INFORMAÇÃO E DESINFORMAÇÃO | Combate ao fenômeno das fake news

01/10/2022

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Leia a edição de outubro/22 da Revista E na íntegra

Com o avanço das tecnologias, o aperfeiçoamento de algoritmos e o uso cada vez mais intenso de redes sociais para se informar, manifestar opiniões e trocar conteúdos, o alerta “isso pode ser fake news” precisa apitar constantemente. Não basta incorporar a expressão em inglês, que na nossa língua significa “notícias falsas”, e comentar esse assunto nas rodas de conversa do trabalho, de casa ou da escola. Porque, mesmo com o avanço de discussões levantadas na esfera pública e privada, grande parte da população brasileira ainda não sabe distinguir informação de desinformação. E mesmo que tenha crescido o número de pessoas que adotaram o hábito de questionar e verificar o contexto, a data, a autoria e o tom de notícias compartilhadas nas redes sociais e em grupos de WhatsApp, dados recentes divulgados pelo Poynter Institute – centro de referência nos estudos sobre jornalismo e desinformação – mostram que 43% dos brasileiros afirmam ter encaminhado mentiras, ainda que sem intenção. Tendo em vista esse cenário, a importância da educação midiática bate à porta da sociedade. Mas, onde deve se dar essa educação? No ambiente escolar? Ou é possível pensar em outros espaços formativos? Neste Em Pauta, a jornalista Daniela Machado, uma das coordenadoras do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta, e a doutora em Educação Grácia Lopes Lima, sócia-fundadora do Instituto GENS de Educação e Cultura, compartilham reflexões e caminhos para o combate à desinformação e ao fenômeno das fake news

Quem nos salvará das fake news?

Por Daniela Machado

O universo da informação, extraordinariamente expandido pela chegada da internet, traz enormes oportunidades, mas também riscos e desafios, como a proliferação de fake news. Nesta era de superabundância de dados, mensagens, posts, áudios e vídeos, produzidos e compartilhados à exaustão, a própria ideia do que significa ser alfabetizado ganha contornos adicionais, com a necessidade de ler o mundo de forma ainda mais reflexiva. Novos letramentos tornam-se essenciais para que toda a população consuma e produza informações com responsabilidade e, assim, participe plenamente da sociedade conectada. 

Poucas décadas atrás, apenas grupos restritos estavam aptos a produzir e disseminar informações – caso das editoras de livros e enciclopédias, e dos veículos profissionais de comunicação, entre alguns exemplos. A maioria da população era meramente espectadora, a quem cabia consumir passivamente o conteúdo selecionado, e produzido, por essa comunidade. A comunicação era “de poucos para muitos”. 

Com a internet e, principalmente, as redes sociais, vivenciamos uma explosão no número de pessoas com possibilidade de criar e compartilhar conteúdo com uma audiência real (que, em alguns casos, pode chegar à casa dos milhões). Este “admirável mundo novo” é claramente poderoso ao dar vez e voz a tantas pessoas. Mas, também é repleto de armadilhas, à medida que incontáveis blogs, plataformas colaborativas de publicação, sites, posts e mensagens anônimas ainda servem de veículo para a disseminação de informações pouco ou nada confiáveis. 

Um claro exemplo de como conteúdos de qualidade convivem, lado a lado, com dados sem evidências foi visto durante a pandemia da Covid-19. Não faltaram, por exemplo, fake news sobre a eficácia e a segurança das vacinas. O ambiente tornou-se tão preocupante que a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou, ainda no início de 2020, para um duplo perigo: o da pandemia em si e o do que chamou de infodemia. O termo está relacionado ao excesso de informações durante o surto de uma doença, o que causa confusão e pode levar a comportamentos arriscados (bit.ly/infodemia-conceito). Para a OMS, a infodemia também pode gerar desconfiança da população nas autoridades de saúde e prejudicar a resposta pública à enfermidade. 

EDUCAÇÃO MIDIÁTICA

É preciso reconhecer que ter acesso a mais fontes de informação é algo desejável – somos expostos a novos pontos de vista e vozes que antes tinham baixo ou nenhum alcance. Hoje, especialistas interagem com a população por meio das redes sociais, descomplicam dados científicos e fazem com que mensagens importantes cheguem a um número maior de pessoas. Isso acontece nas mais diversas áreas, não apenas da ciência. Qualquer pessoa com possibilidade de se conectar à internet pode participar dessa imensa troca de saberes. 

NOVOS LETRAMENTOS TORNAM-SE ESSENCIAIS PARA QUE TODA A POPULAÇÃO CONSUMA E PRODUZA INFORMAÇÕES COM RESPONSABILIDADE E, ASSIM, PARTICIPE PLENAMENTE DA SOCIEDADE CONECTADA

Por outro lado, agentes mal-intencionados aproveitam o ambiente de pluralidade de vozes para produzir e espalhar desinformação, discurso de ódio e preconceitos. Por isso, a habilidade de “separar o joio do trigo” e avaliar a confiabilidade das informações que merecem nossa atenção torna-se vital. O hábito de interrogar a informação que chega até nós, ao invés de simplesmente consumi-la, está no centro desse processo e deve ser praticado por toda a sociedade. É isso que defende a educação midiática, com o desenvolvimento de um conjunto de competências para consumir e produzir mídias de maneira reflexiva e responsável. 

Esse é um conceito guarda-chuva que abriga habilidades que vão desde a análise sobre a confiabilidade das mensagens que recebemos, como forma de combater as fake news, até a fluência para usar uma ampla gama de ferramentas digitais para a autoexpressão. Inclui ainda o entendimento do papel do jornalismo, das fronteiras da liberdade de expressão e do direito à informação. Incorpora, portanto, ingredientes de cidadania digital, de educação política e de participação cívica. 

É papel de todos contribuir para que o ambiente informacional seja mais saudável. Mas, para que essa contribuição seja efetiva, precisamos que a educação midiática seja reconhecida como um direito e efetivamente praticada. Não só nas escolas, mas também em ambientes informais de educação – como centros comunitários, bibliotecas e cursos extracurriculares –, é possível desenvolver projetos que ajudem a sociedade a entender, e refletir, sobre as oportunidades e os riscos da internet. É nisso que o EducaMídia, projeto desenvolvido pelo Instituto Palavra Aberta, vem trabalhando desde 2019. Muito tem se falado sobre garantir educação digital para diferentes grupos da população – de crianças pré-alfabetizadas a idosos. 

Precisamos estar atentos para que o termo educação digital seja compreendido de maneira mais ampla, para contemplar não apenas o ensino de como usar as ferramentas tecnológicas, mas, principalmente, quais são as implicações desse uso e como torná-lo mais fortalecedor. Muita coisa está em jogo. Dependemos de informações para tomar decisões a todo momento em nossas vidas – desde as mais corriqueiras, como a escolha de um produto, até as mais complexas e que têm impacto em toda a comunidade, como definir em quem vamos votar. E, quanto mais confiáveis e de qualidade forem essas informações, melhores tendem a ser as nossas decisões.  

Daniela Machado é uma das coordenadoras do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta. É jornalista, com experiência de 20 anos como repórter e editora em importantes veículos de comunicação, como a agência de notícias Reuters e o jornal Valor Econômico. Coautora do Guia da Educação Midiática (educamidia.org.br/guia), lançado em 2020.

Educação midiática em tempos de desinformação 

Por Grácia Lopes Lima

Realizar ações que promovam educação midiática vem sendo apontada como uma grande necessidade, dada a disseminação cada vez mais rápida de notícias, em forma de áudio, vídeo e texto escrito. Por consequência, não são poucos os especialistas e as publicações que enfatizam a urgência de formação, em particular dos mais jovens, para que aprendam a distinguir informações falsas de verdadeiras e, assim, colaborem na promoção de uma leitura crítica da mídia em suas escolas e comunidades. 

Essa mesma expectativa e esperança sobre o papel das novas gerações estão presentes no documento oficial do Ministério da Educação, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelece como deve acontecer a Educação em todas as escolas brasileiras, particulares e públicas, da educação infantil até o ensino médio. Em poucas palavras, o que deve acontecer nesse período de formação objetiva é que todas as crianças e adolescentes, no futuro, sejam pessoas adultas capazes de colaborar ativamente com a transformação da sociedade, de modo que ela se torne justa, democrática e inclusiva. 

Para o alcance desse objetivo, a BNCC define 10 competências, isto é, o que é essencial aprender e ser ensinado na escola. Uma delas, a quinta, relaciona-se diretamente ao que passou a ser conhecido como educação midiática. Diz lá: “compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.” 

PERSPECTIVA HISTÓRICA

Se voltarmos um pouco na História, veremos que a preocupação com imposturas e facilidade para arquitetar ciladas de alguns sobre outros, senão sobre a maioria das pessoas, desrespeitando direitos humanos fundamentais, não vem de hoje. As tecnologias, embora não tão sofisticadas e, portanto, não tão rápidas como as da atualidade para espalhar desinformação (eufemismo para mentira), há algumas décadas também exigiam formação de adultos reflexivos e críticos, similar à que atualmente está incorporada à educação formal. 

O argentino-uruguaio Mário Kaplún (1923-1998), profissional do rádio, da TV e da publicidade, foi um desses pensadores engajados que, não somente sonhava com a transformação social, como buscava promover a conscientização da população sobre a invasão cultural importada dos Estados Unidos, ardilosamente difundida pelos meios massivos de comunicação na maior parte dos países latino-americanos. Destaque para a obra El comunicador popular (1985), uma de suas publicações sobre questões que unem Educação e Comunicação, hoje conhecidas como Educomunicação.

A NECESSÁRIA APRENDIZAGEM DE LEITURA CRÍTICA DA MÍDIA SE INSERE NUM CONTEXTO MUITO MAIS AMPLO: O DE TANTAS OUTRAS LEITURAS REFLEXIVAS DE QUE PRECISAMOS, DA INFÂNCIA AO FINAL DE NOSSOS DIAS, PARA APRENDERMOS A “LER O MUNDO”

A experiência de Kaplún logo mostrou que o tom denuncista, embora esclarecedor, em nada mudou os hábitos de consumo da mídia por uma razão muito simples: a televisão era o entretenimento mais barato para os que frequentavam os cursos de “leitura crítica”. Por essa razão, então, com a mesma finalidade educativa, ele criou, usando fitas K7, uma prática de intercâmbio de áudio entre grupos de pequenos agricultores, organizados em sindicatos e cooperativas, de diferentes regiões. Assim, deslocando-se do papel de receptores para o de produtores de comunicação, os trabalhadores não só identificaram pontos comuns entre eles, como conseguiram planejar ações conjuntas em benefício de um bem comum. 

Está aí, nessa metodologia criada pelo precursor do novo campo do conhecimento, chamado Educomunicação: uma das formas mais eficazes de formar pessoas adultas, independentemente de sua formação escolar, para entender que, dependendo de quem produz a comunicação – que nunca é neutra –, ela pode ser um instrumento poderoso de organização social. 

RESPONSABILIDADE DE TODOS

Transpondo o exposto para a atualidade, é impossível não causar incômodo que um dos maiores apelos da atualidade seja dirigido quase que exclusivamente a usuários de redes sociais para que não passem para frente o que não é fato. Quando todas as pessoas são cobradas para que sejam reflexivas e éticas ao postarem vídeo, áudio ou foto nas redes sociais, por que são poupados os veículos de comunicação de audiência nacional, bem como a quem a eles se prestam, fazendo parecer para um número significativo de espectadores, que sempre dizem a verdade? 

Retomando a sempre oportuna análise sociológica de Pierre Bourdieu (1930-2002), o mecanismo estrutural da televisão (hoje, também, da internet) leva quem opera à frente ou atrás das câmeras a ser tanto manipulador, quanto manipulável, ao “fabricar” notícias. Manipulador porque ao aceitar, por exemplo, dar destaque a notícias sensacionalistas sobre crimes ou dramas, distrai o espectador e oculta coisas que o incapacitam de exercitar seu direito de cidadão. 

Dentre outros mecanismos de controle da informação, quem opera à frente ou atrás das câmeras contribui para transformar o que poderia ser “um extraordinário instrumento de democracia direta” em um “instrumento de opressão simbólica”. 

Manipulável porque, com frequência, é conivente com esse jogo, e, profissionalmente, sustenta e aprimora tal opressão. Além disso, porque revela que se conforma às regras políticas e econômicas, definidoras do papel que lhes cabe nos meios de produção e divulgação de informação ou de desinformação. 

Por esses e tantos outros motivos é que as atividades pautadas pelos princípios da Educomunicação, como sinônimo de Educação pelos Meios de Comunicação, necessariamente acontecem de forma coletiva. Isso porque entendemos que a necessária aprendizagem de leitura crítica da mídia se insere num contexto muito mais amplo: o de tantas outras leituras reflexivas de que precisamos, da infância ao final de nossos dias, para aprendermos a “ler o mundo” e, por consequência, para nos tornarmos sujeitos de conhecimento, como sabiamente nos fala Paulo Freire, em A importância do ato de ler (1988). 

A produção coletiva de comunicação se diferencia da fabril, na qual cada pessoa executa apenas um pedaço do trabalho, sem se responsabilizar pelo todo. Como se trata de uma proposta de educação pelos meios de comunicação, as produções coletivas permitem a cada participante se reconhecer tanto no produto final, quanto no processo de concepção e execução. Essa relação intensa escancara, quer se queira ou não, os conceitos que efetivamente sustentam a ação de cada participante, tais como ética, respeito à diversidade de toda ordem e cooperação. 

Por extensão, quando esse modo de produzir comunicação se transforma em objeto de reflexão, acreditamos ser possível dar início a um novo modo de relacionamento social, onde o trabalho – consideremos assim toda produção de comunicação realizada – não contribui para fragilizar e alienar o homem de si mesmo. Antes, fornece elementos para que, analisando como o realizamos, entendamos o grau de dedicação que empenhamos nessa proposta que parte da autoconvocação, e não servil, do cumprimento de ordens. 

GRÁCIA LOPES LIMA é mestra em Ciências da Comunicação e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. É sócia-fundadora do Instituto GENS de Educação e Cultura, uma das cocriadoras do projeto Cala-boca já morreu – porque nós também temos o que dizer!, organização não governamental, referência desde 1995 em Educomunicação, e do projeto Trecho 2.8 – criação e pesquisa em comunicação, coletivo que, desde 2010, reúne adultos em situação de alta vulnerabilidade social e usuários da saúde mental para também produzirem mensagens do seu próprio ponto de vista. 

A EDIÇÃO DE OUTUBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, celebramos as ações solidárias organizadas pela sociedade civil para o combate à fome no país. Na reportagem “Alimentar a mudança”, divulgamos dados alarmantes sobre o cenário de insegurança alimentar no Brasil e indicamos iniciativas e projetos transformadores para enfrentar essa situação, como o Organicamente Rango, a Gastronomia Periférica e o Experimenta!

Além disso, a Revista E de outubro traz outros destaques: uma reportagem que destaca a força do jazz enquanto música afrodiaspórica, diversa e combativa; uma entrevista sobre música, literatura e sociedade com Adriana Calcanhotto; um depoimento de Cassio Scapin sobre a força da comédia e o despertar dos musicais brasileiros; um passeio visual pelas obras da exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros; um perfil de Dias Gomes (1922-1999), nome primordial da dramaturgia brasileira; um encontro com o coordenador da Agência Lupa Chico Marés, que fala sobre checagem de informações; um roteiro por 6 espaços que propõem atividades artísticas para aguçar a sensibilidade das crianças, em outubro; poemas inéditos do escritor Paulo Scott; e dois artigos que destacam a importância da educação midiática para o combate à desinformação.

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