A ação tem como objetivo combater o racismo e valorizar pessoas negras (pretas e pardas), apresentando releituras de obras, ressignificando pinturas clássicas, como “A Negra” e a “A redenção de Cam”. Com ilustrações de Mariana Sguilla e curadoria de Carolle Lauriano.
1) A Redenção de Cam, Modesto Brocos
2) A Negra, Tarsila do Amaral
3) Olympia, Edouard Manet
4) Abigail, Di Cavalcanti
A tela “A Redenção de Cam” e a tese do branqueamento no Brasil. Pintada em 1895 pelo pintor espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos, feita pouco depois de declaradas a abolição da escravidão e da instituição da República no país, explora a questão do branqueamento da população brasileira de forma muito perversa: a cena é composta pela avó negra, a filha mulata e a neta quase branca, pois o pai é um homem branco. A avó agradece pelo branqueamento da família elevando os braços aos céus. O título faz referência à passagem bíblica em que Cam, filho de Noé, é castigado por ter olhado o pai nu e bêbado. O fato de Cam ser apontado na Bíblia como suposto ascendente das raças africanas fez com que tal passagem fosse usada na época como justificativa pelos defensores da escravidão negra.
Por muito tempo a população negra representava, aos olhos de boa parte da intelectualidade, o passado e o atraso, sendo essas afirmações corroboradas pelo racismo científico, que chegou a justificar tal inferioridade racial a partir de um determinismo biológico. Em meados do século 19 e começo do século 20, novas teorias científicas surgiram, propondo o branqueamento como solução para um avanço sócio-político-econômico do Brasil, miscigenando a população, incluindo os imigrantes europeus, geração por geração, até mudar o perfil racial do país, de negro para branco. O quadro “A Redenção de Cam”, reverenciado e premiado em sua época, é considerado uma representação visual dessa tese.
Como proposta de ressignificar a ideia do embranquecimento como única forma de redenção de uma população, a artista Mariana Sguilla faz uma releitura da obra a fim de celebrar as famílias negras. Na aquarela, observamos a matriarca da família não mais com um semblante de alívio por ter um neto embranquecido, mas sim, agora expressando orgulho de seu neto que nasceu negro. Com isso, podemos pensar que a reimaginação da constituição de uma família negra feliz e empoderada de si reforça que o afeto, por estar imbricado com a vida, é terreno da política.
Tarsila do Amaral foi o grande expoente do modernismo brasileiro e sua obra contribuiu amplamente para um olhar para as artes brasileiras, especialmente no exterior. Posto a importância da artista para a discussão de brasilidades e a representação dos paradigmas que o país estava vivendo no início do século XX, também é preciso ampliar o espectro do olhar sobre a obra da artista, especialmente na pintura A Negra, que guarda em si, resquícios de um olhar ainda colonial sobre o país, por mais que uma das tentativas do modernismo brasileiro fosse romper com essas questões.
Em 1923, Tarsila do Amaral produziu A Negra, uma pintura importante para sua carreira por apresentar novas técnicas artísticas que iam ao encontro do Modernismo Brasileiro e com a preocupação do movimento com a identidade nacional. Em uma entrevista, Tarsila chegou a revelar que a figura da obra trazia memórias da infância, que era inspirada em uma das escravas de sua fazenda. Por isso, começo aqui o tensionamento pelo próprio título que a artista confere à obra. Já que a obra foi inspirada em uma pessoa, por que o título da obra leva um nome genérico, como se todas mulheres negras estivessem debaixo de um mesmo guarda-chuva subjetivo e/ou identitário? Por que a obra não leva o nome de sua inspiradora?
Posto esses questionamentos, vamos nos adentrar a outros detalhes que apontam algumas outras problemáticas de sua obra, e aqui podemos elencar pontos de observação sobre o trabalho em um viés raciail e de gênero, por meio de três questões importantes a serem debatidas amplamente na sociedade: o legado da escravidão sobre as mulheres negras, o corpo sexualizado e o papel social da “mãe-preta”. Em A Negra, de Tarsila, a imagem central é a de uma mulher negra, nua. O corpo preenche quase todo o plano, a cabeça ovoide se mistura com os lábios grandiosos, ela possui um seio enorme caído sob o braço direito, além de pernas grossas e pés agigantados.
Aqui, é imporante ressaltar que, embora as problemáticas que se estendem sobre a pintura, ela guarda em si uma radicalidade à época: a figura representada no quadro foge dos padrões acadêmicos da beleza europeia, não tem as características da doce senhora paulistana e não pratica uma ação que determine seu posicionamento social como o lavrador de café de Cândido Portinari, ou como as mulatas de Di Cavalcanti.
Mas essa radicalidade se esbarra na própria relação de empatia que Tarsila dizia ter em relação às memórias das negras escravas de sua infância, não escondendo um lugar de privilégio em que ela se encontrava em relação às negras de sua fazenda, tornando-se preocupante por apresentar uma nostalgia de um não tão distante passado escravocrata. Portanto, A Negra, de Tarsila do Amaral, aqui pode ser compreendida como uma alegoria mítica do que a mulher negra representava no imaginário pós-escravidão, de que a mulher negra é subserviente, sexualmente atraente e que carrega em si o peso do cuidado, não somente dos lares, mas também dos filhos de suas senhoras. Imaginário, inclusive, que segue sendo reafirmado nos dias atuais.
Com o intuito de romper com esse legado, Mariana Sguilla repensou uma proposta para A Negra. Seguindo os traços que simbolizam a importância da obra enquanto ruptura estética, aqui, ressignificamos essa ruptura não apenas pelo contexto pictórico, mas pelo simbólico. Ao cobrir o seio da Negra e colocar em seus braços um filho seu, Sguilla nos faz pensar a quem pertence o corpo da mulher negra, exceto a si própria. Dessa forma, ela passa a não mais alimentar os outros, passando então a alimentar os seus, recuperando para si a dignificação de sua própria subjetividade e desejos, que outrora lhe foram negados.
Mariana Sguilla é nascida no interior de São Paulo, mudou-se a trabalho para o Rio de Janeiro aos 24 anos. Sem educação formal em artes, três meses após chegar à cidade experimentou pintar como forma de se distrair e se expressar, auxiliando a adaptação à nova vida e, assim, descobriu o nicho da aquarela em sua forma mais comercial e despojada (i.e.: artistas contemporâneos em redes sociais, como instagram). Na busca por referências e inspirações, se deu conta que os resultados mais populares e disseminados eram majoritariamente brancos, sendo baixa a presença de pinturas com negros e/ou afro-latinos. Assim, comprometeu-se a retratar aquilo com o qual pudesse se identificar, garantindo que produziria sempre algo que trouxesse alguma representatividade para negros. Nos anos seguintes manteve-se autodidata, tendo, a partir de 2018 começado a comercializar algumas pinturas, além de passar a explorar outros tipos de materiais, como tinta acrílica e giz. Em 2020 foi uma das artistas convidadas para o Powerful Profiles, exibição online do Multicultural Heritage Centre, galeria de arte canadense.
Carolle Lauriano é formada em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Artista visual, pesquisadora de arte e curadora independente desde 2018, após dez anos de trabalho com a publicidade, ela encontrou uma forte inquietação de reconfiguração de mundo. Percebendo-se crítica para a moda, Carolle formou um grupo de estudo de arte só com mulheres. Curadora adjunta da 13ª Bienal do Mercosul.
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