POR LÍGIA HELENA FERREIRA ZAMARO*
A vivência do isolamento social – medida fundamental para contenção da propagação do novo coronavírus, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) – tem nos feito refletir diariamente sobre os aspectos e impactos físicos e psicológicos desta condição – que hoje esperamos ser temporária – sobre nossas vidas e perspectivas de relação com círculos sociais, afetos e interesses diversos.
O isolamento social tem um papel crucial e cidadão, pois nos convoca individualmente a colaborar para mitigar uma ameaça à saúde de todos, ou seja, é uma forma importante de proteção da saúde individual e coletiva, simultaneamente.
Fato é que experimentamos no presente aquilo que grande parte das pessoas com deficiência viveu/vive diariamente. Trata-se de uma quarentena histórica, isso porque, durante séculos, a relação das pessoas com deficiência com a sociedade foi cerceada por elementos impeditivos, dificultando sua plena participação na vida pública e coletiva, justamente pela grande presença de barreiras a sua autonomia e mobilidade, inviabilizando o exercício de sua cidadania.
Esta forma não voluntária e naturalizada de asilamento é fruto de nossa sociedade capacitista. Por muito tempo, a convivência de pessoas com deficiência esteve/está restrita ao ambiente familiar e a núcleos reduzidos de pessoas no campo da reabilitação e do cuidado. Este modo de relação foi considerado suficiente e cômodo pela sociedade, ignorando que uma pessoa com deficiência tem em seu horizonte outras dimensões (importantes a qualquer pessoa), como o direito à educação, ao trabalho, ao lazer e à cultura, entre outros. O acesso ao transporte acessível e à mobilidade segura por meio da acessibilidade também caracterizam seu direito de ir e vir, raramente assegurado em nossas cidades. Estas restrições são prejudiciais a todo tipo de contribuição social que as pessoas com deficiência possam trazer ao tempo e ao local em que vivem.
Em um modelo social de deficiência, todas estas dimensões importam para a cidadania e para a felicidade das pessoas com deficiência física, visual, auditiva, intelectual, para as pessoas dentro do espectro do autismo, entre tantas outras. Quando asiladas ou “ilhadas” em casa ou em instituições especializadas, elas estão impedidas de se conectarem propriamente às esferas sociais e políticas, não exercem seu pertencimento comunitário, não se vinculam às identidades culturais de seu tempo e não são lidas e respeitadas como cidadãs, com potencial ativo e transformador.
Aqui, pensando sobre os direitos culturais e as estratégias para que as pessoas com deficiência usufruam mais deles, percebe-se que nos últimos anos, a oferta de acessibilidade se tornou evidente nos ambientes culturais, seja por maior demanda desta população, seja por maior compreensão das instituições sobre a essencial universalização de acesso as suas atividades.
A acessibilização de informações, conteúdos, experiências e serviços aponta para o interesse específico da população com deficiência, mas seus benefícios se estendem diretamente a quaisquer pessoas, com e sem deficiências.
Um ganho acentuado na ação sociocultural recente foi a crescente aproximação dos públicos com relação às produções culturais contemporâneas, pelo acesso (medidas sistêmicas de diminuição de impedimentos – econômicos e culturais) e pela acessibilidade (medidas específicas de diminuição de impedimentos físicos, atitudinais e comunicacionais) juntos.
Com a realidade que se desenha já em alguns países para a retomada de espaços culturais e museus, adotando protocolos de segurança sanitária, é inevitável nos debruçarmos sobre os novos cenários a serem criados, no período pós-pandemia, aqui no Brasil.
As providências de controle sanitário são essenciais para cuidar da população, mas não podem inibir a relação dos públicos com os espaços culturais, uma vez que ainda estamos em árdua construção da democratização dos direitos culturais e de sua apropriação pelos públicos, inclusive como participantes das ações.
E como estes protocolos interferem na acessibilidade cultural das pessoas com deficiência? Enormemente. Um primeiro ponto, efetivamente enfrentado pelas pessoas com deficiência em seu cotidiano, é a necessidade de aproximação física e outras peculiaridades que requerem uma atenção no campo da acessibilidade atitudinal. Por exemplo, uma pessoa com deficiência visual utiliza o toque para se situar espacialmente, para se locomover com o uso de bengala e mesmo para acessar informações em mapas táteis em braile e legendas em alto contraste. Uma pessoa cadeirante vai precisar tocar sua cadeira várias vezes usando as mãos, assim como usará os banheiros, precisando se apoiar em barras e base do vaso sanitário. Algumas pessoas com autismo podem ter problemas ao usar máscaras devido à rejeição sensorial e por fim, as pessoas com deficiência auditiva (falantes de língua portuguesa) podem ter grande dificuldade de fazer a leitura labial ao conversar com uma pessoa utilizando uma máscara comum e não transparente, o que facilita a comunicação.
Um segundo ponto a considerar é que, sendo parte do trabalho em ação cultural, a acessibilidade acontece e é operada sempre por meio das pessoas que compõem o corpo técnico das instituições e isso inclui atendentes, educadores, gestores, trabalhadores terceirizados de segurança e de limpeza. Todos importam e estão envolvidos em partes relevantes das estruturas de atendimento, educativo, planejamento e cuidado dos espaços acessados, resultando em experiências significativas. A acessibilidade é tanto mais efetiva quanto mais pessoas estiverem envolvidas em suas propostas e resultados às pessoas com e sem deficiências.
Isso nos recorda da importância das relações humanas para a sustentabilidade dos ambientes culturais. A manutenção do vínculo junto aos públicos após (e mesmo durante) a pandemia se dará pela construção paralela de novas dinâmicas de relação, que ligadas aos cuidados com a saúde de todos, estejam atentas aos indivíduos que ali circulam, em busca de experiências culturais, com segurança e sem deixar ninguém para trás.
Observa-se que os museus estrangeiros que abriram após o pico da pandemia estão adotando medidas como: testagem de temperatura das pessoas na entrada; higienização antes, durante e após a presença das pessoas nos locais; limpeza redobrada de artefatos e de itens de maior manipulação (como réplicas, mapas e placas táteis, geralmente usados por pessoas com deficiência visual); restrição do número de pessoas por período de visitação; extensão do horário de funcionamento para distribuição do volume de pessoas presentes nos locais e uso de marcações físicas no chão para distanciamento social (em sendo acessíveis, precisarão ser táteis e em alto contraste, para facilitar a identificação por pessoas com deficiência visual). Outras tantas providências podem ser pensadas, a depender da natureza de cada local e os públicos atendidos.
A adoção de ferramentas digitais também deve ser considerada antes e após a retomada de ações presenciais, pois fornece meios de acesso e participação pela ampliação de recursos de acessibilidade vinculados a conteúdos de sites e redes sociais de forma segura. Para que isso ocorra, é importante que as pessoas com deficiência sejam convidadas a validar e parametrizar a forma como a Libras (Língua de Sinais), a legenda e a audiodescrição, por exemplo, são aplicadas às experiências culturais que estão nas redes e que também sejam protagonistas de propostas. É uma oportunidade de aproximação que contribui para a manutenção do vínculo desta população com os espaços culturais.
De forma geral, as estratégias de retomada vão equilibrar prevenção em saúde e segurança, devendo também evitar que as medidas tomadas afastem as pessoas com e sem deficiência destes ambientes a médio prazo, o que é um grande desafio. Assim, para que os protocolos sejam orgânicos às novas formas de uso destes espaços, a atuação das equipes envolvidas fará toda a diferença entre uma orientação fria e uma correta abordagem educativa, para que não se percam as conquistas quanto à presença de públicos com e sem deficiências e voltemos a uma perspectiva ultrapassada de capacitismo, na qual os indivíduos são julgados e subjugados pela sua característica física, sensorial, intelectual ou mental antes de poderem ter autonomia para falar por si mesmas.
O retorno das atividades de museus, espaços culturais e afins será parte de um processo de recuperação sensível da sociedade, após o difícil período da pandemia, nos auxiliando a elaborar o tempo de isolamento social, o luto pelas experiências dolorosas e a reencontrar sentidos e sensações das quais estamos parcialmente privados no momento, gradualmente.
A saúde como bem comum passa pela reconexão com estes fatores de ordem simbólica, afetiva e cultural, dos quais estes ambientes são também espaços de manifestação e de troca. Que eles voltem a funcionar, no tempo devido, salientando em nós um modo mais comunitário de trabalho que não deixe ninguém de fora, literalmente. E que efetivamente, as pessoas com deficiência participem desta retomada, sendo convidadas a incorporar as ações nestes espaços cada vez mais, daqui em diante, incorporando um lema fundamental dos movimentos sociais das pessoas com deficiência: “Nada sobre nós, sem nós”.
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*Lígia Helena Ferreira Zamaro: Arte-educadora e Mestre em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da USP e especialista em Acessibilidade em Ambientes Culturais pela UFRGS. Atua como assistente em Educação para Acessibilidade na Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo.
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