“Eu aprendi uma senha para conviver com os irmãos de rua: o olhar. Você tem que conseguir captar o olhar… ler com os olhos deles o que eles estão dizendo.”
Conhecido por ser um religioso que convive com as pessoas em situação de rua, padre Julio diz que na pandemia essa população aumentou, e cerca de 35 mil pessoas estão neste contexto em São Paulo. Segundo dos três filhos de um casal de descendentes de imigrantes italianos, o padre também concluiu um curso de auxiliar de enfermagem e pedagogia.
Padre Julio falou para os leitores da Mais 60 sobre suas origens, família, a importância da convivência com as pessoas em situação de rua, envelhecer na rua, o prêmio Zilda Arns de Direitos Humanos e a ligação do papa Francisco.
Mais 60 Padre, por favor, vamos começar com o senhor falando sobre suas origens, sua família…
Pe. Julio Então, os meus bisavós são italianos. Já os meus avós são brasileiros. O paterno, eu não conheci, mas o meu bisavô materno tinha Ferrari no sobrenome e ele veio de Milão e mexia com metais, era galvanoplasta. Então, ele veio
com passagem comprada e o governo brasileiro indicou para ele ir para Juiz de Fora.
Em Juiz de Fora ele foi para trabalhar e o meu avô, chamado Julio – por isso que eu tenho esse nome Julio, Julio Ferrari, era da família Ferrari – recebia as máquinas da Ferrari para correr aqui em São Paulo, não tinha autódromo, era o chapadão de Campinas em que ele corria. Ele morreu cedo, com 42 anos, mas era um grande mecânico, piloto, e a minha bisavó se chama Luísa Pirelli. Então era Pirelli casada com Ferrari!!! Foi uma mistura interessante.
Os meus avós paternos, eu acredito que são da parte Sul da Itália, assim como a bisavó materna também é do Sul da Itália, que é Campobasso. A turma do Norte da Itália é do meu avô materno. E a parte da Itália de baixo é de minha avó materna e, possivelmente, do meu avô paterno. Então, é toda uma turma que veio na onda migratória da Itália, em 1889.
E o senhor sempre morou em São Paulo?
Eu morei sempre aqui em São Paulo, eu nasci no bairro de Belém, a minha primeira escola foi aqui no Belém, daí, quando eu terminei o quarto ano fundamental, naquele tempo a gente fazia admissão no ginásio, fui para o seminário, que era em Araraquara.
Lá era muito rígido, eu apanhei de vara de bambu, fiquei de joelho no milho, aí saí, não aguentei. Também eu tinha pouca idade, doze anos. Fiquei com muita saudade do meu pai, da minha mãe, do meu irmão, daí eu voltei. Terminei o ginásio. Quando terminei o ginásio, voltei para outro seminário. O primeiro era em Araraquara, dos verbitas, o segundo era em Bragança Paulista, dos agostinianos. Aí, nos agostinianos, eu fiquei uns cinco anos e cheguei a ser noviço.
Como foi a sua passagem no último seminário?
Eu já era frade, mas depois de seis meses de noviciado eles me mandaram embora porque disseram que eu era muito questionador, que eu perguntava muito, que eu não seguia todas as regras, que não podia falar com esse, não podia falar com aquele, porque a gente tinha convivido três, quatro anos com os outros seminaristas, mas a gente não podia conversar com mais ninguém. E o nosso mestre veio da Espanha, do Escorial, ele era de uma mentalidade muito fechada, e nós tínhamos tido [aulas], os três, quatro primeiros anos com padres mais jovens, de mentalidade muito aberta.
De repente, chegou um que desfez tudo que estava na nossa cabeça. E quis impor um modelo… Para você ter uma ideia, um dia ele me chamou e falou assim: “Você anda de um modo muito altivo, você tem que andar de um jeito mais humilde”. Falei, “tá bom”. Daí um tempo ele me chamou e falou: “Agora você está andando de um
jeito muito humilhado”. Daí, eu falei: “Então, o senhor podia me fazer um favor? O senhor anda um pouquinho aqui para eu ver como é que o senhor quer que eu ande?” ((risos)). Acho que foi a gota d’água… Aí ele falou, então vai embora daqui… No fundo é assim, alguma coisa não batia entre nós, então ele ficava pegando detalhes, coisas que não tinham importância e que eu questionava. Por que nós tomávamos meia caneca de café preto frio com pão amanhecido e eles comiam um lanche todo cheio das histórias? Mas por que isso? Se nós temos que aprender a viver o sacrifício, vocês também.
Padre, e como o senhor começou a trabalhar com pessoas em situação de rua?
Eu não chamo de um trabalho, eu chamo de um convívio com as pessoas em situação de rua. Como eu estava explicando, conviver é difícil. Conviver no trabalho, conviver no grupo familiar, conviver numa comunidade, conviver num condomínio…, até costumo dizer para eles agora: “Quando dizem para mim que o povo da rua é muito agitado, vai em uma reunião de condomínio em um sorteio de vaga de garagem. Vai em uma reunião de escola particular discutir uniforme ou discutir se os adolescentes vão ter educação sexual. Aí, o povo se mata, e é tudo gente… Ou vai no sindicato discutir piso salarial”.
Por que é difícil conviver?
A população em situação de rua é uma população muito heterogênea. Então, na rua, tem tudo que tem na sociedade. Na rua tem terraplanista, machista, racista, tem de tudo. Hoje, por exemplo, tínhamos uma quantidade de xampus, e nós pusemos para as mulheres prioritariamente. O xampu, o absorvente e o papel higiênico. Todos podiam pegar a escova de dentes, a pasta de dentes e o pão. Aí os homens diziam: “Mas por quê? Só as mulheres têm cabelo?”. Então, a população de rua reproduz a sociedade, também é machista, vê a mulher como objeto, isso tudo se repete, por quê A população de rua está submetida à ideologia dominante… agora, eles também são solidários em tudo. Outra coisa que eu digo é que na convivência as dimensões da misericórdia, da compaixão, da empatia, da solidariedade, elas não são religiosas, elas são humanas, porque os ateus também são solidários, compassivos, misericordiosos, senão a gente fica achando que só os religiosos são. E hoje, no Brasil, a gente vê que os religiosos são os menos solidários, misericordiosos e compassivos.
Padre, nesta revista a gente fala muito sobre envelhecimento, velhice, longevidade… Como o senhor vê as pessoas que envelhecem na rua?
Então, o envelhecimento na rua é precoce, porque muitas pessoas que chegam na rua na velhice foram perdendo tudo, inclusive a proteção familiar. Há um processo demencial dos idosos na rua mais acelerado, porque é uma negação muito grande e quem chega já idoso tem muita dificuldade de se adaptar. E quem envelhece na rua não é alguém que fica muito tempo, porque a vida na rua acaba sendo abreviada por comorbidade, por inadequação… por exemplo, quem é que cuida de cortar as unhas dos pés dessas pessoas? De ver se precisa de um tratamento dermatológico? Porque a população de rua tem muito problema dermatológico.
E na pandemia, o senhor acha que essa situação aumentou?
Na pandemia nós fizemos uma luta muito grande para que os idosos fossem para a rede hoteleira. Hoje, a prefeitura consegue mil leitos na rede hoteleira, já agora abrindo para mulheres, crianças e casais. A gente não pode pensar o envelhecimento como um fato estanque. Ele vai sendo construído na vida.
É um processo…
É um processo, quer dizer, eu não fico velho de repente. Eu vou envelhecendo e vou apresentando necessidades de cuidado, de alimentação… Se uma pessoa que está na rua tiver um problema de dieta, de alimentação, não tem o que comer… Ou se o idoso tem um problema, ele simplesmente vai dizer: “Isso aqui eu não como”, mas não tem outra coisa… Depois, tem outras pessoas que têm mais idade e que estão na rua, elas estão muito cristalizadas em uma maneira de ser. É como uma pessoa idosa que está sozinha, mas mora em um quartinho, em uma casinha, ela não quer sair dali, porque ela conhece aquele espaço, então, o que não se leva para a rua para o idoso, para ninguém, é um mundo de significados, de sentidos, de pertença, eles não pertencem a nada, a ninguém, a coisa nenhuma.
E como é o seu envelhecimento, padre? O que o senhor acha da velhice?
Olha, a gente vai envelhecendo e… Eu gostei muito uma vez que um bispo, dom Celso Queirós, falou que a gente na vida vai perdendo a acuidade auditiva, vai perdendo acuidade visual, você vai perdendo velocidade, você vai perdendo uma série de coisas. Agora, eu gostei muito, até eu tinha até pegado aqui para te mostrar… gostei demais deste vídeo, que eu até publiquei, dessa senhora…
A Tarde Chegou
Leda Fuertes de Casanova
(versão livre editada)
Terceira idade!
Que frase maravilhosa! […]
Velho é o mar e é gigantesco.
Velho é o sol e nos aquece.
Velha é a lua e nos ilumina.
Velha é a terra e nos dá vida.
Velho é o amor e isso nos encoraja […]
Somos seres cheios de conhecimento.
Graduados na escola.
Da vida e do tempo.
Que nos deu pós-graduação.
Subimos na árvore da vida.
Cortamos o melhor de seus frutos.
Esses frutos são nossos filhos.
Que cuidamos com paciência.
Essa paciência é revertida para
nós com amor.
Eles eram crianças, eles são homens,
eles serão velhos.
A manhã virá e a tarde chegará.
E eles também darão conselhos […]
Jovem: se em sua caminhada
você encontrar.
Seres com um andar vagaroso.
De olhares serenos e afetuosos […]
Não os ignore, ajude-os […]
Dê-lhes sua mão amiga.
Seu carinho.
Leve em consideração que um dia.
A tarde também chegará para você.
Padre, como foi para o senhor receber a ligação do papa Francisco?
O telefonema do papa me surpreendeu, porque eu tinha escrito algumas cartas para ele, mandado fotografias, mas a gente sabe que isso para nas assessorias. Ele tem assessores por línguas, porque chega carta em inglês, em alemão, em francês, em japonês, em chinês, então, ele não lê todas as línguas, passam pelas assessorias linguísticas. Ele me mandou o solidéu dele. E da última vez, eu escrevi uma carta muito pessoal para ele e uma pessoa levou em mãos e almoçou com ele.
Eu estava em casa, o celular tocou, só que apareceu assim: sem ID, sem identificação do chamador. Quando eu recebo ligação assim, eu sei que é de jornalista que está ligando, porque aí é telefone corporativo e aparece sem ID. Aí, chamou: “Alô, é padre Julio?”. Eu não sabia quem era, respondi que sim. “Você parla italiano ou habla castelhano?” Eu falei: “Le due”. Daí, ele continuou falando em italiano. “Sou o papa Francesco.” Na hora falei: “Santita!”. Eu levei um susto, né? Até me levantei, e ele disse: “Recebi sua carta, sei das dificuldades pelas quais você passa, sei que é difícil…” e ele me perguntou uma coisa que só um jesuíta pergunta: “Como é o teu dia?”. Daí, expliquei para ele como era o meu dia e ele falou: “Conviva com os pobres como Jesus e não desanime”.
E como foi ganhar o prêmio Zilda Arns de Direitos Humanos? O senhor foi premiado por seu trabalho aos que nada ou pouco têm, em especial por sua atuação na Pastoral do Povo da Rua, que diariamente acolhe e alimenta milhares nas ruas de São Paulo.
Receber o prêmio Zilda Arns foi muita alegria, porque eu convivi com a dra. Zilda Arns. Eu a conhecia e quando ela veio implantar a Pastoral da Criança em São Paulo eu estava na catedral e dom Paulo Evaristo Arns, o irmão dela, cardeal, e o dom Luciano, que era da Pastoral do Menor, me chamaram: “Julio venha cá, leva a dra. Zilda para conhecer as favelas”. E eu fui. Participei de muitos treinamentos com ela, até aqui na comunidade me perguntam: “Como você sabe tanto sobre aleitamento materno?”. Eu aprendi com a dra. Zilda, de tanto ouvir a dra. Zilda. Ela era médica, muito comunicativa, ela se divertia, a gente ia para cada lugar, cada situação, e ela falava: “Leite de peito! Tem que mamar leite de peito” ((risos)).
Com a dra. Zilda foi muito bom conviver, preparar todas aquelas pessoas para a Pastoral da Criança, implantar toda a metodologia, e a Pastoral da Criança aqui nessa paróquia é muito forte. Conviver com ela foi muito bom. Ela era muito interessante.
E quando ela morreu, eu que celebrei a primeira missa por ela na Catedral da Sé. Era janeiro, não tinha bispo nenhum em São Paulo, estavam todos em férias, aí eu liguei para arquidiocese e disse: “Nós não vamos fazer uma celebração
grande pela dra. Zilda?”. Aí disseram para mim: “Os bispos não estão, faça você!”. Aí eu falei, “tá bom”. Daí eu fui, cheguei na catedral, foi a imprensa inteira, porque ia ter uma missa para a dra. Zilda. Tinha acabado de morrer. Foi uma comoção no Brasil. A família, os próximos dela tinham ido para o Haiti, e eu que celebrei lá na catedral a primeira missa de intenção da dra. Zilda.
Padre, muito obrigada. Semana que vem voltaremos para acompanhar a missa e a entrega de alimentos para as pessoas do entorno da paróquia.
Serão bem-vindos!
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