao público idoso por meio da construção de camadas de compreensão e de confiança entre a instituição, os contratados e os participantes da ação.

Isso revela os processos educativos continuamente realizados pela instituição durante todo período de pandemia por meio de atividades de letramento digital, tutoriais, cursos e oficinas sobre o acesso a plataformas e aplicativos com intuito de informar e apoiar o público idoso para participação de ações virtuais, contribuindo em alguma medida para a manutenção das atividades que aconteciam presencialmente, com a adesão sempre expressiva dos nossos frequentadores com mais de 60 anos, evidenciando os vínculos formada entre técnicos, educadores e idosos, constantemente preservados no período de isolamento pelos grupos de conversa. Esses processos definitivamente vieram para ficar e passaram a fazer parte do cotidiano do TSI, expressando inclusive uma ainda maior valorização do contato presencial nas unidades do Sesc e nos demais espaços de convivências culturais múltiplos, qualificando a importância dos encontros como trocas responsáveis, que não se negam às transformações do mundo e que estão dispostas a conversar com elas. Essas redes se mostram verdadeiros espaços de empoderamento e de continuidade, em que conversas, afetos e assessorias virtuais se fizeram presentes de forma muito orgânica, latente e persistente, para que a realidade tecnológica se apresente como ferramenta favorável aos valores buscados pela instituição e pelas pessoas idosas em suas inúmeras e complexas matizes.

Mesmo com as barreiras de manuseio tecnológico apresentadas por boa parte do público 60+, as conexões digitais permitiram que, ao longo de um processo, os idosos expandissem suas habilidades com o meio on-line, exercitando o conforto e a autoestima ao abrirem suas câmeras e microfones nos momentos das aulas. Olhando especificamente para o curso Ritmo, Cultura Popular e Envelhecimento, o mergulho nas danças populares deu espaço para um aumento do interesse dos participantes pela utilização de adereços e paramentações típicos. Em outras palavras, os mesmos idosos inicialmente tímidos e receosos, preocupados e atentos aos diversos ajustes para melhor visualização dos pés da bailarina, ao volume do áudio do mestre e de seus tambores, posicionamento de câmera, abrir e fechar de microfones, instabilidades na rede, foram dando lugar a saias de chita, chapéus de palha, flores no cabelo, vestidos e camisas coloridas e estampadas. Esse ambiente também acolheu as colocação sobre as dificuldades de realização de determinadas movimentações das danças, sempre amparadas pelo trabalho da educadora física e bailarina Karla Magalhães, que indicava as adaptações necessárias diante de cada caso apresentado, orientando pacientemente sobre a melhor forma de execução das coreografias, além do trabalho de aprimoramento e fluência dos movimentos, que a cada encontro tomavam mais plasticidade, formando uma grande ciranda virtual de bailados, memórias e narrativas.

Nessa costura, mestre Caçapava conduziu os participantes a um lugar de destaque, dando protagonismo ao papel dos idosos na cultura popular, às relações entre danças populares brasileiras e o reconhecimento comunitários de seus “mestres”, à contribuição das manifestações tradicionais no processo de envelhecimento e da longevidade, à preservação da memória, das experiências guardadas e vividas de pessoas pertencentes a identidades diversas, plurais e controversas, típicas do nosso Brasil. Mediador e público ocuparam um lugar legítimo de comunicação. De um lado, um idoso, chamado de mestre e reconhecido por isso. De outro, mulheres e homens com mais de 60 anos como centro de toda construção de um processo artístico-pedagógico, cujas trajetórias e movimentos foram absorvidos para atingir os objetivos traçados desde a concepção da proposta formativa do curso.

A consolidação desse cenário se deu com uma metodologia de resgate, verbalização e corporificação de memórias como matéria-prima para o desenrolar das manifestações populares apresentadas, em que as expressões culturais trazidas pelo mestre encontravam lembranças da infância dos participantes, passeando por sabores, sotaques e texturas, por necessidades de deixar seus territórios de origem em busca de sobrevivência, pelos cantares dos parentes e embalos de bailes da vida que não fazem parte apenas de um passado, mas de um presente transmutado e pulsante, que procura e reafirma as dimensões de ser quem se é, entre reencontros e afirmações.

E assim el@s estavam lá. Dançando, balançando as saias, acompanhando com palmas e cantares atentos. Gente do interior, do noroeste paulista, da capital paulista – zona leste, zona sul –, ABC paulista, do Vale do Paraíba. Formando novos vínculos e fazendo permanecer os já consolidados. Juntando gente de tão longe, com tanto em comum. Descortinando mundos numa expansão de possibilidades, realizando um café virtual para exibição da coreografia final trabalhada no curso: uma grande roda de carimbó, o peneirar da dança do cafezal paulista que deixou saudades e um desejo de encontro e realização presencial do curso, na certeza de que os processos de aprendizado nos tocam e permeiam definitivamente.

Os saberes da tradição oral compartilhados e experimentados pelas palavras e pelo corpo destacaram que as interfaces tecnológicas se apresentam como um meio em transformação, contínuo e constante. E que esses meios puderam estreitar, captar e propulsionar trajetórias culturais de tempos e formatos distintos, de formas de existir e de se reconhecer numa sociedade e num determinado grupo, sendo um meio e não necessariamente um fim em si mesmo, e cuja oportunidade de apropriação pelo público idoso, pelos guardiões e brincantes da cultura popular pode e deve ser fomentada.

Nesse sentido, o aparato on-line denota uma janela de sintonia entre gerações, contemplando formas de transmissão de conhecimento e registro de oralidades para além dos mecanismos tradicionais, extrapolando públicos específicos e recortes etários determinados, além de atestar, afinal, que idoso não é coisa do passado, tampouco a cultura popular. Isso não quer dizer que as limitações econômicas, sociais, culturais e geográficas não andem de mãos dadas nesse compasso, mas de como situações estruturais graves de exclusão, limitação e desumanidades das mais diversas – presentes na realidade tal qual ela é desde os tempos mais analógicos, podem ser em alguma medida atenuadas. Isso passa pela possibilidade de valorização dos trabalhos de culturas tradicionais e de fazer coletivo, de documentação e registro de culturas orais, contornando a necessidade de documentação pela forma escrita e enciclopédica, típica da tradição ocidental hegemônica, bem como das eventuais dificuldades de locomoção e aproximação de localidades distantes entre comunidades, pessoas idosas e de toda sorte podendo interagir sem necessidade de maiores logísticas e investimentos financeiros para chegar a um determinado espaço de realização da atividade. Isso abarca ainda uma maior visibilidade para a sabedoria de griots, sábios ou velhos de loa, de guardiões de histórias que se verbalizam e se manifestam nos corpos, nas peles, na existência das pessoas mais velhas, colocadas muitas vezes como menos relevantes sob uma perspectiva mercadológica, mas que podem encontrar um espaço de destaque, protagonismo e autonomia nessa seara, o que, do ponto de vista operacional, é algo da maior importância a ser perseguido no pensar e fazer programático dos articuladores culturais e educadores.

Nessa mesma linha, a importância dos vínculos das pessoas idosas com seus núcleos de atividade, seus representantes e sua comunidade de convivência pode extrapolar e aproximar realidades físicas de formas muito diversas, possibilitando, por exemplo, que frequentadores de diversas unidades, de localidades e realidades distintas, encontrem sincronicidade pelo meio virtual, deixando aberta uma porta para encontros agregadores, lançando um olhar de inovações possíveis em contraponto aos estigmas e estereótipos de limitação, fragilidade, dependência e condicionalidades estruturalmente direcionado a essas pessoas.

Em Ritmo, Cultura Popular e Envelhecimento conexões ancestrais e digitais se entrelaçaram em numa pequena esteira de paralelos possíveis, de reflexões sobre oralidades digitais e tecnologias em benefício das identidades, da arte do encontro, da roda em que se canta, dança e se vive, transmitindo saberes que cirandam pela palavra e pelos corpos de todas as idades no mundo, nos terreiros, nos bairros, nas redes. Sociais, globais, presenciais ou híbridas, numa incursão de pessoas dispostas a buscar, entregar e repartir, a trazer suas próprias narrativas e situá-las numa partilha junto ao outro e um possível todo, a um esboço de país e de caminhos para exercer a cidadania por meio do acesso e da fruição cultural e digital.

Na atual conjuntura, essas conexões não se resumem a um momento de contingência, mas figuram como um ponto de partida, um compromisso necessário do ponto de vista da contribuição das ações do Sesc para a valorização das pessoas idosas também dentro das realidades virtuais, ampliando as perspectivas para a interligação entre pessoas diversas e suas vivências, assim como a visibilidade do público 60+ e das formas tradicionais de se fazer cultura em tempos de ancestralidades conectadas.

Vídeos das atividades:

Baixe a revista completa aqui.

Clique aqui para ver edições anteriores da Revista Mais 60.

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais, de acordo com a nossa Política de Privacidade, para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando, você concorda com estas condições.