Da Internet Livre ao Espaço de Tecnologias e Artes

01/08/2018

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Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc 24 de Maio | Foto: Roberto Assem

Desde os primeiros terminais de acesso à internet no final dos anos 90, até a configuração atual dos 37 ETAs, já se vão quase 20 anos de história. 

Faltam alguns minutos para as dez horas da manhã. O vento frio não chega a incomodar quem circula minimamente agasalhado pelo centro de São Paulo. Diógenes, 62 anos, está ansioso. No Espaço de Tecnologias e Artes (ETA) do Sesc Carmo, ele pretende dar início ao projeto de um carrinho automatizado. Trouxe as pecinhas de plástico e alguns circuitos de casa mesmo. Mateus, educador do ETA da unidade, conhece o frequentador há alguns meses; eles montaram juntos a CNC (máquina fresadora) do espaço. Mateus dá alguns pitacos no projeto de Diógenes enquanto recebe outros frequentadores do ateliê aberto. Na parte da manhã, o público-alvo são os adultos. Na parte da tarde, costumam vir os mais jovens.

Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Osasco | Foto: Danny Abensur

“Os sensores que você estava aguardando chegaram!”, Mateus anuncia para Joel, 73 anos, enquanto retira de uma gaveta um saquinho transparente com alguns pares de plaquinhas que serão conectadas à uma placa um pouco maior, baseada em Arduino. Uma senhora de sessenta e poucos anos está sentada em um dos cantos do conjunto de mesas modulares. Ela sorri para quem entra na sala e observa. Seu filho lhe diz com alguma frequência que ela precisa estar mais antenada às novidades da eletrônica e do mundo digital. Por isso veio ao ateliê. Por enquanto, vai só observar. Há uns cinco ou seis anos, fez um curso para aprender a mandar e receber e-mails no Sesc Bom Retiro. Joel frequentou o mesmo curso e lembra, com um sorriso nostálgico, que, à época, o instrutor da então sala de Internet Livre da unidade os ensinou a criar uma conta de e-mail gratuita, redigir no editor de texto e, ao final, estimulou os alunos e alunas a trocarem mensagens eletrônicas.

Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Jundiaí | Foto: Giuliano Martins

Wesley, 51 anos, começou a frequentar o Sesc Carmo por volta de 2005 para ter acesso a computadores conectados à internet, ler periódicos e jogar xadrez. Sua alfabetização digital se deu anos antes, no programa Acessa São Paulo, do governo do estado, e também em cursos particulares. No Sesc, recorda-se do tempo em que agendava horário para ter acesso a um computador conectado à rede. Primeiro eram apenas trinta minutos por vez, depois aumentou para uma hora, uma hora e meia. Com o passar dos anos, entende Wesley, o grande apelo que tinha a possibilidade de acessar internet gratuitamente em uma sala com computadores foi perdendo força. O wi-fi e os smartphones reduziram a demanda pelo modelo de navegação oferecido nas antigas salas de Internet Livre. Wesley agora está interessado em tudo relacionado à robótica – embora se arrisque também em tecnologias análogicas no ETA, como o corte e a costura. Ele ajudou na construção da impressora 3D que está trazendo ao mundo outro projeto de Diógenes: a réplica de um abridor de latas. Um colega do Sesc 24 de Maio ajudou na modelagem do artefato. “Manufatura aditiva!”, insiste Diógenes. “‘Impressão 3D’ é usado para chamar atenção, mas o correto é ‘manufatura aditiva'”, explica um pouco contrariado. Wesley ouviu dizer que o novo Sesc Avenida Paulista tem três (!) salas no ETA. Acredita ser uma tendência.

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O programa Internet Livre, que antecedeu os atuais Espaços de Tecnologias e Artes, surgiu em 2001 e, inicialmente, tinha como principais objetivos dar acesso à rede mundial de computadores – que estava se popularizando desde meados dos anos 90 no Brasil – e promover a alfabetização digital. Naquele ano, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, somente 8,6% dos lares tinham computadores com acesso internet. Só em 2006, esse número chegaria a ainda tímidos 16,9% no país.

Sala de Internet Livre do Sesc Vila Mariana em 2001 | Foto: Sandra Narezzi (Acervo Sesc Memórias)

A antiga sala de multimídia do Sesc Vila Mariana antecipou-se ao programa e começou a oferecer, já em 1999, períodos de acesso à internet, com mediação pedagógica, nos 18 computadores do espaço cuja função primordial era a consulta ao acervo do Centro de Música da unidade. No mesmo ano, o Sesc Ipiranga instalou um terminal – o PlugSesc – para acesso à internet e consulta de mídias junto à Ilha de Leitura. E em 2000, as unidades de Ribeirão Preto, Araraquara e Interlagos também passaram a oferecer máquinas com acesso à web.

Em 2001, o Sesc Araraquara foi o primeiro a receber uma sala de Internet Livre. No mesmo ano, as unidades de Campinas, Belenzinho, Carmo, Consolação, Ipiranga, Pompeia, Santo Amaro e Vila Mariana abriram seus espaços. As salas, concebidas do ponto de vista arquitetônico especialmente para o programa, continham computadores de última geração, banda larga, telas e telões de plasma, sistemas de som e bancadas fixas. Os chamados web-animadores eram responsáveis pela programação permanente oferecida ao público, que envolvia cursos de introdução e aprofundamento a ferramentas de internet e informática em geral.

Sala de Internet Livre do Sesc Belenzinho em 2002 | Foto: Nilton Silva (Acervo Sesc Memórias)

Em 2004, o número de salas dobrou. O Sesc Itaquera, Interlagos, Piracicaba, São Carlos, Bauru, Ribeirão Preto, Rio Preto, Catanduva, Pinheiros, Santos  e (pouco mais de um ano antes) Santo André passaram a oferecer suas próprias salas de Internet Livre.

Sem deixar de lado as atividades voltadas à inclusão digital e as janelas de navegação livre, uma série de programações voltadas à investigação da cultura digital (ou da cultura de rede), da ética do software livre e das relações entre arte e tecnologia encontravam espaço na grade de cursos e oficinas oferecidos – desde os primeiros anos da Internet Livre.

A democratização do conhecimento, a criação colaborativa e o compartilhamento de bens culturais são noções já bem estabelecidas no programa por volta de 2007. Aos poucos, a ideia do acesso dá ainda mais espaço à produção de conteúdo. Programações que transformam as salas em laboratórios de experimentação em tecnologias e artes vão se tornando mais frequentes nos anos seguintes. E pouco mais de dez anos após o início do projeto, a necessidade de um aprofundamento da experiência torna-se evidente.

Em 2014, mais da metade (54,9%) dos domicílios no Brasil estavam conectados à internet. E, então, já não é mais o computador o meio de acesso principal – a era dos smartphones, da conexão sem fio e da ubiquidade da rede estava posta. A noção da tecnologia como extensão do corpo humano – e este como instância primeira da inventividade –, o alargamento de possibilidades acarretado pelo conceito e também sua indissociação das expressões artísticas apontavam o horizonte de uma nova proposta.

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O Espaço de Tecnologias e Artes, hoje presente em 35 unidades do Sesc São Paulo, na capital e no interior, surge em 2015 para reafirmar, em uma nova configuração, princípios do antigo programa Internet Livre e para ampliar os conceitos de “tecnologia” e de “arte” em centenas de programações por mês.

Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Birigui | Foto: Roberto Assem

Saem as bancadas fixas e entram as mesas modulares, passíveis de rearranjo conforme a atividade. Há computadores na sala, mas eles não são mais protagonistas. Agora dividem o espaço com tubos de cola, câmeras fotográficas, mesas de som, máquinas de costura, pincéis, brocas, martelos, circuitos integrados, fios de cobre e rolos de tecido. As tecnologias analógicas e as tecnologias digitais dialogam em oficinas e cursos de produção e performance audiovisual, programação, moda, ciência aberta, robótica, artesanato e artes visuais, modelagem e impressão 3D, design e também nas aulas de inclusão e letramento digital – pois, apesar da evolução do acesso no Brasil, o fenômeno da exclusão digital não foi totalmente superado.

A apropriação do conhecimento técnico para criar e o estímulo ao engajamento na experimentação de instrumentos diversos e de incontáveis possibilidades de expressão artística, em um espaço de liberdade, reflexão e cooperação, dão o tom do dia a dia dos ETAs.

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A impressora 3D que está dando vida ao abridor de latas de Diógenes no Sesc Carmo foi construída pelos educadores e frequentadores do ETA da unidade com base em um projeto de código aberto (open source). Na internet, é possível encontrar as especificações do modelo e as instruções de elaboração e montagem de suas partes – é a cultura maker, do “faça você mesmo”, e de modo cooperativo, colocada em prática. Copiar e, principalmente, transformar projetos como esse são práticas estimuladas pela cultura hacker – cujos valores começaram a ser fomentados na programação do Sesc ainda nos tempos da Internet Livre.

Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Araraquara | Foto: Lucas Tannuri

Mas ser hacker não é algo ruim? São os filmes dos anos 80 os culpados pela má fama do hackerismo, brinca Alexandre Villares, educador do ETA do Sesc Avenida Paulista. O espírito hacker, como o próprio conhecimento científico, pode ser usado tanto em benefício de uma comunidade quanto para práticas reprováveis, explica Antonio Celso, educador do ETA do Sesc Santos. Para Villares, a perspectiva hacker pode ser aplicada às mais diversas tecnologias (da costura à arte computacional) e tem mesmo a ver é com “a curiosidade, o desejo de entender como as coisas funcionam e experimentar talvez fazê-las funcionar de outra maneira, potencialmente melhor, mais útil, mais interessante ou divertida”.

O conceito surgiu nos anos 50, nos Estados Unidos, e se difundiu desde então promovendo uma filosofia do compartilhamento de conhecimentos, da cooperação, da liberdade, da horizontalidade de saberes e da experimentação tecnológica para a evolução dos objetos, dos processos e, no limite, do viver.

Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Avenida Paulista | Foto: Laura Rosenthal

Empreitadas à margem da lei, praticadas por profundos conhecedores do universo digital, acabaram ofuscando o potencial verdadeiramente revolucionário e benéfico do hackerismo. Mas isso tem mudado. Como destaca Ana Carolina, educadora do ETA do Sesc Pompeia, encontra-se hoje nos espaços hacker, um forte estímulo à compreensão de “como e por que [as tecnologias] impactam e transformam nossa forma de pensar e agir”. Trata-se de um movimento para trazer “maior autonomia e controle a respeito de processos que fazem parte do nosso dia a dia” – do hiperconsumo ao silenciamento de certas vozes, só para citar alguns exemplos. São reflexões que encontram não apenas ressonância nas programações dos ETAs, mas são verdadeiros disparadores da ação programática nesses espaços.

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No percurso desde as antigas salas de Internet Livre aos atuais Espaços de Tecnologias e Artes nota-se, portanto, uma constante: o foco no desenvolvimento humano e da cidadania. Se, de 2001 a 2018, a relação dos indivíduos com as tecnologias mudou tanto, não é exagero pensar que outras mutações radicais possam estar adiante. No que quer que o programa venha a se transformar no futuro, a ênfase na experiência humana e na cidadania – e na própria investigação de como melhor desenvolvê-los – deverá seguir inabalável, em um ambiente de liberdade e troca de saberes.

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