Foto: Matheus José Maria
Por Dyonne Boy*
Escrevo esse texto há menos de 15 dias do falecimento de nossa grande mestra Tia Maria do Jongo, aos 98 anos. Estamos ainda tentando entender como é existir Jongo da Serrinha “sem” a presença da Tia. Em sua última semana de vida, ela teve uma intensa agenda: no domingo (12/05) foi capa do caderno de cultura do principal jornal da cidade; segunda, 13 de maio, esteve na nossa antiga sede, o Quilombinho, para celebrar o Dia dos Pretos Velhos; terça recebeu o Prêmio Sim de Igualdade Racial, no luxuoso Copacabana Palace, com público de maioria negra, a aplaudindo de pé; quinta-feira foi à Casa do Jongo fazer aula de percussão; sexta foi para o aniversário de um amigo, no boêmio bairro da Lapa, onde esteve até duas da manhã dançando e cantando; finalmente no sábado foi à Casa do Jongo levar o prêmio e participar da aula de jongo adulto. Pediu para sentar em frente a um tambor, tocou um pouco e faleceu minutos depois, sentada na roda, cercada de admiradores. Machado!
Tia Maria revela a enorme força e potência do jongo, tecnologia ancestral, presente nos dias de hoje. Tanto na não distinção entre vida e trabalho, apontando para uma relação em que o trabalho é, na contramão do mercado exploratório, fonte de saúde, solidariedade, alegria e da “eterna juventude”, quanto na referência identitária não só para a juventude e movimento negros mas para toda sociedade brasileira. Rainha aclamada, a figura (pública) de Tia Maria, a grande matriarca, encarnação da Mãe África, jongueira mais velha da cidade, Griô de quase um século, mestra da oralidade e “analfabeta” como se autodeclarava, deixa explícito em seu corpo lembranças “do tempo do cativeiro” herdadas diretamente de seus avós, que “senhores de engenho” contemporâneos tentam pacificar apagando dos livros e do noticiário. Mas Tia Maria resistiu com sua permanência e lucidez de quase um século, transbordando doçura e persistência, usando a “plataforma” do jongo como meio para transmitir para as futuras gerações sabedorias ancestrais sedimentadas. Falar do jongo é falar da Abolição que nunca houve e da reparação histórica necessária para o bem-estar social geral e irrestrito. O jongo reconta, portanto, a História do Brasil sob o olhar dos oprimidos. Os pontos, as vestimentas, a roda, o respeito aos mais velhos, a dança de pés descalços, a hierarquia … está tudo lá se perpetuando desde o tempo das senzalas.
Tradição e futurismo
Registrado pelo IPHAN em 2005 como um dos seis primeiros patrimônios imateriais do Brasil, o jongo originalmente só podia ser dançado pelos “cabeça branca”. Contam velhos jongueiros que quando a Terra era “encantada”, ou seja, quando havia muito mais natureza do que cidade, os jongueiros tinham diversos poderes mágicos. Um deles, muito comum, era estar em dois lugares ao mesmo tempo. Acontecia de alguém ir para uma roda umbigar e outro testemunhar que aquela mesma pessoa estava numa outra roda, em outro lugar, ao mesmo tempo. Contudo, dizem que esta magia, com a urbanidade excessiva, foi perdendo sua potência. Mas o jongo continua “tendo mironga” e preserva em seus sistemas a força regeneradora da natureza e da presença dos corpos que “se umbigam mutuamente”, com o dizia Mestre Darcy, criador nos anos 60, do Jongo da Serrinha.
Mas então já que o jongo foi registrado como patrimônio imaterial do mundo, o que ele perpetua afinal? Quais são seus valores e estrutura que mantêm vivas forças vitais que nos fazem mover em direção da felicidade e da liberdade, como bem comprovou Tia Maria? Os jongueiros, futuristas, sempre preservaram as naturezas, humana e biológica, analógicas, mesmo com a migração de ex-escravizados das fazendas de café do Vale do Paraíba para os centros urbanos. Essa relação com a natureza está nas letras, nas histórias de família, nas lendas, no dia a dia, na medicina, nas receitas. Enquanto discutimos Previdência Social, os jongueiros já estavam desde o século 18 cultivando a terra e a solidariedade rumo ao século 22. Num mundo em que a presença real e os encontros se tornam cada vez mais raros, dando espaço para uma virtualidade que relativiza a história e a ciência, o jongo é tecnologia de ponta para a produção de alegria e preservação da memória do pais. A alegria como resistência. A roda e sua horizontalidade e a festa como dispositivo do encontro vão criando laços, deixando lastros, saudade, vontade de se encontrar mais uma vez pra bater tambor, bater palma, cantar junto, alto, com a força do abdômen e a voz do coração. O jongo é terapêutico, é instrumento para saúde, tonifica músculos e afetos.
Considerado uma dança lasciva, o ritmo e a umbigada fazia casais dançarem juntos, suarem, rirem, se encostarem, se olharem, flertarem… o jongo vai dando vontade de permanecer em estado de graça e dançar até de manhã, gestando futuro.
Foi a partir de todo esse complexo cultural que o Jongo da Serrinha criou há cerca de 60 anos um grupo artístico e há 20 anos uma ONG para emprestar suas tecnologias para a educação popular e para a arte. Agora temos mais a benção e o legado de Tia Maria para seguir com esta caminhada. E seguiremos. Mais fortes.
Saravá jogueiro velho! Saravá jongueiro novo!
Axé!
* Dyonne Boy é artista, ativista, gestora, formada em Comunicação Social pela PucRio e Mestre em Projetos Sociais e Bens Culturais pela FGB-RJ e em dança contemporânea pela Escola Angel Vianna. Desde 1998 trabalha no Jongo da Serrimha como coordenadora executiva. Participa dos movimentos OcupaMincRJ e Reage, artista!.
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