Foto por jcomp (Freepix)
Por Barbara Martins* e Patrícia Grinfeld** Na linha de frente do atendimento à comunidade, profissionais da área da saúde de Guarulhos nos inspiram a pensar sobre a importância da rede para cuidar de crianças e cuidadores(as) e, ainda, sobre como superar limitações impostas pelo contato remoto.
A pandemia de COVID-19 aprofundou e escancarou uma série de vulnerabilidades e fragilidades que estavam postas em nossa sociedade, mas eram invisibilizadas. Uma dessas fragilidades, que veio a se tornar um tema central da crise que hoje vivemos, diz respeito ao trabalho do cuidado, trabalho esse sistematicamente desqualificado, mas que agora começa a ser reconhecido como essencial para a manutenção da vida. Nos últimos dois meses, o Sesc Guarulhos desenvolveu a ação “Cuidar e Cuidar-se: a atuação de profissionais da saúde de Guarulhos”, que faz parte do “Cuidar de Quem Cuida”, ação do Sesc São Paulo que propõe reflexões em torno das pessoas relacionadas aos cuidados na faixa etária da primeira infância (0 a 6 anos).
O conteúdo, produzido fundamentalmente por meio da escuta a profissionais da área da saúde – que trabalham no atendimento a famílias gestantes e com bebês e crianças –, apresenta intersecções importantes entre as trajetórias das equipes para a manutenção de seu trabalho ao longo da pandemia. Dois pontos de convergência especialmente marcantes dizem respeito à percepção da importância da união e ao desenvolvimento de estratégias coletivas de suporte e de troca, fala e escuta para amparar e promover saúde mental para as famílias atendidas e entre as próprias profissionais; assim como ao desafio de sustentar um estado de presença – essencial para a ação de cuidar – quando do contato remoto, intermediado por uma tela.
Em nossa cultura, a ideia de cuidar frequentemente aparece atrelada à uma dupla – quem cuida (agente de cuidados) e quem é cuidado (objeto de cuidados). Porém, ainda que o cuidado, condição para nossa existência e saúde, se efetive na dualidade, o agente de cuidados depende de uma rede que suporte, material e emocionalmente, suas ações.
Com a pandemia e o necessário isolamento social, as redes presenciais de suporte ficaram reduzidas ou inexistentes, exigindo novas maneiras de cuidar e cuidar-se. O virtual tomou conta da cena, lançando-nos massivamente ao tempo-espaço remoto e, ao mesmo tempo, a processos de invenção e reinvenção.
Os depoimentos de líderes comunitárias da Pastoral da Criança, de agentes de saúde da UBS Vila Fátima e de seus respectivos coordenadores, apresentados na série de podcast “Cuidar e Cuidar-se: a atuação de profissionais da saúde de Guarulhos”, evidenciam a importância da união e a potência criativa desses serviços para a manutenção do trabalho de assistência às famílias e o suporte às equipes no contexto pandêmico. Uma saída criativa, que mostrou a força da rede, foi o auxílio da população mais jovem da comunidade àqueles que precisavam fazer uso de dispositivos móveis para a atenção às famílias, mas não dominavam a tecnologia.
Aliás, a utilização de aplicativos de videochamada foi fundamental para viabilizar o desenvolvimento de estratégias coletivas de acolhimento e trocas, bem como a manutenção do vínculo dos serviços com seu público e o monitoramento, dentro do possível, da saúde de bebês, crianças e gestantes principalmente.
Embora parte do cuidado venha sendo possível devido à virtualidade, há algo essencial na ação de cuidar que se torna um grande desafio quando o cuidado se dá remotamente: a presença. Como estar junto, com presença, mesmo que não presencialmente?
Costumamos dizer que uma pessoa está “de corpo presente, mas de cabeça ausente” quando ela está desligada, desconectada do que ocorre à sua volta. Nos cuidados que acontecem por meio das telas, a imaterialidade do corpo exige uma “cabeça presente”. Em outras palavras, é preciso que o agente de cuidados esteja bastante atento e interessado ao que escuta e observa na relação com seu objeto de cuidados e na relação deste com seu ambiente.
Em se tratando da atenção remota a famílias com bebês e crianças na primeira infância, é importante que o cuidado não se restrinja ao relato dos cuidadores primordiais sobre os pequenos. Sempre que possível, os bebês e crianças devem ser incluídos nas videochamadas para que o agente de cuidados consiga observá-los em interação com seus cuidadores primordiais. É a partir da relação com o outro que podemos avaliar a saúde mental dos bebês e crianças, detectando se há sinais de sofrimento ou indicadores de risco psíquico (que resultam no comprometimento do desenvolvimento infantil) e, portanto, na necessidade de intervenção.
A expressão “cabeça presente” também faz alusão à indispensável disponibilidade psíquica (para acolher, dar atenção, oferecer o que é necessário ou demandado) do agente para com seu objeto de cuidados. Num momento em que todos nós, em maior ou menor grau, estamos sendo afetados por intensas experiências emocionais decorrentes das tantas incertezas, dificuldades, medos, angústias e perdas trazidas pela pandemia, é preciso cuidar de quem cuida para que cuidadores e cuidadoras não se “desconectem” de seus objetos de cuidados em função de estarem demasiadamente tomados por tais afetos.
Ainda que as experiências emocionais resultantes da pandemia e seus desdobramentos sejam singulares, a vivência pandêmica é coletiva. Por isso, precisamos criar dispositivos coletivos para acolhimento e troca, fala e escuta de cuidadores e cuidadoras, a fim de favorecer a elaboração das vivências emocionais e a construção de recursos individuais e coletivos para o enfrentamento dessas vivências. Os aplicativos de videochamada, que permitem conferências em grupo, continuarão sendo uma ferramenta essencial para conectar e reunir pessoas, instituições e comunidades com o objetivo de prevenir a saúde mental de quem cuida e, consequentemente, de quem é cuidado, na pandemia e no pós-pandemia.
*Barbara Martins Sampaio da Conceição é artista da cena, arte-educadora e educadora de atividades infanto-juvenis do Sesc Guarulhos.
**Patrícia L. Paione Grinfeld é psicóloga, pós-graduada em “Psicoterapia de Casal e Família” e em “Psicanálise na Perinatalidade e Parentalidade”, e sócia-fundadora da Ninguém Cresce Sozinho.
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Para ouvir o podcast “Cuidar e Cuidar-se: a atuação de profissionais da saúde de Guarulhos” acesse o Sesc Guarulhos no Google Podcasts. A transcrição dos episódios está disponível aqui.
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