Diversidade, multiculturalismo e desigualdades

17/10/2019

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Foto: Matheus José Maria

Por Maria Aparecida Silva Bento e Marly de Jesus Silveira – CEERT*

O conceito de diversidade compartilha várias dimensões com o conceito de multiculturalismo. Ambos podem ser invocados com o objetivo de relativizar ou minimizar o legado do racismo e da injustiça social. 

Em sua origem, o multiculturalismo aparece como princípio ético que orienta a ação de grupos culturalmente dominados. Falar de multiculturalismo é falar do jogo das diferenças, cujas regras são definidas nas lutas sociais por atores que, por uma razão ou outra, experimentam o gosto amargo da discriminação e do preconceito no interior das sociedades em que vivem. 

No Brasil, quando se fala em ação afirmativa para negros e mulheres, logo surge a pergunta: “E os outros discriminados?”. Muitas vezes essa pergunta surge para paralisar e esvaziar a luta por ações afirmativas e cotas. O sub-texto deste questionamento é a falsa premissa segundo a qual todos somos discriminados, todos somos contra a discriminação e, portanto, precisamos de políticas para todos. Ou seja, a diversidade no Brasil é frequentemente utilizada para relativizar o peso da luta contra a discriminação e pela promoção da igualdade de direitos. 

Numa resposta instigante, alguns grupos excluídos vêm ressignificando a expressão diversidade e utilizando-a como força aglutinadora no caminho pela democratização das relações sociais. No território da educação, importantes segmentos do movimento social vêm debatendo conjuntamente a discriminação racial, de gênero, de idade, de pessoa com deficiência, de orientação sexual, fazendo um esforço para encontrar territórios de atuação conjunta. Esse processo é ambivalente, contraditório, gerador de tensão entre os grupos, mas vem se afirmando como marco político no enfrentamento da discriminação e na defesa da igualdade de oportunidade e tratamento. Essa conexão dos diversos movimentos sociais se explicita em momentos importantes da história da democratização da educação no país, como na Conferência Nacional de Educação Básica (2009). Dessa forma, os movimentos sociais usam a expressão diversidade de outra maneira, como manifestação de resistência. 

Diversidade e resistência 

Esse processo vem crescendo de maneira não linear, com um salto significativo na década de 1970, e, posteriormente, no centenário da abolição da escravatura, quando ocorreu uma onda de publicações sobre o assunto. 

Na realização da “Convenção Nacional do Negro pela Constituinte” (promovida pelo Movimento Negro Unificado em conjunto com várias entidades negras de todo o país, em Brasília, em 1986), a militância aprovou uma série de proposições que terminaram sendo inscritas na Constituição de 88. Trata-se de um expressivo leque de conquistas jurídicas, dentre as quais a previsão de que o ensino de história deve levar em consideração “a contribuição das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro” e o “respeito devido pela educação aos valores culturais”. 

No ano de 1995 os principais jornais do país noticiavam a mais notável manifestação contemporânea de rua organizada pelo Movimento Negro brasileiro: a Marcha Zumbi dos Palmares, Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que, no dia 20 de novembro daquele ano, mobilizou cerca de trinta mil pessoas em Brasília, ocasião na qual os coordenadores do evento reuniram-se com o presidente da república, entregando-lhe um documento pactuado entre as principais organizações e lideranças negras do país. 

Formulações interessantes sobre educação e igualdade racial também constaram do documento brasileiro apresentado na III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, em 2001. 

Neste ínterim, importantes instrumentos jurídicos da política educacional, dentre eles o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) e o Plano Nacional da Educação (2001), foram discutidos e aprovados pelo Congresso Nacional sem se comprometerem com medidas voltadas para o enfrentamento da diversidade étnico-racial que caracteriza o alunado brasileiro. 

Quinze anos se passaram da promulgação da Constituição de 1988 até que fosse promulgada, em janeiro de 2003, uma lei cuja principal função consiste em regulamentar o referido artigo da Constituição que se ocupa da diversidade étnico-racial na educação. Com a nova redação dada pela lei 10.639, a LDB passou a ter pelo menos duas regras diretamente preocupadas com a temática étnico-racial, conforme veremos adiante. Em 2005, outra vez o Congresso Nacional alterava a LDB, agora por meio da lei 11.645, inserindo a temática da cultura indígena no mesmo patamar que aquela de raiz afro-brasileira. 

Trata-se de um processo que configura verdadeira resposta do Movimento Negro brasileiro ao que Fúlvia Rosemberg (1986) denominou “a trajetória acidentada da criança negra na escola”, na qual se observa a hostilidade com que o sistema educacional trata as crianças negras. Destacam-se aí as imagens produzidas sobre a criança negra e sobre seu povo, os silêncios, o não reconhecimento de sua cultura e o impacto deste vazio na identidade da criança. 

Esse quadro de violação de direitos requer que os profissionais da infância estejam atentos ao exposto nas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. 

Nesse contexto, atuam ainda mecanismos utilizados para invalidar as experiências e histórias culturais de estudantes negros e indígenas, afetando profundamente suas identidades, gerando baixa autoestima, e provocando sentimento de superioridade nas crianças brancas.

Maria Aparecida Silva Bento é doutora em Psicologia Social e Marly de Jesus Silveira, doutora em Psicologia Escolar. 
O CEERT, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades é uma organização não-governamental brasileira, fundada em 1992. Atua na busca de garantir os direitos da população negra apoiando a luta pelo fim das desigualdades étnico-raciais e o preconceito existente. O CEERT desenvolve projetos que procuram facilitar à população negra ter acesso igual na justiça e no trabalho.

Clique aqui ou acesse sescsp.org.br/do13ao20 para saber mais sobre a ação Do 13 ao 20 – (Re) Existência do Povo Negro

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