*Por Luciane Tonon
Enxergar é um dom, inerente ao ser humano. Faz parte do ciclo normal da vida, ou ao menos deveria, com exceção dos quase sete milhões de brasileiros acometidos de alguma deficiência visual, como é o caso de João Batista Maia da Silva – homem negro de estatura média, bem-vestido. Calça e blusa combinando. Cabelos cacheados, de sorriso aberto. Nas mãos leva a bengala, sua companheira e guia. Anda por tudo com ela. Não tem medo do que está a sua frente. João aprendeu a ver sem enxergar, usando os outros sentidos. Não foi sempre assim. Ficou cego aos 28 anos de idade após contrair uma uveíte bilateral em 2004. Na época era carteiro nas ruas de São Paulo, quando começou sentir dificuldades para ler. Passou por uma consulta oftalmológica e foi diagnosticado com miopia e astigmatismo. Começou usar óculos, mas, nem um grau lhe bastava. As letras das cartas estavam cada vez mais difíceis de serem lidas e teve que apelar para o uso de lupas. “O médico falou para escolher entre operar ou não, de qualquer jeito correria o risco de ficar cego. Eu operei, mas não deu certo. A retina do olho direito não colou e no esquerdo tinha a lesão no nervo óptico que me deixou com baixa visão, que é medida a conta dedo. Depois de 1,20 metros não vejo mais nada”.
Mas foi aí que ele começou a enxergar coisas que não via antes, como o quanto é difícil conviver com a falta de acessibilidade, com a falta de preparo da sociedade em geral em receber e lidar com os cegos. Então, João começou a militar pela causa. “Primeiro vem o processo de reabilitação de se aceitar. Você fica reflexivo e pensa o que vai fazer da sua vida. Estagnar ou continuar? Eu ganhei muito apoio. Eu ouvi muitas histórias que me ajudaram e por isso eu entendo meu papel hoje. A minha história pode ajudar muita gente. Fiquei fascinado, por exemplo, de saber que um cego podia morar sozinho. E fui”, contou João, que hoje mora sozinho no seu apartamento no Belenzinho, em São Paulo (SP).
Como lhe restava um resíduo visual, ele ligou para diversas instituições procurando por programas de reabilitação. “A primeira que me aceitou foi a Fundação Dorina Nowill, onde pude aprender o braile e a lidar em atividades da vida autônoma”. Não faltava nas reuniões de grupos e com psicólogas para logo enxergar mais, dentro do mundo sem visão. “Eu não queria que minha vida se limitasse ali, então topava tudo o que me ofereciam sobre novas aprendizagens”, contou.
João na chegada de uma corrida de rua com o guia voluntário que o acompanhou | Foto: Arquivo Pessoal
Uma dessas aprendizagens foi aceitar o convite de um amigo para correr. “Eu topei ir em uma corrida de rua, mas nunca tinha corrido dez quilômetros. Quebrei na metade e tive que ir andando o resto da prova”. As corridas de rua lhe trouxeram bastante amizades, até que foi apresentado às provas de pista e campo do atletismo como arremesso de peso, lançamento de disco e dardo. O ex-carteiro virou atleta. Entrou para a equipe da Fundação Orsa em Barueri (SP). O desempenho de João lhe trouxe uma bolsa de estudos para cursar História na UniSant’Anna. Cego, sozinho, mas com muita força de vontade, ele saía de casa às 13h para treinar e só voltava à noite, após as aulas da Faculdade. Formou-se e continuou no atletismo. O mundo paralímpico já estava incutido em sua rotina. Foi convidado a treinar na equipe Força no Pé, no Centro Olímpico de São Paulo. “O esporte me trouxe muitas alegrias. Essa personalidade que tenho hoje, essa linguagem fotográfica é graças ao convívio com esse grupo, que eu não vejo como deficientes, mas como amigos”.
Sentindo-se apto com sua nova condição de vida, João resolveu voltar a fazer o que mais gostava: fotografar. “Era um desafio porque as máquinas de um modo geral não têm acessibilidade e sempre dependia de alguém para ajudar nas regulagens, mas fui fazendo cursos livres e me aperfeiçoando”.
A paixão pela fotografia vem desde a época em que estudou na escola técnica agrícola em Bom Jesus do Piauí, sua terra natal. “Eu tinha um professor de zootecnia, que adorava fotografar. Até ganhou prêmios com isso e eu gastava horas conversando com ele. Até que meu irmão me deu uma máquina de presente e então eu virei o fotógrafo oficial da escola”, relembra João. O que ele não esperava era que a fotografia realmente iria ser seu destino.
Pelo vínculo com o esporte, passou a fotografar os atletas. Com sua vivência e conhecimento espaço temporal, João consegue ler os atletas e os devidos momentos de fotografá-los. “Eu transfiro todos os meus sentidos em imagens, uso o som, o calor, o movimento e toda a minha vivência no esporte para capturar o que quero. E tem dado certo”.
Tão certo que João foi o primeiro fotógrafo cego a cobrir os Jogos Paralímpicos Rio 2016. Chamou a atenção do mundo e foi capa de jornal em mais de 30 veículos estrangeiros.
João fotografando uma partida de Goalball no CT Paralímpico | Foto: Luciane Tonon
O fotógrafo saiu da invisibilidade e criou o seu próprio projeto chamado Fotografia Cega, em que ensina e incentiva as pessoas com deficiência sobre o quanto é possível viver além da deficiência. O quanto é possível fazer a diferença no território do comum. “Eu vi que através da minha fala, eu poderia ter lugar e voz. Assim, já pude falar em universidades como USP, UNICAMP, FAAP. Já falei na Universidade Federal do Piauí. Falo da deficiência de uma forma positiva, podendo agregar, porque nem todo mundo conhece a deficiência visual. Este é meu papel. O preconceito acaba quando a gente tem informação”, ressalta João.
João posicionado para fotografar à beira das raias da pista de atletismo no CT Paralímpico | Foto: Luciane Tonon
Com o intuito de educar e levar informações sobre as pessoas com deficiência, João foi convidado a participar da constituição da Carta de Socorro com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência e representantes de todo o país. Sua missão continua. Desde 2018, o fotógrafo compõe o Conselho Administrativo da Fundação Dorina Nowill, como voluntário. “É muita responsabilidade em fazer a diferença e transformar vidas. Honrar o intuito da senhora Dorina, que lutou muito para que não houvesse segregação das pessoas com deficiência visual nas escolas e a bandeira dela era o acesso à leitura para todos”, enfoca João.
Dar acesso à leitura é o que João faz muito bem. Em todas as suas postagens nas redes sociais da Fotografia Cega, João faz a descrição das imagens ou faz a audiodescrição de seus vídeos. “São formas cuidadosas de não deixar ninguém de fora. Descrever detalhes das imagens é de suma importância para os que não enxergam poderem vivenciar aquele momento”, explica João, porque, segundo ele, se uma imagem não tem textos alternativos ou descrições, quando um cego a acessa, o leitor de tela só vai dar o comando de voz “gráfico” e nada mais.
João abraça o amigo e velocista Vinícius Rodrigues, um dos fotografados no Projeto 4 Sentidos e Uma visão em Tóquio | Foto: Luciane Tonon
Dando vida aos gráficos, João segue com seus projetos, entre eles montar uma exposição itinerante e acessível sobre os Jogos Paralímpicos de Tóquio. “Essa é mais uma realização pessoal. O projeto chama 4 Sentidos e Uma visão, que é a visão do coração com a qual eu vou retratar os atletas e os cenários dos Jogos Paralímpicos e quem sabe trazer isso para as escolas e comunidades terem a chance de aprender um pouco mais sobre os Jogos, enxergando como eu”, conclui o fotógrafo, que também pretende fazer um livro foto-narrativo contando sua história e mostrando as fotos tiradas em Tóquio. João é Embaixador da Fundação Dorina Nowill em Tóquio.
*Luciane M.M. Tonon é graduada em Educação Física e em Jornalismo pela Universidade Estadual deLondrina-PR, com pós-graduação em Jornalismo Literário. Doutoranda em Estudos Socioculturais e comportamentais da Educação Física, com ênfase no Esporte Paralímpico, é membro do Grupo de Estudos Olímpicos da USP. É também técnica de Para Ski Cross Country; árbitra de goalball e voluntária do ProjetoFast Wheels de Santos para crianças com deficiência.
A jornalista foi convidada para escrever o texto para o projeto Territórios do Comum, ação em rede voltada ao tema da cidadania em suas múltiplas dimensões e possibilidades de colaboração. João Maia participou de uma série de três vídeos para o Sesc Belenzinho e o Sesc Itaquera, que pode ser conferida aqui.
Os pontos de vista e opiniões aqui expressos não refletem necessariamente aqueles do Sesc São Paulo ou de seus profissionais e colaboradores.
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Para ampliar possibilidades de trocas de conhecimentos e práticas entre as pessoas e coletivos envolvidos e interessados no tema, o Sesc São Paulo realiza de 1º a 15 de agosto o projeto Territórios do Comum, ação em rede voltada ao tema da cidadania em suas múltiplas dimensões e possibilidades de colaboração entre iniciativas sociais.
A programação está dividida em dois eixos: mobilização social, que aborda estratégias de desenvolvimento de ações comunitárias voltadas para o bem comum, para a geração de renda, acessibilidade a pessoas com deficiência e sustentabilidade; e tecnologias sociais, que buscam ampliar a inclusão social por meio da utilização de tecnologias digitais e ancestrais, para alcançar a melhoria das condições de vida levando em consideração aspectos sociais, ambientais e culturais do contexto local.
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