Leia a edição de julho/22 da Revista E na íntegra
No início dos anos 1970, uma das mais importantes instituições da Alemanha, a Escola Superior de Música de Hamburgo, receberia uma brasileira em seu concorrido concurso de admissão. Diante dos avaliadores, a candidata executou ao piano as três últimas sonatas do compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827). Eram mais de 130 postulantes, virtuoses de várias nacionalidades, mas a ousadia da musicista na escolha das peças conquistou os examinadores. Emblemático, o episódio é uma prova da simbiose entre determinação e brilho que a pianista externava, evidentes ao longo de sete décadas de trajetória artística e mais de 4 mil recitais, a maior parte deles entre Estados Unidos e Europa. Seu nome: Yara Bernette (1920-2002), àquela altura uma das mais prolíficas, aclamadas e talentosas intérpretes eruditas do Brasil.
“Ao contar essa história, lembro-me dela me indagando: você pode imaginar o que representava isso? Uma mulher, brasileira, tocando as últimas sonatas de Beethoven em uma prova de admissão, justo na Alemanha?”, comenta Luciana Sayure, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), ex-aluna de Yara Bernette. Profundamente imersa na música, a artista – nascida Bernette Epstein – encarava o ofício e seus diferentes aspectos como uma missão, e fez parte do corpo docente da instituição alemã até a aposentadoria, em 1988.
Antes da chegada ao Brasil, a família Epstein vivia em Boston, nos Estados Unidos. Yara desembarcou com os pais na capital paulista ainda bebê. Enquanto crescia, recebia incentivos musicais da família. Aos seis anos, aprendeu a tocar as primeiras teclas com um tio, o russo de origem judaica Joseph Kliass (1895-1970), professor de gerações de músicos clássicos em São Paulo. Os anos de conservatório seguiram até sua estreia profissional, em 1938, aos 18 anos, no Theatro Municipal de São Paulo, como solista do Concerto Nº 1, do polonês Frédéric Chopin (1810-1849).
Voltaria ao teatro da Praça Ramos de Azevedo outras tantas vezes. Dizia, em entrevistas, que se sentia “parte do Municipal”. Os aplausos entusiasmados da plateia se repetiriam em recitais antológicos, que a impulsionaram a se lançar como intérprete também fora do Brasil. Encorajada pelos compositores Arthur Rubinstein (1887-1992) e Cláudio Arrau (1903-1991), dois de seus mestres, faria sua estreia em Nova York no lendário
The Town Hall, casa que recebeu, entre outros nomes, o compositor russo Igor Stravinsky (1882-1971).
A musicista também foi responsável por apresentar a primeira audição no Brasil (e na América do Sul) do Concerto Nº 3 para piano e orquestra, do compositor e maestro russo Sergei Rachmaninoff (1873-1943), um dos expoentes do período romântico na música erudita e tido como um autor hermético e de execução complexa. “Ela foi uma das poucas mulheres que tocaram Rachmaninoff no piano. As composições do autor possuem escalas para os dedos irem longe. Os dedos femininos não alcançavam aquilo. Ela dava pulos e saltos para poder tocá-lo”, revela a cineasta Lucila Meirelles, diretora do documentário Yara Bernette, mergulhada na música (Leia mais no boxe Estado puro).
Sob encomenda da gravadora alemã Deutsche Grammophon, Yara foi a primeira mulher a gravar na íntegra os Prelúdios op. 23 e 32 de Rachmaninoff. Em plena ascensão, entre 1945 e 1950, realizou cinco turnês nos EUA. Tocou com a prestigiosa Filarmônica de Nova York e executou, em solo estrangeiro e em distintas ocasiões, composições dos brasileiros Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone (1897-1986) e Camargo Guarnieri (1903-1993).
“Lembro-me da primeira vez que ouvi a Yara, em um concerto no Teatro Cultura Artística, em São Paulo, em 1988. No programa, As variações em Fá menor, de Joseph Haydn (1732-1809), a Sonata Appassionata, de Beethoven, e Terceira Sonata, de Chopin. Foi arrebatador. Sem dúvida, é uma referência para minha e todas as gerações que a conheceram”, diz a professora Luciana Sayure.
Além de sua atuação como pianista, Yara nutria especial dedicação por lecionar. “Em seus ensinamentos, ela sempre prezou pela qualidade do estudo, isto é, um estudo concentrado, sem interferências, privilegiando a qualidade sonora, o conforto muscular e a fantasia musical”, recorda-se Luciana. Como artista, firmou-se como uma personalidade intensa, de rápido raciocínio e dona de declarações categóricas como: “Cada vez que eu faço música, é vida ou morte”.
“Ela amava literatura, artes visuais, tinha muita sede de conhecimento, dizia que todo músico era um aprendiz eterno porque a arte é infinita. Como pianista, Yara era um monumento. Suas performances sempre sólidas esbanjavam energia, personalidade e sensibilidade. Sua profusa sonoridade e a beleza de seu fraseado fazem dela uma criadora única”, rememora a professora.
Tais lembranças e aprendizados também marcaram a cineasta Lucila Meirelles. “Ela dizia que a cada ano tocava diferente. Porque ela já era diferente, já tinha mudado, havia se transformado com o passar do tempo. Uma pessoa que pensava sempre em renovação”, enfatiza, repetindo uma das máximas memorizadas durante o convívio com a pianista enquanto captava as imagens para o filme Yara Bernette, mergulhada na música. “‘Toco as obras que me dizem muito. Então, eu penetro naquela obra; eu mergulho inteiramente dentro da obra; exploro tudo; estudo tudo e ela vira minha’. Esta era Yara Bernette”, declara a diretora.
(Por Manuela Ferreira)
PIANISTAS BRASILEIRAS DESBRAVARAM DIFERENTES CENÁRIOS EM BUSCA DE RECONHECIMENTO
Diversas foram as intérpretes clássicas brasileiras que tiveram trajetórias respeitáveis a partir do século 19. Entre os nomes mais conhecidos, Chiquinha Gonzaga (1847-1935), Guiomar Novaes (1895-1979), Dinorah Carvalho (1895-1980), Magdalena Tagliaferro (1893-1986) e Antonietta Rudge (1885-1974). “Em comum, elas têm o piano como instrumento de expressão e comunicação com o mundo, e o fato de que foram revolucionárias. Suas personalidades e talentos as levaram a conquistar espaços muito desejados e até então pouco ocupados por mulheres. Foram desbravadoras”, avalia a professora Luciana Sayure.
Imagem ao lado: Guiomar Novaes | Bain News Service, Publisher. Novaes. , ca. 1915. [Between and Ca. 1920]. Library of Congress/Public Domain
Ao retornar ao país, em 1988, Yara encerrava um ciclo de 16 anos radicada na Alemanha, país em que sua notoriedade e reconhecimento foram – e permanecem sendo – muito maiores do que no Brasil. Realidade vivenciada, ainda hoje, por musicistas de talento da nova geração, como a pianista, compositora e arranjadora Clarice Assad. “Quando vim morar nos Estados Unidos, e comecei a estudar composição, tive também aulas de piano clássico. Foi só estudando aqui que ouvi falar de algumas dessas pianistas, ou seja, tive que sair do Brasil para redescobri-lo”, comenta Clarice.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em abril de 1996, Yara analisou as dificuldades comuns às musicistas de nível internacional. “Guiomar era conhecida nos Estados Unidos e Magda, na França. É pouco. Havia espaço para alguém mais jovem. As dificuldades eram outras. Não tínhamos concursos que nos credenciassem. Era preciso abrir caminho sozinha.”
Imagem ao lado: Magdalena Tagliaferro | Acervo Arquivo Nacional/Domínio Público.
Na avaliação de Clarice Assad, os desafios de hoje possuem novos contornos. “Enquanto mulher e imigrante, por mais aceitas que sejam em seus países adotivos, é comum existir, a princípio, um sentimento de não pertencimento. Mas isso vai mudando com o tempo e, pessoalmente, minha forma de lidar com isso, no começo, foi aceitando essa condição de não ser nem de lá nem de cá. Olhar para o mundo como um lugar só, e pertencer a ele. Eu acho que isso acontece muito com músicos que saem de seu próprio país”, arremata.
DOCUMENTÁRIO CAPTOU A CRIADORA EM PLENA ATIVIDADE, AOS 75 ANOS
Ao longo de um ano, a cineasta Lucila Meirelles teve encontros frequentes com Yara Bernette. O objetivo era realizar registros para o documentário Yara Bernette: mergulhada na música (1994) mas, aos poucos, as reuniões se converteram em momentos de observação, troca e muito aprendizado. À época, a musicista completara cinco décadas de carreira e permanecia inteiramente dedicada ao piano – submersa, mais precisamente.
“Uma série de coincidências me levaram a essa reflexão sobre mergulhos. Ela era uma pessoa que ia fundo, uma pessoa de muita intensidade, de vasto conhecimento e cultura. Além disso, escolheu como nome artístico Yara, o nome da rainha das águas”, comenta a cineasta. A ideia de mergulho está presente, também, no jogo de imagens, que remetem a cursos d’água, fluidos e oceanos que compõem a proposta estética do filme.
O documentário passeia por fragmentos da carreira da artista até então, destacando, por exemplo, a profunda ligação entre Yara e seu instrumento – sempre em torno da pianista, como uma extensão de sua imagem. A produção audiovisual ainda apresenta cenários que estão intimamente ligados à sua trajetória, a exemplo do Theatro Municipal de São Paulo, palco de seu recital de estreia, em 1938. Também são exibidos trechos de concertos memoráveis da intérprete, entre eles o Concerto Nº 3 para piano e orquestra, de Sergei Rachmaninoff, de 1973, no qual é possível ver a espetacular técnica de Yara Bernette: a certa altura, a precisão dos seus movimentos cria a ilusão de que suas mãos sequer tocam o teclado.
Para assistir ao documentário Yara Bernette: mergulhada na música, acesse: sesctv.org.br/protagonismofeminino
A EDIÇÃO DE JULHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Neste mês, quando o Sesc São Paulo promove mais uma edição do FestA! – Festival de Aprender, celebramos a ludicidade dos jogos analógicos e revelamos que, apesar do surgimento de novas tecnologias, eles atravessam gerações, atualizando-se em temas e formatos, incorporando narrativas inovadoras e estimulando o aprendizado. Nossa reportagem principal prova que o jogar, ato que perpassa todas as fases da vida, compõe uma importante parte da existência humana e contribui para o exercício da socialização e o amadurecimento de nossa criatividade.
Além dessa reportagem, a Revista E de julho traz outros conteúdos: um texto que convida o leitor a uma imersão na Trilha do Sentir, passeio sensorial e acessível em meio à restinga, na Reserva Natural Sesc Bertioga; uma entrevista com o professor e pesquisador Fernando José de Almeida sobre caminhos para a educação na era digital; um depoimento do diretor mineiro Gabriel Villela sobre dramaturgia, direção e seus 30 anos de casamento com o teatro; um passeio fotográfico pelas obras da exposição, em cartaz no Sesc Bom Retiro, que celebra as experimentações do artista Penna Prearo; um perfil de Yara Bernette (1920-2002), um dos grandes nomes brasileiros do piano no século XX; um encontro com Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital que defende não haver mais divisão entre vida on e offline; um roteiro por 5 passeios divertidos e educativos nas unidades do Sesc SP para fazer com a criançada no mês das férias; quatro poesias inéditas assinadas assinadas pelo artista Ricardo Aleixo; e dois artigos, assinados por Sueli Angelo Furlan e Thaise Costa Guzzatti, que refletem sobre o Turismo de Base Comunitária.
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