Eterno retorno

21/03/2022

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ATRIZ COMPARTILHA EXPERIÊNCIA NO CENTRO DE PESQUISA TEATRAL
SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO PARA VIVER A PROTAGONISTA DA PEÇA TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA, DIRIGIDA POR ANTUNES FILHO

Entre interpretar uma amiga de Chapeuzinho Vermelho, na peça Nova Velha Estória, e a prostituta Geni, protagonista de Toda Nudez Será Castigada, a atriz paulistana Ondina Clais percorreu mais de duas décadas. Dirigida por Antunes Filho (1929-2019) na adaptação do conto de fadas clássico, em 1991, a então bailarina de apenas 21 anos começou sua trajetória cênica no Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do Sesc São Paulo, e foi para lá que retornou em 2012, a convite do próprio Antunes, para a montagem comemorativa do centenário de Nelson Rodrigues (1912-1980) e dos 30 anos do CPT.

Graduada em Comunicação e Artes do Corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ondina já tinha experiência com a obra rodriguiana ao encarnar três personagens femininas em 17 x Nelson – Parte 2: Se Não É Eterno Não É Amor, de Nelson Baskerville, em 2006. Neste Depoimento, a atriz de 51 anos – que em 2015 virou diretora artística da Companhia da Memória e já integrou o elenco de produções audiovisuais como Sessão de Terapia (2014), do GNT, Coisa Mais Linda (2019), da Netflix, Meu Amigo Hindu (2016), de Hector Babenco, e O Filme da Minha Vida (2017), de Selton Mello – abre seu baú de recordações, em entrevista concedida ao Sesc Memórias em dezembro de 2021, para reviver e compartilhar os momentos que passou no CPT ao lado do mestre Antunes Filho.

Convite inesperado

Quando Antunes me chamou para fazer a Geni, fiquei surpresa porque eu nunca pensei que pudesse fazê-la. Era uma personagem de Nelson Rodrigues que estava um tanto distante de mim. E aí ele me explicou o que via na Geni: pureza, ingenuidade. Para ele, ela era um Pierrot Lunaire [ciclo de canções melodramáticas composto pelo austríaco Arnold Schönberg em 1912]. Tive esse presente de poder pisar aqui (no CPT) de novo, num momento em que já não esperava mais. Eu tinha encontrado outros caminhos no teatro e nem sonhava voltar mais para cá. Nesse momento, eu entendi por que ele me chamou. Ele vai fazer um “eterno retorno” [teoria de que o universo e toda a existência e energia são recorrentes, ou seja, de que há um padrão cíclico de acontecimentos ao longo do tempo]. Ele traz coisas da montagem original completamente revisitadas pela própria trajetória dele, traz uma atriz que pegou essa virada dos anos 1990, essa experimentação – eu tenho isso na carne, na memória, na vivência. E ele falou: “Não sei se vai dar certo, mas nós vamos tentar. Se der certo, a gente monta”. Foi ótimo! A gente começou montando 20 minutos para o Mirada. E foi excelente poder encontrá-lo e ainda fazer um trabalho com ele, através da vivência da Geni.

“FOI UM MOMENTO MUITO AGRACIADO,
PORQUE TINHA PASSADO O TEMPO,
O BENDITO TEMPO, E EU PUDE FAZER A GENI
QUE ELE (ANTUNES FILHO) QUERIA”

Cena de Toda Nudez Será Castigada, com Ondina Clais no papel da prostituta Geni. Foto: Emidio Luisi

Composição da personagem

Revisitei bastante a minha infância no interior, os meus pés na terra roxa, quando eu ia para a estrada dos canaviais. Uma vez, eu contei uma memória que eu tinha sobre os meus sapatinhos brancos sujos de terra, e ele [Antunes Filho] disse: “É isso, é por aí, é aí que ela está”. Acho que dá para ver bem algumas facetas da Geni se você levar em conta com quem ela está em cena. Com o Patrício [irmão de Herculano], ela tem uma pegada. Com o Herculano, você já vê uma outra Geni, cheia de variações. E, com o Serginho [filho de Herculano], ela mostra outro lugar. É um lugar bem mais infantil, ingênuo, de criançona mesmo. Dá para ver na cena em que ela visita o Serginho no hospital. Geni era muito próxima da personagem Sônia, do romance Crime e Castigo, do Dostoiévski [escritor russo Fiódor Dostoiévski, 1821-1881]. Isso para mim foi uma revelação: partir da pureza para chegar numa prostituta… E foi assim que a gente começou a criação da Geni. O Antunes era completamente apaixonado por Dostoiévski, e o Nelson Rodrigues também. A gente pode perceber estruturas análogas nas obras Toda Nudez, Crime e Castigo e A Dócil [novela escrita por Dostoiévski em 1876], como a cena do beijo nos pés.

Outra face da Lua

Antunes disse que, nesse momento, ele queria experimentar uma outra Geni, que nascia daquela [original]. Mas ela era uma outra face da Lua. Tem essa referência também explícita à Lua, ao ciclo lunar da mulher, em que a Geni fala: “Herculano, você ficou 28 dias sem me telefonar”. Aí o Antunes falava: “Olha lá, 28 dias, é o ciclo lunar, é o ciclo da mulher”. É o sangue, o sangue da vida e também da morte. É esse lugar do feminino que o Antunes gostava tanto de mostrar em suas peças. Esse lugar branco, iluminado, imaculado. Esse yin [princípio da filosofia chinesa que representa a Lua, o frio, a escuridão e as manifestações passivas], como ele dizia: o yin da Terra.

Inspirações para a montagem

Antunes queria fazer uma montagem baseada naquela que ele havia feito [em 1991], mas completamente diferente. Com corte, muito cinematográfica e muito precisa, que tivesse no máximo uma hora. E ele usava muita coisa de Nova Velha Estória [adaptação do conto da Chapeuzinho Vermelho]. Não era explícito, mas implícito tinha a partitura do Nova Velha Estória. Tinha uma faixa [no chão] onde o dançarino de tango dança, que é a faixa vermelha do Nova Velha Estória. (…) Antunes [também] pega lá de 1984 uma montagem que fez logo depois de Macunaíma e traz aquilo. Ele falou: “Pena que não dá para montar as duas”. A [peça] original era Nelson 2 Rodrigues, [que incluíaToda Nudez e Vestido de Noiva. Era muito lindo! E ele monta só Toda Nudez, que não foi “só”. Foi trabalhoso e interessante.

Chapeuzinho e suas amigas em Nova Velha Estória, com Ondina à dir., 1991. Foto: Paquito/Acervo Sesc Memórias 

Reencontro maduro

Experimentei [em 2012] um Antunes diferente na metodologia – claro que, comigo, ele pedia três coisas que eu já sabia de onde ele estava trazendo, muita coisa da marcação e do corte da Nova Velha Estória, com outro corpo, óbvio, outra personagem. Então, ele me pedia e tinha certeza de que eu saberia dar aquilo. E também, não só tecnicamente, eu vi um Antunes muito diferente, muito amadurecido. Muito mais doce, tranquilo nos ensaios. Ele trazia as anotações porque era uma montagem em que ele já sabia o que ia fazer. A gente não estava experimentando nada novo. E tinha pouco tempo, como é nas companhias internacionais. Um mês e meio para uma montagem, porque os atores têm escola, eles já vêm de uma técnica, então [o diretor] monta. Não precisa da formação. O Antunes é que passa por essa formação dos atores. Demora, às vezes, até chegar onde ele quer. Ele tinha passado por uma transformação interessante. E para mim foi um momento muito agraciado, porque tinha passado o tempo. O bendito do tempo. E eu pude fazer a Geni que ele queria. Foi a primeira vez que vi o Antunes com um papelzinho [na mão]. Ele vinha com as cenas prontas. Ele já sabia o que queria. Eu estava acostumada com um Antunes que pesquisava, pesquisava, a gente passava aqui [no CPT] seis, sete meses. Em que lugar do Brasil você pode passar todo esse tempo ensaiando? É impensável! Então, quando um projeto estreava, a gente já estava aqui, onde as dimensões são excelentes e parecidas com as do [Teatro] Anchieta. Na minha época, a gente ainda tinha a oportunidade de ficar dez dias no Anchieta, vazio pra gente. Imagina! Hoje ter dez dias no Anchieta? Mas a gente tinha esse tempo. As obras já nasciam muito bem experimentadas. No Toda Nudez, já tinham se passado 30 anos! Ele [Antunes] já estava num outro timing também, e me trouxe porque, também, eu tinha vivido, eu respondia… Naquele momento da minha vida, ele queria experimentar, queria ver se eu podia responder àquilo que ele tinha na cabeça. E foi aí que eu voltei para cá e vivi essa última experiência que tive com ele. Cheguei a ensaiar o Thornton Wilder [escritor norte-americano que viveu entre 1897 e 1975 e ganhou três prêmios Pulitzer – cuja obra Nossa Cidade foi montada por Antunes Filho em 2014], também foi um momento muito bonito, mas que eu acabei não estreando.

Cena de Toda Nudez Será Castigada, dirigida por Antunes Filho em 2012. Foto: Emidio Luisi

Sobre a peça

Toda Nudez Será Castigada conta a história do viúvo conservador Herculano, que após perder a mulher promete ao filho Serginho que nunca mais vai se casar. Porém, levado pelo irmão Patrício a um bordel, o homem conhece e se apaixona pela prostituta Geni, que se envolve também com o filho dele, num triângulo amoroso. A peça é narrada pela protagonista, que já está morta, mas deixa uma gravação detalhada sobre sua vida. A peça trata de temas como conflitos familiares, paixões, dramas psicológicos, traição e vingança.

O espetáculo pode ser assistido na íntegra no acervo Antunes Filho do Sesc Digital. Na plataforma, também há informações sobre outras obras do diretor, depoimentos de artistas que trabalharam com ele e bastidores do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do Sesc São Paulo. Confira: sesc.digital/colecao/colecoes-e-acervos-historicos-cpt-toda-nudez-sera-castigada.

A edição de março/22 da Revista E está no ar!

Nas páginas deste mês, você conhece o projeto “Infindável Viagem: Takeo Sawada – artista, educador” (imagem de capa), composto por ações no Sesc Thermas de Presidente Prudente e no Sesc TV.

Além disso, a revista de março traz outros destaques, como a exposição “DARWIN, O ORIGINAL”, do Sesc Itaquera; um levantamento que, no mês da mulher, apresenta as ruas da capital paulista que homenageiam personalidades femininas; um depoimento dos jornalistas Tatiana Vasconcellos e Nando Andrade sobre sua rotina no rádio; um perfil da diva Elza Soares (1930-2022); uma reportagem sobre iniciativas que mostram a força de uma economia baseada na solidariedade e na coletividade; um passeio pelas ilustrações criadas para o experimento literário Folhetim, do Sesc Pompeia; uma entrevista com o economista Marcio Pochmann sobre modelos econômicos e o futuro da sociedade; e artigos que abordam os desafios do envelhecimento das pessoas LGBTQIA+.

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