Por Célio Turino*
Em dança lenta, folhas ao vento espalham ideias e ações para um novo tempo. Assim me parece esse sensível e profundo documentário preparado pelo Sesc SP. Uma policultura de ideias a nos convidar à redescoberta de novas práticas. Práticas que sempre estiveram entre nós, que nos fizeram ser o que somos; mas que, ao mesmo tempo, foram sendo afastadas de nós, fazendo com que deixássemos de percebê-las. Ao nos apartarmos delas fomos deixando de nos perceber enquanto partículas de um todo. Assim, enquanto humanidade sob a modernidade fomos nos colocando “à parte” do universo, dessacralizando o mundo à nossa volta, transformando tudo e todos em reles recursos a serem explorados.
A natureza deixou de ser Sagrada; de filhos da natureza, tornamo-nos exploradores da natureza (e de nós mesmos, por consequência). Não mais a Mãe Terra, não mais a irmã árvore, nem o espírito da floresta e a inteligência das águas, agora, só nos interessava (interessa) a natureza como meio, recursos a serem extraídos, como se fossem ilimitados. Não mais a natureza como nossa parente, mãe, irmã e companheira acolhedora, mas como um objeto a ser violentado, maltratado.
Ao longo do processo civilizador, quanto mais nos “civilizávamos”, mais fomos nos distanciando de nossas fontes de vida. Árvores foram transformadas em troncos a virar lenha e objetos; deixamos de falar com as plantas, de escutar as plantas, de sentir as plantas; animais viraram presas, ou pragas, a serem abusados, exterminados. Só vale o que pode ser usado. Depois o descarte, a exploração, a acumulação.
A própria ideia de desenvolvimento nos levou a essa encruzilhada. Des/Envolver, tirar o envoltório para se tornar mais forte, para crescer. Será? Para desenvolver, o caminho escolhido foi se separar, daí, desenvolver. Essa ideia de separar para desenvolver caminha junto à noção de progresso. Um movimento à frente, um avanço a determinar nossa forma de pensar, ser e agir. Nessa marcha prosseguimos em uma separação sem fim, que nos levou à ideia de observar por fora do objeto a ser analisado (como se fosse possível!), cortando, recortando, se distanciando. Até que, de repente, não estávamos ligados a mais nada, nem a nós mesmos. Uma marcha inexorável, esmagando todo obstáculo que pudesse atrapalhá-la: as montanhas, as águas, os bosques, as florestas, animais sem utilidade para serem utilizados como mercadoria, incluindo pessoas, gente descartável a ser abandonada pelo caminho.
Em dança sensível, esse documentário consegue enxergar e tocar as leves folhas que se esvaem ao vento de uma marcha dura. Para além do convite ao debate reflexivo, profundo e bem fundamentado, o filme também nos transporta em voo sobre uma folha ao vento. Nosso tapete mágico a desfazer a ideia de que progresso e acumulação parecem não ter fim. Até que a natureza se faça ouvir, não como algo que “também” tem importância, como Poty Poran, professora de educação indígena na aldeia guarani Krukutu, na zona sul da cidade de São Paulo, lucidamente nos alerta a partir de comentários ouvidos por ela em bem intencionados (mas igualmente equivocados) processos de educação ambiental dos Juruá (não indígenas). Para os povos originários deste vasto continente que veio a ser conhecido por América, a natureza jamais está abaixo dos humanos, pois ela é parte de nós, que pulsa e circula em cada sopro de vida. É sagrada porque a vida é sagrada. É nossa mãe.
De Parelheiros voamos até o Grajaú. Cooperpac, uma cooperativa de trabalho e coleta de recicláveis, que recupera o ambiente e pessoas; um lugar para aqueles que a sociedade não presta atenção às pessoas, que exercem um trabalho digno, útil e gentil. Mulheres na esteira, antes donas de casa, praticando economia colaborativa, em relação direta com seu meio, às margens da grande represa Billings. Da reciclagem à convivência com as águas, quase ao lado da cooperativa, um projeto de remo para crianças, auxiliando-as a mudar o olhar, em uma nova perspectiva adquirida por quem flutua sobre o espelho d’água da grande represa; e assim percebe a própria casa de um outro ângulo, de quem antes não sentia as águas e agora se percebe abraçado por elas.
Gente, auá em tupi, é disso que trata o filme, gente que se redescobre em meio à natureza da qual é parte. Ideias e ações para um “atuar em rede”, exemplos singelos, mas muito singulares e fortes, capazes de alterar vidas e mudar rumos, com ações efetivas, eficazes; e amorosas. Esse documentário é um convite a aprender a ver, a sentir e experimentar. Ele abre outras formas de conceber os sentidos do desenvolvimento. Um desenvolvimento que se reenvolve, reconstruindo a dignidade da vida no reencontro com a Mãe Terra. Um filme/poesia que nos invita ao reenvolvimento com a natureza. E faz isso com a poesia do homem simples do campo, do migrante, daqueles que foram expulsos da terra e que, nas grandes cidades, reencontram o sentido da vida na reconexão com a terra. A ética do cuidado, do respeito à vida, dos alimentos saudáveis, sem veneno, sem química. São práticas para uma vida de respeito de um povo que redescobre o sentido do bem comum.
Flutuando em folhas jogadas ao vento, vamos percebendo que o nosso bem viver não está separado do bem viver dos demais seres. Essa é a mensagem que o filme nos traz. Um filme que vai lá na vila de Nova Esperança, uma ocupação irregular de moradia, abandonada nesses rincões das grandes metrópoles, em que, para muitos, nada mais resta a não ser uma encosta ou várzea. Mas que ainda assim leva o nome de Nova Esperança. Esperança presente nas mãos firmes e mentes generosas daqueles que se dispõem a aprender junto, com generosidade e colaboração.
Escutando folhas caindo ao vento auscultamos nossos corações e colocamos cabeça e mãos em um só sentir/pensar/agir por ideias e ações para um novo tempo.
Desde 2016, por meio do projeto Ideias e Ações para um Novo Tempo, as Unidades do Sesc São Paulo mapeiam em seus territórios iniciativas socioambientais voltadas ao desenvolvimento local e que tenham, entre outros atributos, potencial educativo e práticas de respeito ao ambiente e à diversidade cultural. Estas iniciativas participam junto com o Sesc SP na realização de ações educativas e participação em espaços de encontro para a troca de conhecimentos e saberes.
No intuito de dar visibilidade a esses exemplos e, principalmente, trazer referências para o debate e a mobilização das pessoas, o Sesc SP realizou o webdocumentário “Ideias e Ações para um Novo Tempo” com direção de Mauro D’Addio e produção da Hora Mágica Filmes. Inspirado no projeto de mesmo nome, o documentário traz uma diversidade de depoimentos de representantes de iniciativas socioambientais e especialistas.
O lançamento do documentário aconteceu no Youtube do Sesc SP no dia 5 de junho, Dia do Meio Ambiente, após debate virtual com Lia (Associação Vila Nova Esperança), Célio Turino e mediação de Renato Morgado (Transparência Internacional). Assista aqui ao debate.
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