MÚSICO, CANTOR E EXPERIMENTADOR DE SONS, ARRIGO BARNABÉ FALA SOBRE OS 40 ANOS DO DISCO CLARA CROCODILO, SUA VERVE CÊNICA E SOBRE A VIDA FORA DO MAINSTREAM
Estranhamento é uma palavra que o compositor e instrumentista Arrigo Barnabé toma como elogio. Afeito àquilo que é dissonante e fora do trivial na música, o compositor, instrumentista e cantor nascido em Londrina (PR) e radicado em São Paulo, celebrou em 2020 os 40 anos do álbum de estreia, Clara Crocodilo. Formado em Música pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), foi na capital paulista, mais precisamente no Festival Universitário da TV Cultura em 1979, que Arrigo Barnabé mostrou o improvável: misturar a música erudita ao pop e ao rock. Tanto que o disco Clara Crocodilo, do qual participaram Itamar Assumpção — amigo e parceiro musical —, o baterista, irmão e também compositor Paulo Barnabé, e muitos outros artistas, se tornou um marco da vanguarda paulista. “Acho Clara Crocodilo, musicalmente, extremamente atual. E os jovens se identificam com ele”, observa o músico, que em 1984 voltou a provocar o público com o álbum Tubarões Voadores. Além disso, ele já atuou em filmes (Nem Tudo É Verdade, de Rogério Sganzerla, 1986), compôs trilhas sonoras (Cidade Oculta, de Chico Botelho, 1986), óperas, e ainda fez uma releitura afetiva das obras do cantor e compositor Lupicínio Rodrigues (1914-1974) no show Caixa de Ódio, em 2011. Nesta Entrevista, Arrigo Barnabé volta no tempo para falar dos bastidores de seus experimentos musicais, parceiros e maestros que marcaram sua carreira e a tal longevidade underground.
Qual sua percepção hoje ao ouvir o disco Clara Crocodilo?
Acho que ele continua forte. Talvez um senão que eu possa fazer é que a gente não teve condições de gravar com melhor qualidade a parte técnica, porque a gente tinha uma banda muito grande e a mesa só tinha 16 canais. A gravação da bateria não foi como eu gostaria que fosse, tivemos que sacrificar algumas coisas. Esse seria um aspecto que compromete um pouco, mas acho o disco muito forte e ele continua com uma densidade incrível. Acho, musicalmente, extremamente atual. E os jovens se identificam com ele.
Como ele foi compreendido na época? Qual foi a recepção do público?
Me lembro de pessoas que o entendiam muito bem. Lembro que Belchior era uma delas. Eu me lembro que mostrei para Tom Jobim, já em 1982, na casa dele. Mostrei algumas faixas do LP Clara Crocodilo, ele ouviu com atenção e disse que achou muito diferente. Falei para ele que usei o dodecafonismo e ele ficou impressionadíssimo. Falou que o Claus Ogerman disse que isso era o futuro da música. Tem um depoimento do Paulinho Jobim sobre o que o Tom Jobim achava que era a música do futuro e o Paulinho falou: “Um dia o Tom chegou pra mim, me mostrou e disse: ‘Isso não parece aquelas coisas do Arrigo?’”. E o Tom, sempre que me encontrava, falava: “Arrigo, fiz uma valsa em sua homenagem”. O Paulinho da Viola também ficou muito impressionado, sabe? Além de Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Rogério Duprat.
Sendo o Rogério Duprat o responsável pelo Tropicalismo, o que ele achou?
Em 1976, mostrei as músicas desse disco para ele numa fitinha cassete e ele me falou: “Volta semana que vem para eu dizer o que eu achei”. Depois, ele me disse: “Tem uma música — era Clara Crocodilo — que é muito legal. Arruma uma banda que eu dou estúdio para você gravar”. Aí eu arrumei a banda: Itamar [Assumpção] cantando, Paulinho, meu irmão, na bateria, o [Antônio Carlos] Tonelli no contrabaixo, e eu tocando piano. O Itamar fazia um pouco de guitarra também. As músicas eram difíceis e nós não éramos, digamos assim, maduros para tocar, para conseguir preparar isso e a gente estava ensaiando. Moramos no [bairro] Eldorado, onde o criminoso nazista [Josef Mengele, chefe do serviço médico do campo de concentração de Auschwitz entre 1943 e 1945] foi morto. A gente morou ao lado de um restaurante alemão que esse cara frequentava. Até um pessoal lá de Eldorado fez um filme sobre isso e chamou a gente. Enfim, ficamos lá e estávamos preparando isso.
E como foi esse período de ensaios e preparos que antecederam o disco?
Lá em Eldorado, a gente não tinha carro. Tinha que pegar um ônibus até Diadema, depois pegar outro ônibus até o final do metrô Jabaquara para vir para São Paulo. E a gente não tinha telefone lá, então era um isolamento mesmo. Nós conseguimos um equipamento, juntamos uma graninha, compramos e ficamos lá durante seis meses ensaiando. Até que a mulher do Itamar ficou grávida da Serena e o Itamar falou que tinha que arrumar um emprego. Foi quando nós desmanchamos o grupo, que se chamava Navalha.
Depois dessa saída, o que aconteceu?
Daí a gente voltou para São Paulo, eu expliquei para o Rogério [Duprat] o que tinha acontecido e falei que queria mostrar as músicas para o Ney Matogrosso, porque o Rogério tinha escrito os arranjos do último disco do Ney. Ele me deu o contato do Ney no Rio de Janeiro e uma carta de apresentação, mas não tinha o endereço do Ney. Eu estava indo para o Rio, na verdade, para um festival de curta-metragem na Bahia. A gente foi até o Rio e de lá ia para Salvador, eu e Cristina, que era minha namorada na época. Descobri o endereço do Ney na saída de um show quando vi que talvez o Gil ou o Caetano pudessem saber onde o Ney morava. Aí eu fiquei parado na saída desse show, o Gil e o Caetano conversando e eu perguntei para o Caetano se ele sabia onde o Ney morava, falei que eu tinha carta do Rogério Duprat para ele. Ele não gostou da minha chegada, e o Gil me falou que ele morava no Leblon. Fui lá, bati na porta da casa, o Ney me recebeu, mostrei a carta do Duprat e deixei as músicas com ele. Acabou não rolando, mas o Duprat conhecia tudo. Aí, quando apareceu o festival da TV Cultura [Festival Universitário da MPB], no qual entrei com a música Diversões Eletrônicas, em 1979, fui pedir para o Rogério escrever (os arranjos), mas ele me incentivou e eu acabei fazendo. Então, ele era um cara muito legal, deu o apoio que eu não tive no curso de música na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Enfim, muita gente de música erudita também curtiu e era incrível ver a molecada curtir.
Em termos de estética, com que cenário musical brasileiro o disco Clara Crocodilo dialogava na época?
Dialogava com as coisas que os maestros Duprat, principalmente, e Júlio Medaglia fizeram no Tropicalismo. Dialogava com isso na parte musical. Agora na parte de texto, acho que tem uma influência do teatro muito forte, mais até do que eu me dava conta. As narrações são muito teatrais e na concepção das músicas há um lado cênico muito forte. Tanto que é muito diferente assistir ao show de só ouvir a música. Esse pensamento teatral, essa narrativa por trás influencia a maneira de fazer a música. Quando fizemos a música Clara Crocodilo em Londrina, eu e o Mário Lúcio Cortes — que é mais autor da música que eu porque ele conhecia mais música que eu, mas não seguiu carreira — queríamos fazer com um caráter atonal, meio estranho, usando intervalos que as pessoas não usam, legais para a gente, mas um desafio para quem está ouvindo.
De que forma?
As pessoas eram desafiadas a entender qual o interesse daquilo. Fizemos cinco módulos, depois aproveitei para fazer várias coisas na estrutura dramatúrgica da história da Clara e dois refrões: um refrão no começo e um refrão no fim. Tem uma transmissão de rádio enorme, um refrão, uma narração no meio onde revelo que a música é um monstro, aí vem um refrão final. Faço o papel de um repórter no começo e no final indo entrevistar um monstro e comentando com a audiência. Já no caso da música Infortúnio, que fala do cemitério, eu tinha visto um programa da TV Cultura com Nelson Rodrigues falando sobre como ele trabalhava temas evitados na produção artística brasileira, como a morte. Fiquei pensando naquilo. Aí eu vi uma mulher dando uma entrevista na televisão em que ela queria que a União fosse responsabilizada pela morte do marido dela. Na minha cabeça ficou que ela era a Clarice, mulher do [Vladimir] Herzog. Então, quer dizer, essas cenas, para mim, na minha cabeça, tudo isso é coisa de teatro. Como em Acapulco Drive-in, que tem a letra feita pelo meu irmão. Quando eu ouvia Clara…, eu ficava com medo e achava que não ia conseguir fazer mais nada depois. O disco tinha uma integridade que não consegui no Tubarões Voadores, que é composto por peças individuais, mas não tem ali uma integridade como obra. E o Clara tem consistência enquanto obra.
Já ouvi você falar que há uma fraqueza nos arranjos na música brasileira. Poderia falar um pouco da importância do arranjador na música brasileira e em especial desses que foram arranjadores no seu trabalho?
Eles eram a referência que eu tinha. De repente, eu vejo caras da música brasileira misturando informações da música contemporânea com o baião, com o iê-iê-iê. Algo meio parecido com o que George Martin [arranjador, músico e maestro britânico, 1926-2016] fazia com os Beatles. Quer dizer, isso não era uma coisa que estava acontecendo só no Brasil. O Brasil tinha uma característica específica: trabalhava-se com um universo menos pop que dos Beatles. Aqui você tinha contato com aspectos da cultura brasileira de uma outra maneira, em Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Zé Celso, Oswald de Andrade. Na música, tinha tudo isso misturado com as possibilidades que a música erudita oferece para gerar estranhezas, coisas insólitas, e criar algo a partir daí. Eu me identificava com isso e quando falei com o Caetano [Veloso] eu disse que achava que ele ia fazer esse tipo de som. Eu falava que se eles não tivessem sido presos, e sofrido como Caetano e Gil sofreram na prisão, eles iam fazer uma coisa parecida com isso, mas o Caetano falou que não. Enfim, achei que fossem fazer algo que estivesse mais próximo disso, de um pensamento mais dissonante, porque eu trabalhava no universo da dissonância, tanto rítmica quanto melódica.
No caso do temário, você diz que a sua narrativa é teatral, mas havia uma colagem radiofônica e uma colagem de história em quadrinhos, referências que na música brasileira não havia. Por que esses universos estavam nas canções?
A coisa do rádio está presente. É uma referência à forma como os tropicalistas se apropriaram do Vicente Celestino, quando eles falam em Coração Materno e começam a dialogar com esse aspecto da cultura meio piegas, meio brega. A gente também mistura tudo [em Clara Crocodilo], até com programas de crime. Então, a gente se apropriava dessas coisas. Me lembro de ler Notícias Populares de madrugada, no Riviera, e tinha muita coisa dali. Também tinha do Dalton Trevisan: tem coisas dele ali no Acapulco Drive-in, porque o Paulinho era muito fã. Assim como tem dos quadrinhos uma coisa narrativa. Acho difícil falar das minhas peças como canção porque eu não trabalhava com lirismo. A única coisa lírica que a gente tem no Clara é Instante, que é uma música de caráter impressionista, falando da natureza. E ela entrou porque estávamos no período hippie. Eu fiz a música nessa onda, mas é uma coisa impressionista.
Sobre os parceiros do Clara Crocodilo, quais músicos foram importantes, não só no disco, mas na sua carreira?
A Suzana [Salles] e a Vânia [Bastos] já tinham trabalhado comigo no festival da TV Cultura. É tão engraçado que todo mundo fala das vozes agudas, mas a primeira cantora foi uma contralto, a Neuza Pinheiro, que cantou Infortúnio. Depois, no festival da Tupi, a Neuza cantou Sabor de Veneno. Daí, com uma filha pequena em Londrina, ela estava dividida. Neuza ganhou o prêmio de melhor intérprete na TV Tupi. Não era pouca coisa. Só que ela voltou para Londrina. Aí o Robinson Borba veio para São Paulo, para me produzir. Ele era uma pessoa completamente sem experiência, mas com vontade, e arrumou dinheiro para a gente gravar o disco, arrumou lugar para a gente ensaiar, fez um esquema para a banda, e eu já tinha percebido que a Vânia era uma cantora diferenciada, quando tinha feito um trabalho com ela no backing vocal. A gente sabia que ela era uma cantora tipo Cathy Berberian [1925-1983, compositora e meio-soprano americana]. Para a Vânia a dissonância era normal. Então a chamei para ser solista e a Suzana para ser backing vocal, que também era muito boa cenicamente. Depois, na época da gravação do disco, entra a Tetê [Espíndola]. Ela gravou o disco todo, fez o arranjo vocal de Sabor de Veneno. A participação dela é muito forte, tanto que, no final, ela entra na banda. Na banda também tinha um menino que eu tinha conhecido antes, o Chico Guedes. Fui fazer umas aulas numa fundação de música em Higienópolis e eu o conheci lá. Mas foi a Suzana Salles que trouxe o Guedes para tocar. O Bozzo Barreti fazia ECA, o curso de música comigo, ele participou do festival da TV Cultura e ele chamou os metais: o Ubaldo Versolato e o Bocato, que participou do festival da TV Cultura e depois não participou mais. Tinha a Regina Porto, que tinha sido minha parceira no festival da TV Cultura. Fora a base: eu, meu irmão e o Itamar, que sai depois do festival da Tupi, quando ele tinha acabado de fazer Nego Dito, que colocou no festival de música da Vila Madalena e fez muito sucesso. Daí o Bozzo me indicou o Tavinho (Otávio) Fialho, a Vânia chamou o namorado dela, Gi Gibson, que tocava guitarra, a Suzana chamou o namorado e músico, o alemão Félix Wagner (clarinete), e o Chico Guedes trouxe o Mané Silveira. Aí a coisa formou, todo mundo comprou o negócio. O uniforme que a gente usava era do Roney Stela (trombone), um menino de Santo André, de 16 anos: era a fantasia de presidiário do bloco de Carnaval dele e dos amigos. Foi incrível.
Acha que o Clara Crocodilo tinha um pouco de A Guerra dos Mundos, de Orson Welles?
Tinha um pouco, embora eu não conhecesse direito a gravação. A gente tinha dificuldade com materiais na época, mas eu conhecia o pessoal do cinema e eles me contaram o que o Welles fez. Muita gente também achava que eu conhecia o filme O Bandido da Luz Vermelha (1968), mas eu não conhecia. Eu só tinha assistido A Mulher de Todos, do Rogério Sganzerla. Fui assistir O Bandido da Luz Vermelha na moviola com o Rogério, e lembro que achei uma obra-prima. Isso foi quando a gente estava fazendo Nem Tudo É Verdade (1986), e a produção era bem underground, tinha umas cenas que a gente filmou, eu de Orson Welles e a Mariana de Moraes de Carmem Miranda, tudo fantasia alugada, uma dureza, umas taças de champagne, charuto, filmando de noite. Era bem underground mesmo.
Sobre esse lado como ator de cinema, antes de Nem Tudo É Verdade, você já tinha feito outras participações. Em que momento essa faceta surge?
Acho que sou antes de tudo um ator. É algo espontâneo, intuitivo. Sou intuitivamente um ator. Não tenho técnica, mas poderia estudar tranquilamente. Adoro atuar, mas não percebia esse lado na época porque estava envolvido com a música. Tinha feito algumas coisas numa época, em 1969, quando morei em Curitiba. Sofria bullying no hotel onde eu morava. Era um pulgueiro no centro de Curitiba, perto da zona de prostituição. A gente morava num lugar que era um banheiro por andar, 20 pessoas por andar. Na época, eu me interessava por yoga, espiritismo. Tinha um pessoal que fazia bullying e aí decidi pregar uma peça neles. Fizemos uma sessão do copo com algumas pessoas de lá, e nessa sessão fingi uma incorporação que os caras quase pularam da janela. Aí foi minha primeira atuação, antes tinha feito teatro no ginásio.
Sua mãe também teve um papel muito importante ao incentivar você e seu irmão a vivenciar o cenário das artes?
Minha mãe declamava muito bem, e a gente na infância, sem televisão, via minha mãe declamar de forma impressionante. A gente fazia teatrinho em casa também. Tudo classe média para baixa, mas minha mãe sempre interessada em artes e cultura. Se ela visse a Lygia Fagundes Telles na rua, ela ia lá falar o quanto a adorava. Lembro que eu tinha 11 anos e minha mãe lia, em Londrina, Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo. Ela leu Victor Hugo completo e só tinha o primário. Ela lia muitas vezes com um ar de êxtase. Me lembro dela com aquela expressão, lendo Guerra e Paz. E eu quando tentei ler não consegui, achei chato. Ela disse que mais tarde eu iria gostar, que ainda era muito novo pra entender. Ela insistiu para que a gente estudasse música, eu, e o Paulo e meu irmão mais velho, Marcos, que tocava violino. As roupas usadas pela Neuza e pelo Itamar, (aquele macacão dele que o Caetano comenta) no festival da TV Tupi, foi minha mãe quem fez.
Naquele momento, você e Itamar tratavam muito da questão da violência urbana. Como era esse cenário e esse tema na música, algo que não era comum na época?
Primeiro, tinha aquela coisa do Oiticica — “Seja marginal, seja herói” — e a gente identificava isso. O próprio personagem Clara Crocodilo é um homem, uma mulher, o que é? Já há uma transgressão no nome. Então, temos isso aí de ser um monstro. Fizemos um show em Londrina, Boca de Bode, que fez bastante sucesso: foi a primeira vez que a gente tocou Clara, sem narração, só a parte musical e os refrões. O Itamar era meio que o astro do show, e foi quando convivi mais com o Itamar, era o começo de 1973. Teve um dia que o Itamar não apareceu nos ensaios. Ele morava em Arapongas e o ensaio era em Londrina. Todo dia ele ia ensaiar: o Itamar era caxias. Quando ele não veio por alguns dias, os pais dele também não sabiam onde ele estava. O escritor Domingos Pellegrini tinha emprestado para o Itamar um gravador de fita cassete, e quando o Itamar estava esperando o ônibus para ir ao ensaio, a polícia pediu para ele a nota fiscal do gravador. Claro que ele não tinha e foi preso. O Itamar ficou preso por três dias e ia entrar no pau de arara até que um cara que estava lá – o Itamar cantava música sertaneja lá para os caras – saiu e contou para o Domingos que o Itamar estava lá. Outra vez, em São Paulo, num boteco na Teodoro Sampaio, estávamos eu, o Itamar e um amigo travesti, a Betha Pickles, dançando em cima da mesa de um boteco desqualificado, aquele lugar vil, e a dona devia ter uns quartos no fundo. A polícia chegou ali, invocou com a gente. A gente andou umas três horas no camburão, cantando Milagre dos Peixes. No final, soltaram todo mundo. Enfim, coisas que a gente vivenciou e a violência era muito presente. A gente pensava na transgressão criminal como sendo subversiva, contrária ao modelo.
Tempos depois vocês fazem a trilha do filme Cidade Oculta (1986), algo completamente diferente de seus trabalhos anteriores e que tocou bastante na rádio. Como foi para o Arrigo que compôs Clara Crocodilo e Tubarões Voadores fazer essa trilha?
Quando eu fiz o Tubarões, fui procurado por duas gravadoras. Uma pessoa que sempre prestou atenção em mim foi o Marcos Maynard. Desde o festival da TV Cultura, ele estava atrás de mim. Quando voltei da Alemanha, ele conseguiu me levar para a CBS. E eu já queria regravar músicas do Clara, colocar coisas instrumentais no meio. O Marcos me disse que só queria duas músicas para tocar na rádio e o resto eu podia tocar o que quisesse. Aí eu estava com duas músicas na cabeça. Uma era Mente, Mente, que eu gravei com Ney Matogrosso no Cidade Oculta, uma balada do Robinson Borba, lá de Londrina, que eu já cantava no bis em shows e fazia sucesso. A segunda era Pô, Amar É Importante, do Hermelino [Neder], que eu gostava. Aí o Robinson, que era meu produtor, entrou em contato com o [Marcos] Mazzola, pela Ariola, com uma proposta financeiramente melhor que a do Maynard, só que no disco tinha que ser tudo inédito. Então, acabei assinando com a Ariola e tive que produzir músicas que não existiam. O Paulinho da Viola tinha me dado a letra do Crotalus Terríficus, então compus a toque de caixa. Meu irmão, Paulinho, que tinha composto Acapulco Drive-in, tinha uma letra, Neide Manicure Pedicure, que seria uma continuação desse universo, e a gente fez, Bozzo e eu, Papai Não Gostou. Aí quando vou ver a capa do disco, o Luiz Gê me mostra uma história em quadrinhos. Ele e eu sempre falamos em fazer uma história em quadrinhos com trilha sonora. Aí eu falei: “Vou musicar essa história em quadrinhos”. Fizemos uma medição de tempo de leitura dos quadrinhos para escrever a música, colocamos todo o texto da música gravado com vozes minha e da Vânia. Quando você lia o gibi, você ouvia a trilha. E eu sentia falta disso no disco. Tubarões Voadores (1984) ficou um disco eclético.
Como era essa relação de parceria com Itamar Assumpção?
A gente morou junto bastante tempo, tomava café da manhã, passou fome, essas coisas. A gente sempre pensava em fazer um trio, eu, ele e Paulinho para fazer mais coisas. Havia uma ligação diferente, a gente pensava bem parecido em termos de suingue. O Itamar abria os shows da Sabor de Veneno, lembro que ele abriu um show em Curitiba, onde ele conhece Leminski e a Alice [Ruiz]. Daí, gravamos um especial para a TV Globo que nunca foi ao ar. Depois disso a banda Sabor acabou, e o Itamar montou o Isca de Polícia.
Olhando sua geração, a turma da baixo Teodoro Sampaio, você acha que ela conseguiu entregar uma renovação, componentes novos na música? Porque sua geração é seguida pelo rock’n’roll, mas é outra história. O que você acha que veio com vocês?
Quando escutei a Blitz pela primeira vez na rádio, eu achei que era Itamar. Aí vi que não era porque a temática era completamente diferente, mas era muito em cima do Itamar aquilo. Ali já começa. E acho que as pessoas ficaram impactadas. De certa forma, coloco coisas de rap antes do rap, minhas narrativas, como ritmo, coisas que anunciam a crise da canção, acho que tivemos um papel aí com certeza.
Havia uma ideia de que você e sua geração seriam, em algum momento, cooptados pelo mainstream, o que não aconteceu. Isso fez falta?
A gente queria. Eu queria entrar no mainstream e tentei. Tanto que quando fiz Suspeito [1987], fiz Xuxa, Chacrinha, Bolinha, coisas chatas de fazer na televisão, tinha que dialogar com esses caras, tinha que conseguir entrar nisso. Se a gente tivesse feito isso quando a gente começou, o impacto seria outro. Tenho certeza de que uma apresentação com Clara Crocodilo com aquela narrativa radiofônica num Fantástico ou num programa de grande audiência da época teria uma grande repercussão. Seria um escândalo. Ao mesmo tempo que teria muita gente rejeitando, o público ia aumentar demais, haveria um impacto. A gente não teve nenhuma plataforma na mídia eletrônica, a mídia eletrônica não deu espaço para a gente, ao contrário da imprensa. Saiu muita coisa na imprensa e foi espetacular. Então, ficou essa lacuna aí.
A impressão que se tem é que na música “a coisa yuppie” venceu, é isso?
Acho que tem um pouco isso sim. Vejo que fora do mainstream, ainda que tenha algo que caminha ao lado do brega, há um sentimentalismo, sei lá. Sou fã do Reginaldo Rossi, mas o que você vê agora no mainstream são coisas que pegam muito as pessoas. Por outro lado, você vê o pessoal da periferia fazendo outra coisa também muito interessante. Além de grupos de jovens universitários, músicos de formação que buscam fazer um entretenimento de qualidade e na parte técnica estão dando um banho, ainda que a proposta estética seja um pouco indefinida. Para mim não é claro ainda enquanto proposta estética. Acho que talvez a união desse pessoal pode resultar em alguma coisa nova.
Sobre sua leitura do Lupicínio Rodrigues, o que te levou a fazer um show com músicas desse que é um artista da canção?
Sempre pensei em fazer um show cantando Lupicínio e eu já havia cantado em outras ocasiões. Já tinha essa afinidade com Lupicínio. Lembro que quando Itamar fez o Ataulfo [Alves] falei para ele que, se eu fosse fazer, faria Lupicínio. Até que em 2009, eu trabalhava na universidade de música, tinha um rendimento mensal, algo que me ajudava a me manter, mas mudou tudo e eu tinha que me virar para arrumar o dinheiro do dia a dia. Então, eu montei o show cantando Lupicínio porque eu gostava, mas também por necessidade. Adorei fazer e a coisa toda do ator voltou porque é todo um trabalho de atuação no palco. No próprio Caixa de Ódio [show em que homenageia o cantor e compositor Lupicínio Rodrigues], coloco Clara Crocodilo no meio de Nervos de Aço. Algo que vai por aí. Eu gosto tanto de fazer… Para mim é um prazer, uma intensidade de momento. É como se eu estivesse instaurando um tempo de vida (no palco) paralelo ao meu tempo de vida ali.
Assista ao show de Arrigo Barnabé no canal do YouTube do Sesc São Paulo pela programação do #EmCasaComSesc.
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