ESTRADAS LITERÁRIAS | Entrevista com a escritora Isabel Lucas

31/07/2022

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Leia a edição de agosto/22 da Revista E na íntegra

ESCRITORA E JORNALISTA PORTUGUESA ISABEL LUCAS DEFENDE QUE A LITERATURA PODE SERVIR DE MAPA PARA SE CONHECER UM PAÍS

Para Isabel Lucas, escritora e jornalista nascida em Portugal, havia uma biblioteca na ida e outra na volta de sua viagem ao Brasil. Isso porque, instigada a conhecer e a escrever sobre o país, tomou como mapa a leitura de obras brasileiras consagradas – como Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha – e contemporâneas – a exemplo de Dois Irmãos (2000), de Milton Hatoum –, mas também de outras que com ela retornaram na bagagem para a Europa. Ao longo de quase um ano, Isabel percorreu diferentes regiões do país, conheceu rincões e capitais, conversou com habitantes e também com escritores locais. Desse trabalho, publicado em 12 ensaios-reportagens pelo jornal lusitano Público e pelo jornal literário brasileiro Pernambuco entre 2019 e 2020, nasceu o livro Viagem ao país do futuro (Cepe, 2021).

Ainda que seguisse um modelo parecido ao livro anterior – Viagem ao sonho americano (Companhia das Letras, 2017), resultado de leituras e viagens pelos Estados Unidos à época da eleição de Donald Trump –, essa segunda incursão tinha outro gosto. Seria a chance de se aproximar do país sobre o qual havia lido em obras de Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e Adélia Prado. “Se me perguntar o que é o Brasil, eu continuo sem uma resposta, mas há um conjunto de imagens, de sensações, de ambientes que me surgem como inerentes ao Brasil. A minha percepção do país e da sua realidade mudou. Também não sei dizer o que é Portugal, e nasci lá, cresci lá. Sem querer comparar, sinto-me a chegar mais perto do Brasil. E tudo porque segui e continuo a seguir a sua literatura como grande auxiliar para fazer perguntas”, disse à Revista E, enquanto esteve na cidade de São Paulo para participar da 26ª edição da Bienal Internacional do Livro, em julho. Nesta Entrevista, a jornalista e escritora portuguesa fala sobre seu processo criativo, a influência do Brasil sobre sua escrita, e o encontro literário entre países lusófonos.

No processo de escrita de Viagem ao país do futuro, você disse em entrevistas que o Brasil lhe ensinou a fazer novas perguntas, e que entre elas estava: “Será que é possível entender um país por meio de sua literatura?”. Que resposta, ou respostas, você obteve desse questionamento?

Que é preciso continuar a fazer perguntas e essa busca dá sentido ao trabalho, à viagem. Isso pode ser feito através da literatura como através de outras artes, talvez, ou produções artísticas. Para mim, o mais natural é seguir a literatura. Ela vai me dando pistas de busca, de entendimento, provoca encontros, conversas e as respostas, mais do que qualquer coisa definitiva, manifestam-se no modo como vou olhando para as coisas de uma nova forma, mais familiar, menos estranha, mais íntima. Não é qualquer coisa de muito palpável.

Se me perguntar o que é o Brasil, eu continuo sem uma resposta, mas há um conjunto de imagens, de sensações, de ambientes que me surgem como inerentes ao Brasil. A minha percepção do país e da sua realidade mudou. Também não sei dizer o que é Portugal, e nasci lá, cresci lá. Sem querer comparar, sinto-me a chegar mais perto do Brasil. E tudo porque segui e continuo a seguir a sua literatura como grande auxiliar para fazer perguntas. 

Quais outras interrogações ficaram sem respostas depois desse período em que viajou de norte a sul do Brasil?

Muitas. Quanto mais perguntas faço, mais perguntas surgem. O que é o Brasil? O que é ser brasileiro? Não espero encontrar uma resposta, mas ao fazer essas perguntas imensas chegam-me outras coisas. Sei agora qual é o sabor do acarajé. Sei o que são as ruas de uma favela. As grades à volta das janelas, as câmaras [quartos] em condomínios de luxo, a gíria da periferia de São Paulo, o modo como os indígenas se relacionam com o tempo. O slam, o rap, os sons que falam de um novo Brasil que ainda está pouco nos livros. O poder de uma figura como [Arthur] Bispo do Rosário. E sei que a descoberta não terá fim. 

Escritora portuguesa Isabel Lucas é a entrevistada da Revista E, em agosto de 2022. Foto: Divulgação.

Mais do que nunca, vejo a língua portuguesa como uma coisa muito rica, maleável e adaptável

Isabel Lucas

E como seu contato com escritores brasileiros já consagrados e outros contemporâneos, bem como a proximidade com a diversidade de palavras e de expressões da língua portuguesa falada no Brasil afetaram sua escrita e o modo como você passou a enxergar nosso país? 

Foram alterando sem que eu desse muito por isso. Naturalizaram-se na minha forma mais descontraída de escrever. Muitas palavras deixaram de ser estranhas. Tantas, que passaram a fazer tanto sentido. Mais do que nunca, vejo a língua portuguesa como uma coisa muito rica, maleável e adaptável. E tanto mais será assim quanto mais deixar incluir nela palavras e expressões que antes não tinha, mas passaram a dar-lhe maior vitalidade. O português tem o contributo de todos os seus falantes em todas as geografias.

Na sua opinião, a frase do escritor austríaco Stefan Zweig que abre seu livro Viagem ao país do futuro – “Eles sabem que sua verdadeira tarefa está no futuro” –, referindo-se ao Brasil, está mais para um fato ou para uma provocação?  

Continua a ser desafio e provocação. O futuro pode ser um mito quando assim aplicado, da mesma forma que o sonho está para a América. Correr atrás do sonho ou atrás do futuro faz parte dessa espécie de desígnio que também transporta o seu contrário: ou seja, o peso do passado em relação ao Brasil, essa ideia sempre adiada de país com ou do futuro, ou o pesadelo como contraponto ao sonho. 

Por compartilhar dois ofícios, o de jornalista e o de escritora, quando termina a escrita jornalística e começa a escrita literária? Ou ambas se fundem no seu texto?

Eu sinto-me e defino-me como jornalista e sou uma jornalista que escreve. Esse é o meu meio mais comum de comunicar. Tento fazê-lo da melhor forma com as ferramentas que tenho ao mesmo dispor. Não me tecer considerações sobre se a minha escrita é mais ou menos literária. Ela é assim porque eu escrevo assim. E vai mudando sem que eu me aperceba muito, porque eu também vou mudando, e o meu olhar muda. Não há o fim de uma coisa e o começo de outra. Sinto isso como qualquer coisa muito orgânica. 

Capa do livro Viagem ao país do futuro, de Isabel Lucas (Cepe, 2021). Imagem: divulgação.

O que é o Brasil? O que é ser brasileiro? Não espero encontrar uma resposta

Isabel Lucas

Qual a sua opinião sobre esses encontros literários entre países lusófonos que vêm acontecendo com mais frequência nos últimos 20 anos? Há características em comum na literatura lusófona, independentemente das peculiaridades que marcam as distintas realidades de países como Brasil, Portugal, Moçambique e outros de língua portuguesa?

Acho os encontros fundamentais. Não só pelas conversas e trocas que surgem de forma mais institucional, nas mesas de discussão, lançamentos de livros, palestras, encontros com os leitores etc., mas nas conversas paralelas onde de fato se estreitam laços e surgem ideias de eventuais projetos. Não é o mesmo fazer encontros virtuais do que estar em contato mais direto. Neles se descobrem essas diferenças que fazem parte da nossa singularidade, não apenas enquanto literaturas nacionais – não penso muito nesse sentido –, mas na singularidade de cada universo literário pessoal, que inclui circunstâncias culturais, territoriais, linguísticas, sociais, religiosas etc. A literatura em língua portuguesa é feita desse plural. Em ambientes que promovam o encontro de livros e de autores, essas diferenças, essas singularidades ficam mais evidentes e aproximam, no sentido da promoção do diálogo, da troca, da aceitação do outro enquanto alguém que usa a mesma língua transportando nela a sua fala, a sua escuta, o seu lugar. 

De que modo eventos como a Bienal Internacional do Livro, da qual você participou neste ano, contribuem para o fomento de obras literárias diversas e também para a formação de leitores?

Promovendo a conversa na diferença, não deixando as pessoas fechadas nas suas bolhas criativas, de opinião, de argumentação. Nesses espaços, cada um saberá encontrar o lugar que melhor lhe compete nessa troca. A literatura é, acima de tudo, esse lugar de criação livre. 

Quais os desafios na formação de novos leitores numa sociedade tão pautada pela velocidade da comunicação e por plataformas digitais, nas quais predominam vídeos, fotos e textos curtos?

Manter o livro acessível, fazer com que ele possa ser encontrado. Não se força ninguém à leitura. Talvez ela continue a ser um lugar de nichos. Em tempos de grande dispersão, é difícil encontrar a concentração para as obras de grande fôlego. Mas, elas também nunca foram populares. O ideal seria que não se ficasse pela superfície das coisas. A leitura é um dos meios mais eficazes para promover o aprofundamento, o conhecimento, a compreensão. Daí o livro ter de estar à mão. Digital, em papel, não importa. Acessível a toda a gente, um objeto democrático e promotor de democracia.  

3 DICAS DE LIVROS, por Isabel Lucas

Conheça algumas obras indicadas pela escritora e jornalista Isabel Lucas: “São descobertas recentes que me chegaram enquanto estava em São Paulo. Alguns novos, outros com história já na literatura de ambos os países”, compartilha.

Capa do livro Solo para Vialejo. Imagem: Divulgação

Solo para Vialejo (Cepe, 2019), de Cida Pedrosa 

Vencedor na categoria Poesia e considerado o livro do ano pelo Prêmio Jabuti 2020, esta obra escrita pela pernambucana Cida Pedrosa retrata memórias do povo negro e indígena no sertão brasileiro e chama a atenção pela musicalidade do poema. 

Pela busca das palavras certas para falar de um território e de sentimentos na margem. É sobre um mundo remetido ao silêncio. Como comunicá-lo?

Capa do livro Racismo Estrutural. Imagem: divulgação.

Racismo Estrutural (Jandaíra, 2019), de Silvio Almeida 

Nos anos 1970, Kwame Turu e Charles Hamilton, no livro Black Power, apresentaram pela primeira vez o conceito de racismo institucional: muito mais do que a ação de indivíduos com motivações pessoais, o racismo está infiltrado nas instituições e na cultura, gerando condições deficitárias, a priori para boa parte da população. É a partir desse conceito que o autor, filósofo e professor paulista Silvio Almeida apresenta dados estatísticos e discute como o racismo está na estrutura social, política e econômica da sociedade brasileira.

Pela lucidez e conhecimento com que fala de um dos problemas mais prementes do Brasil

Capa do livro A Anomalia Poética. Imagem: Divulgação.

A Anomalia Poética (Chão de Feira, 2019), de Silvina Rodrigues Lopes 

Nos 11 ensaios que compõem este livro escrito pela ensaísta portuguesa e teórica da literatura Silvina Rodrigues Lopes, a literatura é pensada para além de normas e teorias. Para isso, é preciso não recusar a sua força, ou ainda, não apagar aquilo que na literatura é anomalia, irregularidade.

Um livro sobre a ideia de ficção enquanto testemunho e a potência da literatura enquanto modo de pensar, de refletir sobre o mundo

A EDIÇÃO DE AGOSTO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, quando o mundo comemora o Dia Internacional da Juventude (12/08), o Sesc São Paulo promove mais uma edição da Juventudes: Arte e Território, ação que segue até dezembro discutindo e incentivando a potência das produções culturais das diferentes juventudes. Em reportagem desta edição, damos voz a iniciativas artísticas, em todo o estado de São Paulo, que provam que a arte, em suas diferentes linguagens, dá vazão à expressão e ao potencial criativos dos jovens, impactando os territórios que habitam.

Além dessa reportagem, a Revista E de agosto/22 traz outros conteúdos: um texto sobre os desafios e a importância da amamentação para a saúde dos bebês e o vínculo entre mães e filhos; uma entrevista em que a escritora portuguesa Isabel Lucas, que esteve presente na 26ª Bienal do Livro, defende a literatura como um mapa para se conhecer um país; um depoimento de Davi Kopenawa sobre a defesa da cultura indígena e a preservação da floresta; um passeio fotográfico pelos trabalhos de Eustáquio Neves, artista que reflete sobre o lugar histórico dos afrodescendentes e cuja obra será celebrada em exposição no Sesc Ipiranga, a partir de setembro; um perfil que mergulha no legado plural de Flávio de Carvalho (1899-1973), multiartista que protagoniza uma exposição no Sesc Pompeia, a partir do fim de agosto; um encontro com Renato Maluf, pesquisador que aponta os rostos da fome no Brasil; um roteiro por lugares, atividades e intervenções que espalham poesia pela cidade de São Paulo; um conto inédito da escritora Ieda Magri, intitulado “Vida e amores da senhorita X”; e dois artigos que relacionam língua, discursos e diversidade: Gabriel Nascimento escreve sobre racismo linguístico e Dri Azevedo, sobre linguagem neutra.

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