Por Paula Bernardo | Silvia Morello | Pessoas idosas frequentadoras do Programa Social com Idosos no Sesc Jundiaí (grupo ComoSomosLoucos)
Não se assuste. Não apresentaremos uma manchete de jornal sobre denúncias de aglomeração na pandemia. Nem tampouco uma ocorrência policial. Este é o relato de uma experiência educativa que culminou com a bem-humorada radionovela Bloqueadas no Rolê, elaborada pelo grupo ComoSomosLoucos, constituído por idosas e um idoso do Programa Trabalho Social com Idosos (TSI) do Sesc Jundiaí. O programa foi lançado em julho de 2021, sob a orientação de Silvia Morello e produção de Nathalie Delahousse.
O projeto, vinculado ao eixo arte e expressão do TSI, tem como diretriz a promoção da cultura do envelhecimento por meio da valorização da pessoa idosa e o seu objetivo é incentivar o protagonismo idoso.
A proposta deste relato busca dar visibilidade às falas das pessoas que participaram da avaliação da experiência na época do seu lançamento, em julho de 2021, e daquelas que aceitaram o convite para revisitá-la um ano depois e refletir sobre algumas questões que foram lançadas na edição 77 da revista Mais 60, no artigo de Gustavo de Paula e Rosângela Barbalacco: Distanciamento Físico Sim, Social, Não, que destaca que a “(…) ação do TSI do Sesc São Paulo buscou durante o período de isolamento social superar o desafio de integrar velhos e velhas das diferentes unidades em ações on-line”.
A estratégia implicou no uso das tecnologias em favor da comunicação e continuidade do trabalho com pessoas idosas durante o período de isolamento. A ideia central partia da necessidade de pensar uma forma de permanência do contato humano, afetuoso, criativo e informativo com os grupos de TSI diante dos protocolos de saúde que sugeriam o isolamento físico e social para evitar a propagação do coronavírus.
Com a necessidade do distanciamento social, o Trabalho Social com Idosos (TSI) precisou reinventar-se com rapidez para adaptar suas atividades, ações e atitudes e, dessa forma, continuar atendendo o seu grande público. De imediato, constatou-se a necessidade de manter contato com seus participantes, fosse pelo telefone, grupos de mensagens ou encontros virtuais. Não apenas para manter as programações regulares, mas também para acompanhar da melhor forma possível a saúde dessas pessoas, bem como se tornar uma fonte confiável de informações, vista a avalanche de notícias que começaram a surgir, muitas delas falsas (DE PAULA e BARBALACCO, 2020).
A assertividade da proposta esbarrava nos desafios da inclusão e letramento digital enquanto pré-requisitos para seu desenvolvimento. E para superá-los foram realizadas várias iniciativas no Sesc São Paulo que buscavam oferecer ao público idoso oportunidades de aprendizado, desde cursos, oficinas sobre letramento digital, bate-papos sobre notícias falsas, redes sociais etc. Os educadores do Espaço de Tecnologia e Artes (ETA) no estado e na unidade de Jundiaí tiveram uma grande participação nesse processo, desenvolvendo ao longo de 2020 e 2021 cursos, cards, tutoriais, oficinas e bate-papos, como o projeto Letramento Digital do TSI em Jundiaí. As parcerias e os resultados foram muito promissores, mas o número de idosos interessados foi pequeno. A maioria entendia que tecnologia era uma coisa muito complicada. O grande nó da questão era justamente buscar estimular o protagonismo idoso usando uma tecnologia que não era comum em seu dia a dia, ou seja, a linguagem digital.
Surgiu outra pergunta: como promover a integração social com pessoas que tinham resistência, dificuldade, ou ainda, receio de usar as novas tecnologias? Pessoas de habilidades, saberes, referências culturais que se constituíram em um contexto em que a tecnologia não era parte da vida cotidiana, como passou a ser durante a pandemia. Para essa geração, o diálogo com linguagens, aplicativos, plataformas e redes sociais, entre outros, era uma dificuldade a ser superada.
Um dos pontos presentes no trabalho educativo do TSI do Sesc Jundiaí é justamente a constante provocação para a superação de desafios coletivos que nos tirem da nossa zona de conforto para vermos o mundo com outros olhos, vermos as pessoas com outros pontos de vista, buscando experimentar novidades, explorar as possibilidades do nosso corpo e da sociedade que nos cerca. Partindo daí e do desejo de não deixar o isolamento físico distanciar corações e mentes surgiu a ideia de realizar a radionovela.
Antes da pandemia o grupo nunca tinha desenvolvido uma ação on-line. Fazíamos muitos bate-papos, passeios, oficinas, saraus, encontros dançantes, entre outras ações presenciais. Durante o isolamento social as pessoas idosas sentiam falta do ponto de encontro presencial, do bate-papo com as amigas, do abraço afetuoso e do convívio com os colegas no Sesc. Foi um exercício de aprendizagem para idosos, educadores e técnicos. Esse contexto aproximou mais ainda as equipes dos programas Esporte Idoso, Hidroginástica, Ginástica Multifuncional (GMF) e TSI, mas o número de participantes diminuiu. Mesmo assim enfrentamos o desafio com leveza, sem cobranças, com o intuito pedagógico de superar nossos limites e sair da zona de conforto.
Quem vai contar essa história são as próprias idosas do ComoSomosLoucos. Após a leitura convidamos vocês, que nos leem, para refletir conosco se essa experiência deu conta de responder às perguntas acima e superar o desafio proposto com o projeto de letramento digital do TSI. Ao final, destacamos as falas das participantes sobre os aprendizados que essa experiência proporcionou. Tudo começou com a proposta de experimentação do uso de novas tecnologias advinda dos cursos de letramento digital promovido pelos educadores do ETA da unidade de Jundiaí, composta de Felipe Bojikian Calixtre, Lucas Mingoti Trabachini e Alline Juliane dos Santos (Lola).
A Rosalva, participante do TSI, nos conta o começo da aventura. Como foi essa história?
A radionovela surgiu na pandemia, período em que estávamos impossibilitados de frequentar os Pontos de Encontro do Sesc Jundiaí. Com a técnica Paula Bernardo, iniciamos encontros virtuais no aplicativo Google Meet. Foi-nos ensinado como utilizá-lo através de reuniões sobre assuntos diversos. Tivemos acesso ao programa de rádio, de variedades do Sesc Pinheiros (Na Onda das Ondas). A Paula nos desafiou a montarmos uma radionovela. De início, foi difícil acreditar que podia ser realizada. Porém, montamos um grupo espontâneo para treinarmos a utilização do aplicativo. A cada encontro teríamos uma nova mediadora, que enviaria o link e comandaria a reunião.
Conversamos sobre os desafios da radionovela e resolvemos escrever um texto coletivo, inovador, envolvendo a questão do isolamento, com humor e trazendo a diversidade no contexto.
Iniciamos selecionando casos engraçados envolvendo nós mesmos ou nossos próximos relacionados à pandemia. Alguns casos foram levantados e definimos qual seria o cenário em que os diálogos aconteceriam (num táxi), as personagens (duas amigas), o que pretendiam fazer (ir a um evento), outras personagens durante o trajeto e o desfecho final.
Este era o fio condutor. Convidamos um senhor para ser o motorista do táxi, que fez parte da história até o final do processo.
Foram dez encontros virtuais até o fechamento do roteiro. O texto pronto foi apresentado à Paula, que nos convidou a participar de seis oficinas de podcast com Silvia Morello, radialista, e Nathalie Delahousse, produtora cultural.
Durante as oficinas virtuais tivemos acesso a muitas informações, desde o histórico das radionovelas no Brasil, como gravar sons graves e agudos, impostação de voz, tipo de celular apropriado, editar, escolha dos fundos musicais, entre outros.
A radionovela, depois de muitos percalços, foi realizada com as vozes das personagens, gravadas cada uma em suas casas, pelo celular, em áudios enviados às especialistas, feitos e refeitos várias vezes. Elas sugeriram a divisão em duas partes com apresentação, músicas, nome da rádio, do grupo, propagandas nos intervalos e créditos finais (Rosalva Teixeira, 66 anos).
O grupo criou uma rádio fictícia chamada rádio PandeminhaeSua, escreveu o texto da radionovela Bloqueadas no Rolê e escolheu o nome do grupo, ComoSomosLoucos, com direito a bordão: “sabemos que somos poucos, mas como somos loucos”. Decidiram que iriam abordar a história de duas senhoras, uma branca e uma negra, de 70 anos aproximadamente, casadas, que se aventuram a sair em meio à pandemia buscando reviver momentos descontraídos com seus amigos e se deparam com imprevistos durante a viagem de táxi que se transforma numa saga bem-humorada.
Apresentamos um rap no início, músicas e comerciais durante a apresentação, obedecendo a divisão em duas partes. Ela aborda questões de gênero, racismo, amizade, respeito, pandemia, prevenção de quedas e reinvenção da vida (Rosalva Teixeira, 66 anos).
Foi criado um grupo no WhatsApp para acompanhamento das tarefas da semana, que eram discutidas nos encontros semanais. Ali, Silvia, Nathalie e Paula orientavam os próximos passos do processo. Foram mensagens, áudios e links de exemplos que procuravam orientar sem direcionar as escolhas, vejam um exemplo:
Olá, pessoal! Tudo bem com vocês? Acho ótima a ideia de praticar pra se familiarizar com o texto e com as emoções das falas. Vamos ver se definimos os papéis e demais afazeres até o próximo encontro. Caso alguém sinta dificuldade com a gravação ou pra saber como enviar, pode me chamar no particular também. Estou por aqui. Até já! (mensagem enviada via aplicativo pela Silvia Morello para encaminhar os trabalhos da semana).
O trabalho da radionovela revelou uma série de temas e questões para o desenvolvimento de ações futuras. Apesar de o texto inicial ter abordado questões tratadas em diferentes momentos do trabalho educativo, como o debate sobre diversidade, ficou claro que ainda existe preconceito e dificuldade em aceitar a existência de corpos diversos. Algumas pessoas deixaram o grupo por não aceitarem a ideia de as personagens principais serem idosas homossexuais.
A construção do texto não teve intervenção nem da técnica de referência nem da radialista. Surgiu como uma tentativa de levantar os principais temas abordados nos pontos de encontro, tais como prevenção de quedas, diversidade e alegria de viver, entre outros. Mas, enfrentar o tema interpretando uma personagem homossexual ainda gera desconforto para algumas pessoas.
Essa reação de alguns participantes nos leva a algumas interrogações: qual o caminho para a transformação dos olhares e comportamentos das pessoas idosas sobre diversidade de gênero e raça? Quais alternativas para romper o preconceito e a dificuldade em aceitar as mudanças sociais, de promover o acolhimento e respeito à diversidade? Esse debate ocorreu ao longo do processo de elaboração do programa de rádio. Foram várias conversas, mas, mesmo assim, alguns integrantes deixaram o grupo. Foi necessário que algumas idosas interviessem para evitar as saídas e só uma pessoa voltou atrás.
As questões relacionadas às ações em rede do Sesc São Paulo, como a campanha de prevenção de quedas, surgiram no texto naturalmente e foi consenso no grupo abordá-la, bem como as questões relacionadas aos protocolos de saúde (naquela época estávamos em meio ao isolamento social).
Sobre o debate de raça foi mais fácil fazer o diálogo com o grupo em comparação com a questão de gênero. Ainda que na primeira versão do texto houvesse falas racistas, um exercício de argumentação foi suficiente para superar e corrigir as expressões. Mas, sobre a questão de gênero, as portas foram fechadas. Como podemos voltar a ele respeitosamente, uma vez que entendemos ser necessário diante deste contexto de tanta intolerância e atrocidades cometidas contra a população LGBTQIAP+? Como contribuir para que os idosos compreendam que seu tempo é o hoje e que hoje, diante das mudanças sociais, é necessário mudar falas, conceitos, atitudes e pensamentos para não reproduzir opressões? Esse com certeza é um debate que carece de novas oportunidades de abordagem junto ao público idoso.
O que aprendemos?
Para além das questões técnicas: como gravar um áudio, como isolar o som para evitar ruídos na gravação, como ler, como interpretar o personagem, um outro legado importante foi o aprendizado sobre a construção coletiva e a mediação de um trabalho em grupo que teve conflitos, mas com um resultado que alcançou a expectativa de todos. A radialista, Silvia Morello, e algumas participantes destacam os desafios enfrentados:
Foi o primeiro grupo de TSI com que eu trabalhei no Sesc e foi muito gratificante encontrar uma turma tão animada, criativa e disposta a aprender.
Sabíamos que a montagem de uma radionovela seria um desafio, ainda mais cumprindo todas as etapas a distância, desde a oficina introdutória em nossos encontros on-line, as gravações que cada um fez com seu próprio celular e a posterior edição, um quebra-cabeça desafiador.
Mas acredito que o resultado foi muito satisfatório e seria uma alegria reencontrar o pessoal do TSI de Jundiaí para dar um novo rolê nas ondas dos podcast. Obrigada mais uma vez pela confiança e contribuição valorosa de cada um (Silvia Morello).
Apesar das dificuldades, foi um trabalho divertido. A sensação, com o trabalho pronto, foi de superação de mais um desafio: Com certeza foi algo novo e desafiador, fizemos várias reuniões pela plataforma Google Meet. Graças aos cutucões da Paula, todos foram dando o melhor de si (…). Com a orientação da Silvia e da Nathalie, escrevemos sem perceber a radionovela Bloqueadas no Rolê. Criamos o grupo ComoSomosLoucos e até o rap saiu com o auxílio do DJ Betão, do Sesc Pinheiros. Foi puxado, mas conseguimos. Foi uma experiência calorosa. Acredito que faríamos de novo, valeu a pena. Descobrimos talentos. Obrigada a todos (Antonieta Giglio Basan).
Nesse contexto foi importante entender que somos diferentes e aprender a respeitar essas diferenças foi um pré-requisito importante para construir coletivamente, dialogando com diversas leituras de mundo e concepções. Mais que isso, além do exercício de alteridade, saber que em grupo muitas vezes é necessário ceder para avançar (…). Eu lembro que a gente se encontrou várias vezes para fazer as correções, que a Silvia e a Nathalie ajudaram bastante. A gente fazia, fazia, depois fazia de novo e outra vez… O que mais ficou para mim desse grupo é que a convivência, o treino de fazer, a maneira como foi orientado dá para gente possibilidades de fazer qualquer coisa. Tivemos muito incentivo da Paula. Não podemos esquecer da Lucinha [Lúcia Fim], que teve um papel importante nisso tudo. Ela empurrava a gente, a mim pelo menos empurrou. Eu acho que teve muitas coisas positivas, e que a gente pode fazer outras coisas até. Eu não concordei com o tema na ocasião, mas isso faz parte, porque cada pessoa pensa de um jeito, a cabeça das pessoas, cada uma vai para um rumo. O meu depoimento sobre o que mais me tocou foram os encontros. A disposição de se juntar para fazer as coisas. Isso eu acho fundamental em qualquer grupo. Se não tiver essa disposição não sai nada, mas com um pouquinho de cada um dá para fazer alguma coisa (Maria Lucia Esteves).
Parecia algo impossível de alcançar, mas não foi. Sair da zona de conforto foi um exercício pedagógico que despertou afetos e desafetos, mas acima de tudo aproximou quem ficou até o fim. O resultado mexeu positivamente com a autoestima das pessoas envolvidas ao ver o retorno dos seus familiares e amigos, ao responder aos questionamentos do público, às provocações, às piadas quando a matéria sobre a radionovela saiu na TV Tem, afiliada da rede Globo na cidade. Enfim, o grupo defendeu a radionovela e ela fez bem a quem se propôs a participar sem medos ou preconceitos. Inclusive, se sentem à vontade para repetir a dose.
Turma, fizemos uma radionovela! Sempre é tempo de aprender, né? Super parabéns à Silvia pela paciência, à Nathalie por nos coordenar, ao DJ Betão, que fez os arranjos do nosso rap, à Paula por confiar a nós esse trabalho e ao Sesc por nos proporcionar esses bons momentos. REALIZAMOS! (Lucia Fim).
Conclusão
As reflexões apontadas pelo grupo indicam a importância de trabalhar habilidades específicas antes do desenvolvimento de determinadas estratégias, particularmente no uso de tecnologias e linguagens digitais com o público idoso. Revela a criatividade e dedicação de quem ficou até o fim da experiência e se dispôs sair da zona de conforto para criar, se relacionar, para construir coletivamente, administrando diversas leituras de mundo e egos. Aponta temas relevantes para trabalhos futuros, como raça, gênero, diversidade e etarismo, além de reforçar a assertividade da estratégia de usar as tecnologias durante o período de isolamento social como uma aliada do TSI.
Em conversa recente com a turma, outras pessoas que não participaram do projeto se interessaram em dar continuidade ao trabalho de letramento digital e pensar em uma continuação para a radionovela. Isso nos coloca diante de um novo desafio e, de acordo com o que vivenciamos até aqui, é possível dizer que o grupo tem todas as condições de se superar com criatividade, criticidade e bom-humor.
E vocês, leitores que leram essa narrativa, o que pensam sobre nossa experiência?
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