Leia a edição de maio/22 da Revista E na íntegra
A identidade da primeira romancista negra brasileira, a maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), representou um mistério por muito tempo. Em vida, ao publicar nos periódicos literários da cidade de São Luís do século 19, a autora assinava seus escritos sob o pseudônimo “Uma maranhense”. Já a sua imagem atravessou décadas sendo registrada de modo equivocado – ora confundida com outras personalidades oitocentistas, como a escritora gaúcha Maria Benedita Bormann (1853-1895), ora rebatizada e, por vezes, embranquecida. As controvérsias, no entanto, não puderam reprimir a força da sua obra, reconhecida como primordial para a compreensão de um tempo e de uma sociedade que seguem ressoando no Brasil atual.
Em seu bicentenário de nascimento, a escritora e professora é tida hoje como a fundadora da literatura abolicionista no país. E ocupa, junto ao advogado, jornalista, poeta e orador baiano Luiz Gama (1830-1882) [Leia Perfil publicado na Revista E nº 289, de novembro de 2020], patrono da abolição da escravidão, um lugar essencial nas origens da literatura afro-brasileira. “Recuperar a trajetória de vida e o seu legado enquanto cidadã do Império e artífice da vida artística, intelectual e política brasileiras em pleno século 19 é, mais que instigante, urgente e necessário”, avalia o sociólogo Rafael Balseiro Zin, pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
PRIMEIROS RELATOS
Maria Firmina teve uma história emblemática entre as mulheres de mesma condição – de origem pobre, filha de Leonor Felipa dos Reis, alforriada, e de João Pedro Esteves. Órfã aos cinco anos, foi educada por uma tia materna na cidade de Guimarães, no litoral do seu estado natal, em um lar onde estabeleceria os primeiros contatos com a literatura. Na juventude, exerceu o magistério e, em 1847, foi aprovada em concurso público para professora primária. Anos mais tarde, a escritora seria presença constante na imprensa literária maranhense.
Em 1880, oito anos antes da assinatura da Lei Áurea, criou a primeira escola de educação mista e gratuita do Maranhão. A ousadia causou grande repercussão na época, obrigando a professora a suspender as atividades da instituição. “Do ponto de vista literário, a primeira obra de que se tem notícia, escrita por Maria Firmina dos Reis, foi o romance Úrsula, publicado em 1859 em São Luís, em formato de livro, num momento em que boa parte das prosas de ficção lançadas no país era veiculada em formato de folhetim”, explica Balseiro Zin. Na obra, conforme revela o pesquisador, a escritora apresenta – de forma inédita aos leitores de ontem e de hoje – os dilemas da escravidão negra no país, vistos a partir do entendimento das próprias personagens negras escravizadas. Perspectiva essa um tanto particular para a criação literária brasileira oitocentista e que nortearia, inclusive, os seus futuros trabalhos.
Para Roberta Flores Pedroso, pesquisadora nas áreas de Literatura, Sociedade e História da Literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para esse propósito, a maranhense utilizou modelos literários disponíveis na época a fim de subverter a ideologia dominante em favor de um novo projeto estético. Um projeto em que predominasse um olhar distinto para uma literatura em formação. “Firmina apresentou figuras femininas fortes e decididas, que fizeram escolhas desautorizadas pelas vozes masculinas, situação que não correspondia aos costumes da época, nem à sociedade, tampouco às narrativas românticas. Essa insubordinação feminina inaugura uma temática até então proibida, assim como acontece em Úrsula, livro no qual aparece pela primeira vez o porão do navio negreiro, narrativa que conheceremos somente dez anos mais tarde, em 1869, pelo poeta Castro Alves (1847-1871)”, pontua.
A POTÊNCIA DA ESCRITA
“Imaginem em pleno século 19, auge da escravidão, uma jovem maranhense, negra, professora e de origem humilde desbravar um espaço que era privilégio do sexo masculino? Escrever um romance do porte de Cabana do Pai Tomás (1852), da escritora estadunidense Harriet Beecher Stowe (1811-1896) – ícone mundial dos movimentos antiescravagistas, especialmente entre mulheres abolicionistas – que repercutiu significativamente no meio literário brasileiro, enquanto Úrsula, com uma temática tão similar, e mais original, não reverberou de forma crítica”, reflete Roberta Flores Pedroso.
Esta excepcionalidade surpreende pelo fato de a obra ser escrita por uma mulher negra, num país escravagista em que o público leitor pertencia à aristocracia. “Ela defendia que a escravização atrasava o progresso do país, em oposição à perspectiva escravista de José de Alencar (1829-1877), por exemplo. Firmina ultrapassa em muito os seus contemporâneos, porque demonstrou uma preocupação essencialmente distinta das diversas funções do sistema escravocrata vigente sobre a população negra, tendo como o seu ponto fundamental de atuação, a distinção entre a liberdade e a alforria, aspectos que transitam fortemente em seu romance Úrsula e no conto A Escrava, e abordado de modo banal e romantizado, como por exemplo, em a A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães (1825-1884)”, complementa a pesquisadora.
LEGADO INFINDÁVEL
Para Régia Agostinho, professora adjunta do departamento de História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a herança de Maria Firmina dos Reis pode ser localizada como uma semente revolucionária entre as escritoras e intelectuais negras no país. “Firmina inicia um longo caminho da escrita feminina negra no Brasil. Talvez não tenha sido a primeira, mas foi a única que chegou ao nosso tempo, graças ao movimento negro da década de 1970, especialmente no Maranhão, do qual o seu primeiro biógrafo, Nascimento de Morais Filho (1922-2009), fazia parte. Morais Filho, junto com o historiador paraibano Horácio de Almeida (1896-1983), trouxe Maria Firmina dos Reis para o debate antirracista do século 20 e, no início do século 21, temos hoje esse reconhecimento da autora em diversas universidades, tanto no Brasil, como fora”, sintetiza a docente.
A obra da autora maranhense ficou esquecida da tradição literária brasileira por muito tempo. Tal cenário se assemelha ao fim da vida da escritora – Maria Firmina dos Reis morreu, cega e pobre, aos 95 anos. O romance Úrsula, por exemplo, até o ano de 2017, que marcou o centenário de seu falecimento, havia sido publicado no Brasil em apenas cinco edições: 1859, 1975, 1988, 2004 e 2009. Desde então, entre os anos de 2017 e início de 2022, foram lançadas 24 novas reedições, totalizando 29 versões de um mesmo livro desde a sua veiculação original. E, entre a primeira e a segunda edições, as de 1859 e de 1975, o intervalo temporal foi de 116 anos.
OUTRAS VOZES ABOLICIONISTAS
“Cada republicação do romance e trabalhos de pesquisadores circulando nacionalmente fizeram com que a produção de Maria Firmina dos Reis se tornasse mais reconhecida, inclusive entre os escritores e escritoras que tentavam construir uma tradição do romance de autoria negra no Brasil. Hoje, é possível perceber o quanto o nome e a obra de Firmina dos Reis reverberam na produção literária nacional, inclusive na criação de personagens e de histórias que retomem o passado nacional em busca de um novo olhar para esse contexto, trazendo as vozes de personagens negros para o centro das narrativas”, afirma Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho, pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Segundo a pesquisadora, além de Úrsula, o conto A Escrava, publicado em 1887 na Revista Maranhense, também é fundamental para pensar os modos como a obra da escritora maranhense repercute na produção literária atual. “O conto, publicado no soar dos sinos da Abolição, transmite uma perspectiva antiescravista mais forte, afinal, alguns dos elementos de sua composição não somente retomam o que já havia em Úrsula, como também condenam a escravização moral e economicamente para o futuro do país”, analisa Carvalho. Assim, nomes de destaque da literatura brasileira contemporânea, como Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo e Eliana Alves Cruz, estão entre as autoras de romances que retomam o passado nacional e, com isso, fundam, aos poucos, um novo futuro, assim como o fez Maria Firmina dos Reis.
“Acredito que a obra e a trajetória de Maria Firmina fomentam, hoje, a trajetória de muitas pesquisadoras negras. O meu trabalho como intelectual acadêmica, por exemplo, é constantemente impactado por seu legado: criei um site na internet no qual busquei organizar o material biográfico e bibliográfico dela e, a partir dele, eu e mais duas amigas lançamos a Revista Firminas: pensamento, estética e escrita, que é a primeira revista brasileira focada na produção de artistas e intelectuais negras. A Revista Firminas é produzida de forma totalmente colaborativa e isso em um momento em que revistas acadêmicas estão encerrando suas atividades por falta de financiamento. Eu acredito que ser pesquisadora negra no Brasil de hoje requer muito essa pluralidade, essa insurgência e esse pioneirismo tão presentes em Maria Firmina dos Reis, ela nos inspira a incentivar outras mulheres a ocuparem os espaços acadêmicos com autonomia, protagonismo e muita criatividade. E isso é muito importante.”
Luciana Diogo, socióloga e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP)
“A minha leitura de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, é posterior à publicação de Um defeito de cor. E isso diz muito sobre o silêncio em relação ao nosso primeiro romance abolicionista de autoria feminina; e também o silêncio que se fez depois de sua publicação. A pesquisadora Fernanda Miranda fez um levantamento dos romances escritos por mulheres negras brasileiras publicados no Brasil e o número é alarmante: de 1859, ano de publicação de Úrsula, até 2006, quando publiquei Um defeito de cor, éramos apenas 11. Ou seja: em 147 anos, apenas 11 romances escritos por mulheres negras foram publicados no Brasil. Este fato, mas não apenas ele, dá a dimensão da grandeza do trabalho de Maria Firmina dos Reis, a quem reverencio e agradeço.”
Ana Maria Gonçalves, escritora de obras premiadas como Um defeito de cor (Record, 2006), entre outras
“Maria Firmina dos Reis ecoa como precursora, como aquela que abriu caminhos e mostrou que era ‘possível’ fazer-se escritora num cenário muitíssimo mais adverso do que este experimentado por nós hoje. Nos dias atuais é muito mais fácil publicar. O desafio continua sendo o de produzir um lugar de existência no mercado editorial e fazer com que nossa obra circule.”
Cidinha da Silva, autora de Um Exu em Nova York (Pallas, 2018), entre outros
“Maria Firmina tem contribuído com o desdobrar das minhas práticas artísticas enquanto artista e artista-docente, principalmente no que se refere à representatividade negra na cena teatral e na cena pedagógica. Muito se tem falado e pensado sobre representatividade negra em muitas esferas, e, ao apresentar o espetáculo em instituições, principalmente nas escolas, eu vejo o quão é necessário debater temáticas tão atuais que a escritora já escrevia em suas obras como: racismo, ser mulher em uma sociedade machista, educação, religiosidade, manifestações culturais e suas importâncias. São essas temáticas que abordo em meu trabalho ao falar de Maria Firmina dos Reis e ao falar de mim, mulher preta e artista. E isso reverbera de forma tão positiva e significativa no público, que se sente representado naquilo que vê. São histórias que se intercruzam.”
Júlia Martins, atriz, produtora e publicitária
Pensar a obra e a trajetória de Maria Firmina dos Reis a partir de uma série de atividades que reúnem artistas, escritoras e intelectuais é a proposta do projeto Sobre Marias e Firminas: Escritas de Mulheres Negras, em cartaz no Sesc Carmo.
Confira a programação:
MESAS DE DEBATES
Maria Firmina: Vida, Obra e Reverberações
Nesta atividade, a proposta é contextualizar o período no qual viveu Maria Firmina dos Reis, bem como tratar os aspectos de sua obra e reverberações. Fazem parte da mesa: Fernanda Miranda, escritora, professora adjunta da Universidade Federal do Sul e Sudoeste do Pará (UNIFESSPA) e Régia Agostinho, professora adjunta da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). (Dia 09/05, segunda, das 18h às 20h, com transmissão ao vivo pelo canal do YouTube do Sesc Carmo).
A escrita e a literatura das mulheres negras como ruptura e potência
Neste encontro, serão trabalhadas a escrita e a literatura de mulheres negras como processo de conversa com suas ancestralidades, com a ruptura do silenciamento das mulheres e com o papel político-social da escrita. Participam: Jessyka Rodrigues, assistente social e mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), e Esmeralda Ribeiro, escritora e jornalista que, desde 1999, edita, com Marcio Barbosa, os Cadernos negros, entre outras publicações. (Dia 11/05, quarta, das 18h às 20h, com transmissão ao vivo pelo canal do YouTube do Sesc Carmo).
Diáspora e os diálogos transatlânticos
Esta mesa propõe o encontro entre mulheres que, entre continentes, trazem na escrita exercícios de subjetivação, de conversa, de memória e de escrita. Dela faz parte Dina Salústio (Bernardina de Oliveira Salústio), natural de Cabo Verde, ilha de Santo Antão, professora, jornalista e escritora de obras que abarcam prosa, poesia e ensaio. Ela ainda é membro fundador da Academia Cabo-verdiana de Letras. Também participa Zélia Amador de Deus, artista, professora e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). (Dia 12/05, quinta-feira, das 18h às 20h, transmissão ao vivo pelo canal do YouTube do Sesc Carmo).
TEATRO
Socorro Lira – Cantos à Beira-Mar
Espetáculo de música e poesia concebido e apresentado pela compositora e cantora Socorro Lira que homenageou, em 2021, os 150 anos do livro Cantos à Beira-mar e que celebra, neste ano o bicentenário de Maria Firmina dos Reis.
(Dia 13/05, sexta-feira, às 19h30).
Maria Firmina dos Reis, uma voz além do tempo
Nesta releitura sobre vida e obra da primeira romancista afro-brasileira, Maria Firmina dos Reis, a atriz Júlia Martins traz ainda sua própria voz e a de outras mulheres e homens negros. (Dia 10/05, terça-feira, às 18h).
Literatura
Úrsula – Marco inaugural da literatura afro-brasileira, Úrsula, de 1859, é o primeiro romance de autoria negra e feminina no Brasil. Em suas primeiras linhas, escreve a autora: “Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados”.
Gupeva – Conto indianista publicado originalmente no semanário O Jardim das Maranhenses, entre 1861 e 1862.
Cantos à Beira-Mar – Na obra, estão reunidos o conto A Escrava, publicado em 1887, e uma coletânea de poemas também assinados por Maria Firmina dos Reis.
Audiovisual
#OPoderDaNarrativa: o Brasil revisto através dos romances de autoras negras – Maria Firmina dos Reis
Série de vídeos realizada pelo Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo que busca apresentar e analisar o corpo de romances de autoras negras brasileiras.
Sesc Digital
Encontros
Aulas
Trajetórias de intelectuais negros e negras à luz dos seus contextos e em diálogo com as produções dos campos das relações raciais e da sociologia da cultura:
https://sesc.digital/conteudo/artes-visuais/49117/intelectuais-negros-brasileiros-dia-1
https://sesc.digital/conteudo/artes-visuais/49122/intelectuais-negros-brasileiros-dia-2
https://sesc.digital/conteudo/artes-visuais/49121/intelectuais-negros-brasileiros-dia-3
(Por Manuela Ferreira)
A EDIÇÃO DE MAIO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Neste mês, refletimos sobre o retorno da atividade turística a partir de novos mapas que fomentam a economia local e valorizam a diversidade cultural de uma região. Ao repensar o turismo, convidamos você a dobrar a esquina, descobrir outras narrativas e visitar novos universos dentro da sua própria cidade. Aproveite para conferir as novidades do processo de retomada dos roteiros do Turismo Social do Sesc São Paulo.
Além disso, a Revista E traz outros destaques em maio: uma reportagem que defende a importância do livre brincar como ação essencial para o desenvolvimento das crianças; um papo com a atriz e performer Denise Stoklos sobre processo criativo, velhice e família; um passeio visual pelos figurinos do CPT_SESC, centro teatral criado por Antunes Filho no Sesc Consolação; um depoimento com Sebastião Salgado sobre sua imersão na floresta, o que gerou a exposição Amazônia, no Sesc Pompeia; um perfil de Maria Firmina dos Reis, fundadora da literatura abolicionista no Brasil; um encontro com Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta e uma das principais vozes do empreendedorismo negro no país; um roteiro por espaços e projetos que praticam o acolhimento materno na capital paulista; o conto inédito As Substitutas, do escritor João Anzanello Carrascoza; e dois artigos que abordam conquistas e desafios da presença das mulheres indígenas na literatura.
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