Por Priscila Rahal*
A chamada “música clássica” já foi muito popular entre as diversas classes sociais ao longo da história da música. No entanto, no século XX houve um “divórcio” entre artista e público no âmbito da música de concerto, sobretudo no Brasil, em que o acesso a ela foi, de alguma forma, “sequestrado” pelas elites. Quais seriam os possíveis caminhos a serem trilhados para promover uma reconciliação?
Os mais recentes estudos sobre públicos de cultura questionam a ideia de formação de plateia para a arte. Esta partede um princípio equivocado de que os principais fatores que impedem o consumo de um amplo leque de produtos culturais são as barreiras materiais, e não as simbólicas. Essa proposta desconsidera que uma verdadeira ampliação de repertórios para todas as tendências estéticas só pode se dar a partir da troca simbólica, ou seja, que essa aproximação entre novos públicos e variadas formas de arte –sem hierarquia entre elas –só se dá a partir da identificação desses públicos com as produções e criações. Em última instância, se esses públicos puderem se reconhecer como sujeitos dessas manifestações artísticas.
Alinhada a essas premissas, a quarta edição do Festival Sesc de Música de Câmara tem como uma de suas principais características, no que se refere à escolha de compositores e intérpretes, o olhar para questões atuais como a representatividade e a diversidade. Assim, o Festival convida o público a experimentar um repertório renovado, através do qual poderá estabelecer relações com temas da contemporaneidade, evidenciando a relevância da produção camerística atual.
Essa diversidade se apresenta não apenas nos palcos, com intérpretes de diferentes gerações, gêneros e tons de pele, mas também na autoria e temas das composições. Exemplo é a obra At The purchaser’s option, referenciada em um anúncio do século XIX de venda de uma mulher escravizada.
Outra escolha que revela uma curadoria alinhada com questões da contemporaneidade é a presença da obra Corta-jaca, de Chiquinha Gonzaga, cujo arranjo foi feito por Rodrigo Morte especialmente para execução do quinteto de sopros dinamarquês Carion nesse Festival. Segundo Morte, essa escolha se pauta não apenas pela valorização da identidade musical brasileira, mas também pela luta pela ampliação do espaço feminino no âmbito da composição musical. Ainda, segundo o arranjador, a obra representou certa ousadia na ocasião de sua criação, por incluir elementos estéticos afrobrasileiros, como ritmos do maxixe e a presença marcante da síncopa.
Ponto alto da programação do Festival é a Missa de Santa Cecília, escrita pelo Padre José Maurício no período de transição entre o Brasil Colônia e o Império Independente. Apesar da ampliada quantidade de músicos, que reúne os Meninos Cantores de Hamburgo, a Orquestra Sinfônica da USP, membros da Ocupação Cultural Jeholu e cinco cantores solistas, sua presença em um festival de música de câmara, se justifica, de acordo com o regente Luiz de Godoy, por caracterísitcas estéticas próprias do pensamento camerístico, como a horizontalidade no tratamento da importância dos grupos de instrumentos e o diálogo entre as linhas melódicas, dentre outras peculiaridades dessa forma de pensar e criar a música, que se desenvolveu com o movimento de democratização dessa forma de arte, antes reservada ao entretenimento das elites.
Conclusão disso tudo é que a própria música de câmara encerra em si características alinhadas com uma forma mais democrática de fazer música, com princípios como a não hierarquia na composição e a construção coletiva da interpretação.Essa edição amplia a pesquisa de repertórios e intérpretes, buscando artistas com trabalhos novos, pautados por questões contemporâneas, no que se refere a parâmetros estéticos e sociais.
Bom concerto!
* Priscila Rahal é Bacharel em Música com habilitação em piano pela ECA-USP. Integra a equipe de assistentes técnicos da área de Música da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo.
Conheça a programação completa da 4ª edição do Festival Sesc de Música de Câmara em www.sescsp.org.br/musicadecamara
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