Detalhes da tela “Retrato de famílias” (2017), de Gildo Xavier | Foto: Isabella Matheus
O curador educativo da 14ª Bienal Naïfs do Brasil – Daquilo que escapa (2018), no Sesc Piracicaba, recorda um incidente particular, que ocorreu à época da exposição, para refletir sobre o uso dos materiais educativos de mostras de artes visuais.
por Alexandre Araujo Bispo*
É relativamente comum, em exposições de artes visuais, a criação de conteúdos educativos voltados para estudantes e professores de diferentes níveis de formação escolar e públicos como bebês, pessoas com deficiências físicas ou mentais e idosos. São conteúdos que envolvem cursos de formação de professores, visitas mediadas temáticas, oficinas artísticas [e acessíveis] e elaboração de material educativo. Resultado de pressão social, abordagens pedagógicas recentes passaram a incluir temáticas historicamente ocultadas e silenciadas como descolonização, racismo e genocídio, gênero, sexualidade e política.
Evidentemente nem todas as instituições que ofertam serviços de ação educativa conseguem produzir material específico para os públicos que acorrem a exposições em busca de formação complementar.
Em 2018, no contexto da 14ª Bienal Naïfs do Brasil – Daquilo que escapa (Sesc Piracicaba), com curadoria de Ricardo Resende, Armando Queiroz e Juliana Okuda Campaneli, enquanto conduzia uma formação de professores da rede pública de ensino de Piracicaba, eu insistia que o material educativo – uma publicação feita em diálogo com a equipe do Sesc – fosse efetivamente usado, ainda que para isso fosse destruído. Contra o sono dos espaços dos armários, estantes e gavetas, sugeri que, pelo fato de ser algo material, ele poderia ser radicalmente transformado, jamais esquecido.
Em função da obrigatoriedade moderna de guardar papéis que comprovem nossas ações e feitos – holerites, receitas médicas, recibos, carimbos de estágio cultural etc. – acabamos por recolher, às vezes quase naturalmente, os impressos produzidos em torno das exposições de arte. Afinal, não arquivamos apenas por obrigação social. Há um prazer na ação de guardar coisas.
Esse estímulo radical em defesa de outros modos de usar uma publicação educativa tem a ver com meu incômodo em chamar publicações educativas – folder, brochura – de “material”, como se fossem sinônimos. Ao fazê-lo, tanto aproximamos as publicações aos catálogos de exposição – é isso que queremos? – quanto deixamos de pensar as implicações para a ação educativa da dimensão física das coisas e, portanto, dos seus efeitos pedagógicos para além da exposição.
Reprodução da tela “Benzedeira” (2018), de Shila Joaquim | Foto: Isabella Matheus
Nos dias que se seguiram à formação, alguns professores retornaram à bienal com seus alunos e receberam, ao final, uma quantidade de material educativo proporcional ao tamanho do grupo. Inspirado nas reflexões de Paulo Freire (1921-1997), sobre o lugar que palavras e imagens jogam na construção social da realidade com vistas a uma educação crítica e libertadora, e Ana Mae Barbosa (1936), que criou a proposta triangular para o ensino da arte – fazer, ler e contextualizar –, o material chegou às mãos do pai de uma criança de sete ou oito anos. Como contou a criança à professora, o pai considerou o objeto algo diabólico e o queimou. É plausível supor que ele fora afetado duplamente. Primeiro, pela forma livro. Em seguida, por imagens que, sem quaisquer rodeios – característica da produção plástica naïf – abordavam assuntos como: diversidade cultural e intolerância religiosa no Brasil, destruição ambiental e especulação capitalista, feminicídio, genocídio de povos indígenas, quilombolas e pobres de modo geral, racismo, novos arranjos familiares, crítica a ausência de planejamento urbano, humor e política.
Diante da atitude de vandalismo cultural do pai (ele não é a primeira nem será a última pessoa a fazer isso), a criança inteligentíssima procurou a professora e pediu outro exemplar da publicação educativa, mas recomendou, antecipadamente, que ficasse guardada na escola.
No plano do uso, a publicação produziu ao menos dois efeitos: o primeiro destrutivo, sintoma dos ataques mais amplos às relações solidárias entre cultura e educação; o segundo, preservacionista, quando justamente a escola pública se apresenta como lugar seguro à realização dos direitos da criança. O direito ao conhecimento diverso, mas, também o direito da própria criança de desfazer, se quiser, o material que ganhou de presente ao visitar a exposição. Destruído pelo fogo, preservado pela escola. A mesma sorte não tiveram os materiais documentais – entre os quais publicações científicas, artísticas e obras de arte diversas – do Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018. Não havia um lugar onde se pudesse guardar para consulta futura o que foi destruído pelo fogo.
Gostaria de sugerir com essa estória, que nós educadores e arte educadores levemos aos limites as potencialidades de nossos materiais educativos incorporando a eles a consciência da transformação física da matéria de que são feitos, ainda que isso implique sua destruição material. Isso quer dizer estimular a desmontagem da forma idealizada – refazendo-o em outros formatos – e do conteúdo – reescrevendo textos, corrigindo-os e substituindo imagens –, ou, quem sabe, promovendo a destruição performática programada e consciente por meio de uma experiência poética com a água, o fogo, a terra, o ar, atentos à ação desses elementos na relação com o papel, substância importante, que viabiliza muitas de nossas ideias.
*Alexandre Araujo Bispo é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. É curador, crítico e educador independente. Foi curador educativo da 14ª Bienal Naïfs do Brasil – Daquilo que escapa (2018), no Sesc Piracicaba.
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