“Ela precisa ter um tema e contar uma história.” É assim que selecionamos as canções, faixa a faixa, de uma mixed tape, segundo Rob, protagonista do best-seller Alta Fidelidade (High Fidelity, 1996). Escrita pelo inglês Nick Hornby, a obra que se tornou um ícone da literatura pop já foi adaptada para o cinema (2000), para os palcos da Broadway (2006) e para série de plataforma de streaming on demand (2020). Até hoje, as citações do personagem, dono de uma loja de discos, são repetidas para quem deseja criar uma playlist. Só que, no lugar da fita K7, as plataformas de streaming – com seus algoritmos e profissionais especializados – se encarregam de fazer essa compilação. Para além da música, a cultura das listas e seu recorte curatorial estendem-se para a literatura, o teatro, a dança, o cinema e outras linguagens artísticas. Com narrativas e temas específicos, as listas se tornaram um farol para navegarmos em meio à exorbitante quantidade de conteúdos na internet.
Nos últimos anos, “a humanidade produziu mais dados do que no restante da história humana combinada”, segundo o escritor Michael Bhaskar em Curadoria: O Poder da Seleção no Mundo do Excesso (Edições Sesc São Paulo, 2019). No livro, o pesquisador e editor ilustra esse cenário em que temos à disposição 1,5 bilhão de sites e no qual somente o Google recebe mais de 5,6 bilhões de buscas por dia. Ou seja, vivemos num mundo de profusão de produções criadas e disponibilizadas na rede. Sobrecarregados, temos na curadoria uma ferramenta capaz de selecionar, reduzir e nos auxiliar na leitura e apreensão de conteúdos.
“Aberta e de preço baixo, a web mudou a chave da escassez para a abundância em várias áreas. De repente o conteúdo estava em tudo, praticamente grátis e com poucas barreiras para a criação. A forma como as pessoas interagiam com o conteúdo tinha que mudar. Conscientemente ou não, a web nos forçou a agir como os curadores tradicionais, que precisam pensar em seleção, arranjo, explicação e exibição de informações e outras mídias”, escreveu Bhaskar. Para isso, a educação midiática é um pré-requisito, uma vez que você pode não saber o que é uma matéria jornalística, um post patrocinado, um conteúdo viral, uma publicidade, uma notícia manipulada ou uma informação fora de contexto, destacou a presidente executiva do Instituto Palavra Aberta, Patricia Blanco (leia entrevista publicada na Revista E nº 285, julho de 2020).
Além de uma postura crítica e criteriosa para escolher o que ler, ouvir, ver e apreender na internet, é preciso ter a consciência de que há a interferência dos algoritmos na sugestão de listas de conteúdo. “Podemos dizer que o avanço das listas de recomendações por algoritmo, pelas nossas pegadas nas redes, tem aumentado”, constata a pesquisadora em comunicação digital Pollyana Ferrari, professora do Departamento de Comunicação e do programa Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD), ambos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
No entanto, há uma personalização que só o conteúdo a partir de uma curadoria humana consegue fazer, segundo Ferrari. Por isso, cada vez mais veículos e profissionais de diversas áreas da cultura dedicam-se à seleção conteúdos digitais. Dessa forma, quando uma revista literária cria uma lista de obras “Qual o legado da Semana de 1922”, ou quando um site especializado em cinema faz um recorte “Para entender o Cinema Novo”, estes inventários não só orientam o público na busca pelo tema. “Essas listas também têm outro valor. É diferente quando você tem um estudioso do assunto fazendo suas recomendações porque aquela lista, aquele conteúdo, é validado”, explica a pesquisadora.
O que não quer dizer que as máquinas e seus mecanismos de filtragem não tenham valor. “Acho que uma curadoria bem-feita é um mix: ela tem esse olhar de um consultor, de um especialista daquele determinado assunto, mas ela também vai ter essa varredura dos algoritmos pelo volume de informações na rede”, complementa Pollyana Ferrari. Em algum lugar no meio do caminho, a soma desses filtros será imprescindível diante do excesso de conteúdos nas redes sociais, páginas e plataformas digitais.
As máquinas serão parte imensa do processo curatorial ao longo do próximo século, de acordo com Michael Bhaskar, “mas chegaremos ao equilíbrio”, diz. “As curadorias humana e algorítmica atuarão juntas, complementando-se”, conclui o pesquisador.
Recorte curatorial da programação digital abre caminhos para novas conexões e olhares
Durante a pandemia, artistas e grupos adaptaram para as telas linguagens que antes contavam com a interação ou presença física do público. Apesar dessa falta, espetáculos de teatro, de dança, de circo e de música disponibilizados em canais digitais gratuitos puderam alcançar novas audiências. Pessoas que talvez não teriam ido à peça de um determinado grupo, ou ao show daquele artista, foram surpreendidas pela possibilidade de conhecê-los e entrar em contato com novos conteúdos. Em mais de 400 lives nas categorias Teatro, Dança, Música e Criança transmitidas pelas plataformas digitais do Sesc São Paulo entre abril de 2020 e junho de 2021, esse acervo plural de produções artísticas pode ser visto sob demanda e a partir de diferentes leituras.
Para a Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, cada recorte temático nas playlists criadas a partir desse acervo equivale a um pequeno festival online. Uma forma de chamar a atenção do público para temas de seu interesse e cuja fruição pode se dar de diversas maneiras. “Dessa forma, a curadoria das playlists ressalta o que vale a pena ver e ouvir de novo, constrói narrativas e amplia repertórios e olhares para a diversidade, sempre levando em conta os valores e a missão do Sesc São Paulo”, explica Adriana Cruz Macedo, assistente da Gerência de Ação Cultural do Sesc.
A criação das playlists em todas as linguagens também permite aos curadores elaborarem novos pontos de vista e significados em cima do conteúdo on demand, estabelecendo, assim, novas conexões ao conteúdo publicado. Esse exercício feito de forma continuada garante ao conjunto de apresentações do acervo uma renovação permanente e, também, cria em cada ocasião uma nova ponte de diálogo com outros públicos.
Para Ricardo Tacioli, coordenador de programação do Sesc Digital, as playlists são um caminho para contar histórias, sejam novas, antigas, pouco ou muito conhecidas. “Uma das formas mais interessantes que encontramos para realizar isso é a partir da ocupação criativa de plataformas já existentes. Ou seja: quando ocupamos uma ferramenta, tentamos entender como o público interage com ela e experimentamos meios de extrapolar sua lógica e seu potencial narrativo”, acrescenta.
Conheça algumas dessas playlists:
89 minutos no espaço
Em 12 de abril de 1961, o soviético Yuri Gagarin se tornou o primeiro ser humano a chegar ao espaço. Lançada do Cosmódromo de Baikonur, no atual Cazaquistão, a Vostok passou 89 minutos em órbita. No dia em que o feito completou 60 anos, o Sesc São Paulo reuniu em seus perfis nas plataformas de música Deezer e no Spotify uma seleção de faixas “espaciais” com a duração exata de minutos que o cosmonauta ficou em órbita. Dentre as canções está, claro, Space Oddity, de David Bowie. Ouça no Spotify e no Deezer.
Música de Cinema
Por trás de um bom filme há sempre uma trilha sonora inesquecível. Assim é feita a curadoria desta playlist para cinéfilos. Na edição atual, Musicais, o cinema cantado viaja pelo mundo e através dos tempos. Acesse no Spotify e no Deezer.
#GEEK
Tecnologia, cultura pop, arte, low-fi, indie, eletro, glitch vaporwave, kitsch, 70’s, 80’s, 90’s 00’s. A lista é grande! A edição atual traz uma seleção de trilhas de jogos de videogame dos anos 1990 e 2000. Ouça no Spotify e no Deezer.
Chora Viola
Com atualizações temáticas bimestrais, esta playlist reúne obras e artistas que cantam os sentimentos da gente do campo. Escolha sua plataforma preferida para ouvir: Spotify ou Deezer.
#pracorrer
A cada mês, um novo treino de 40 minutos é ditado pelo beat de músicas de um “personal trainer” diferente. Como Jorge Ben, Alok, Madonna e Daft Punk. Acesse no Spotify e Deezer.
Nordeste Elétrico
Seleção de faixas em que psicodelia, rock e pop se encontram com a tradição da música nordestina. De Caetano Veloso e Raul Seixas a Ednardo, Amelinha e Cátia de França. Ouça no Spotify e Deezer.
Teatro #EmCasaComSesc
Dedicada às artes cênicas, a curadoria dessa playlist mostra vários recortes temáticos. Sobem ao palco discussões sobre raça, gênero, diversidade. Também entram em cena veteranos e jovens atores e atrizes interpretando textos contemporâneos e clássicos. Outro recorte dessa playlist dedica-se aos formatos: teatro de grupo/coletivos, solos, experimentações e adaptações. Assista:
Dança #EmCasacomSesc
Para essa linguagem artística, a criação da playlist se inspirou na diversidade de corpos, vertentes e temáticas. Diante da pluralidade de experimentações, as obras que dialogam entre si foram agrupadas. Neste recorte, artistas consagrados e jovens; danças negras; danças que dialogam com os espaços privados das casas e o isolamento como disparador criativo; danças urbanas e provocações estéticas. Confira:
Cinema #EmCasaComSesc
A curadoria de filmes é feita de modo a oferecer ao público o acesso ampliado às diversas cinematografias mundiais, com filmes de longa e curta-metragem, de gêneros variados e que tratem de temas que discutam a sociedade contemporânea. Nas playlists, o cinema nacional tem forte presença, mas também são exibidas obras das múltiplas culturas, passando por filmes europeus, latino-americanos e do continente africano. Há também a parceria com diferentes mostras e festivais nacionais e estrangeiros, e um espaço, o CineClubinho, voltado apenas para o público infanto-juvenil. Conheça em sescsp.org.br/cinemaemcasa.
Música #EmCasaComSesc
Para as lives de música, houve uma seleção de trabalhos com relevância para a história dos gêneros musicais. Seja pela própria biografia do artista, pelos repertórios escolhidos ou por agregar elementos para a compreensão acerca da música brasileira na atualidade. Dessa forma, as playlists conseguem traduzir de maneira sintética e representativa diversos recortes do cenário musical brasileiro, contemplando vários eixos de identidades, gêneros musicais e movimentos artísticos. Assista:
Crianças #EmCasaComSesc
Para essa playlist, não poderiam faltar lives de palhaçaria, shows, teatro e teatro de bonecos entre as linguagens artísticas no recorte curatorial dessa programação voltada às crianças.
Acompanhe:
Selo Sesc
O Selo Sesc cria playlists a partir de temas do próprio catálogo. Algumas dessas listas são: Música Popular, Música Instrumental, Música de Concerto e Música para Crianças. Para esse recorte é feita uma curadoria mais direcionada, relacionada aos novos lançamentos do Selo Sesc. Ou seja, para cada playlist, uma história é contada com faixas do acervo desse catálogo.
Dicas de canais de música, cinema e literatura para você montar sua própria lista
Quantas vezes você passou horas e horas decidindo qual livro ler, que filme assistir ou que álbum escutar? Às vezes na própria plataforma de streaming nos perdemos em meio a tantas opções, mesmo que elas criem listas a partir das nossas últimas escolhas. Caso da Netflix, maior plataforma de vídeos e séries via streaming e on demand, que lançou oficialmente em abril deste ano o botão Títulos Aleatórios. Porém, nem mesmo essa opção é 100% randômica, já que os algoritmos gerados a partir das suas últimas seleções irão se encarregar dessa “nova lista”. Por isso, além de pedir indicações aos amigos – o que pode manter você numa mesma bolha de interesse –, vale a pena buscar canais em que a curadoria é feita por especialistas da área. A partir dessas indicações, você mesmo pode montar uma lista de o que assistir, o que ler e qual será o próximo álbum a dar o play.
Quatro Cinco Um
Publicação física e digital, a revista Quatro Cinco Um, voltada ao cenário da literatura, reúne notícias, críticas, resenhas e listas assinadas por escritores, editores e pesquisadores. Entre eles, a historiadora Lilia Schwarcz e o escritor moçambicano Mia Couto. Além dos textos, é possível acompanhar três podcasts com debates, entrevistas e lançamentos literários. Em um dos episódios recentes do podcast Repertório 451 MHz, realizado duas vezes por mês, a editora Paula Carvalho entrevista o líder indígena e filósofo Ailton Krenak, autor de Ideias para Adiar o Fim do Mundo e A Vida Não é Útil, ambos editados pela Companhia das Letras. Saiba mais: www.quatrocincoum.com.br.
Plano Geral
Site, perfil de Instagram e podcast apresentado pelo jornalista Thiago Stivaletti, e pela documentarista, curadora de festivais de cinema e jornalista especializada em audiovisual Flávia Guerra. Neste canal, a dupla reúne dicas de estreias no cinema, televisão e plataformas de streaming. Plano Geral também fomenta debates sobre a curadoria de mostras e festivais nacionais e internacionais da sétima arte. Confira: instagram.com/planogeral_podcast.
Zumbido
Publicação digital do Selo Sesc, a Zumbido coloca em pauta a música como linguagem e componente afetivo da memória. A revista ainda é um espaço para reflexão sobre os diversos aspectos da cadeia musical. Em cada atualização, músicos, artistas visuais, jornalistas e produtores colaboram com textos e indicações de discos e artistas. Algumas playlists dão suporte aos textos publicados, como na matéria Por que há poucas mulheres na música?, de autoria da pesquisadora musical Thabata Amaral, acompanhada por uma playlist homônima. Conheça: medium.com/zumbido.
Mina de HQ
Criado em 2015 pela jornalista e mestre em antropologia Gabriela Borges, o canal Mina de HQ faz uma curadoria de quadrinhos nacionais e internacionais feitos por mulheres e pessoas não binárias. Para isso, no site, no perfil do Instagram e, recentemente, em uma revista, a Mina de HQ reúne quadrinistas do Brasil para falar sobre esse universo, dar dicas de leitura e escrever resenhas sobre lançamentos e obras que ainda não chegaram ao mercado editorial brasileiro. Confira: www.minadehq.com.br.
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