Todas as línguas de Tom Zé

24/06/2022

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Tom Zé lança Língua Brasileira – álbum em formatos físico e digital – pelo Selo Sesc. Com o mesmo nome do espetáculo teatral que estreou em janeiro de 2022 no Sesc Consolação, o disco firma a parceria entre o músico e o diretor teatral Felipe Hirsch, que também assina a direção artística do álbum. Ele tem ainda produção musical de Daniel Ganjaman e Daniel Maia. Língua brasileira conta com onze faixas e chega às Lojas Sesc, plataformas de streaming e ao Sesc Digital neste dia 24 de junho. Tom Zé celebra o lançamento com dois shows, em 9 e 10 de julho, no Sesc Vila Mariana, às 18h. 

O álbum propõe-se a investigar a língua e a cultura brasileiras, celebrando suas especificidades e riquezas, em contraponto à narrativa colonial e simplificadora de “descoberta” do Brasil e da disseminação da língua portuguesa. Os episódios de massacre e anulação das diferenças nunca conseguiram impedir a mistura do idioma português (ele próprio já fruto de um processo milenar de miscigenação) com a multiplicidade de línguas africanas e indígenas faladas por muito tempo neste território. Sobre o processo de composição e suas inspirações, Tom Zé afirma e destaca a importância de outras culturas para a formação e a construção da língua portuguesa em terras brasileiras:  

“Foram dois anos de trabalho, de domingo a domingo, com Daniel Maia sempre a meu lado, fazendo um esboço imediato de arranjo, que nos permitia calcular o futuro alcance da música. Neusa, algébrica, imediata, direta! E assim chegamos, com leves arranhões, a este disco com gravações inéditas, que passamos aos vossos ouvidos. Nós nos orgulhamos da língua cantabile melodiosa que falamos no Brasil. As averiguações mostram que herdamos isso de uma antiga língua africana e negra: o quimbundo. Falamos, com pouso nas vogais, uma língua quase cantada, em vez daquelas consoantes acentuadas preferidas em Portugal”.    

Língua Brasileira é parte de um projeto ambicioso que contempla, além da criação musical, a pesquisa em linguagem teatral, letras, antropologia e outras disciplinas. Para realizá-lo, Felipe Hirsch e Tom Zé estudaram os primórdios da língua falada no Brasil, com a contribuição de dezenas de acadêmicos e especialistas em idiomas diversos – como o tupi, o kimbundo, o celta e o protoindo-europeu. Eles conduziram a investigação atentos às especificidades brasileiras, no que diz respeito à disseminação da língua portuguesa e suas fusões históricas. Sobre essas contribuições, Hirsch destaca as múltiplas participações: 

“Não acredito na quantidade de gente que reunimos em torno disso. O Eduardo Navarro nos ajudando com o tupi, o Caetano Galindo, o próprio Viveiros de Castro que nos deu informações… Foi muita gente reunida. O Caetano escreveu até um texto sobre isso, uma rede fraterna ajudando um pouco a construir esse trabalho, além de Yeda Pessoa de Castro”.   

A seguir, você confere o texto Tom Zé, a língua brasileira e a língua das línguas de José Miguel Wisnik sobre o álbum e o primeiro episódio do faixa-a-faixa Estudando a Língua Brasileira, em que Tom Zé conta as inspirações por trás de Os Clarins da Coragem, música escolhida como single do novo álbum. 

Tom Zé em arte de André Vallias sobre foto de Fernando Laszlo

Tom Zé, a língua brasileira e a língua das línguas  

José Miguel Wisnik

Não é a primeira vez que Tom Zé compõe um álbum temático, inspirado por uma provocação conceitual e explorando a mina de um mesmo assunto. Estudando o samba (1976), por exemplo, é uma desconstrução amorosa do nosso maior gênero musical. Tropicália lixo lógico (2012) é um álbum ensaístico sobre o movimento polêmico dos anos 1960. Tudo, sempre, com aquela sua verve inconfundível que resiste a qualquer tipo de engessamento. Pois ideias e sonoridades entram numa fricção vivaz de ritmos, células polifônicas, interjeições aliciantes e onomatopeias, levadas no embalo dos motes, dos riffs e dos refrães. Há um fascínio irresistível no fato de que as ideias mais sérias, manejadas por ele, são também brinquedos reveladores e jogos de armar.  

No caso de Língua brasileira, a sequência de canções girando em torno de um mesmo assunto ganha embocadura e amplitude inéditas. É que se trata, além de tudo, de um projeto grupal, em parceria com Felipe Hirsch e o coletivo Ultralíricos, associados a um conjunto respeitável de estudiosos das línguas, voltados todos para o espetáculo teatral que fez temporada marcante no Sesc Consolação, em janeiro-fevereiro de 2022, e no qual se incluíam as canções desse novo disco. 

A noção de língua brasileira mobilizada pelo espetáculo e pelas canções não se reduz à ideia de uma língua única e monolítica falada dentro das fronteiras do país. Ela foi concebida como um magma de línguas em processo de impregnação e de metamorfoses, presentes e remotas, no qual tomam parte o latim culto e o popular, remetendo ao proto indo-europeu, ao proto-celta, aos fluxos e aos influxos do galego-português, do árabe, das línguas indígenas e africanas, potencializadas ao infinito pela multiplicidade dos falares. A língua é o leito de um rio caudaloso e acidentado, cheio de passados, de presentes e de futuros, que se liga ao oceano das línguas. A diversidade das falas desemboca, para usar a imagem de uma das canções, na unimultiplicidade da humanidade, onde cada homem, a cavaleiro das palavras, “é sozinho (…) / na casa da humanidade” (“Unimultiplicidade”).  

A primeira faixa do álbum (“Hy-Brasil terra sem mal”) brinca com a coincidência entre o nome do país e o da misteriosa ilha “Brasil” presente no imaginário medieval celta. Ilha mítica que, segundo reza a lenda, se afastava e se escondia de quem se aproximasse. Numa de suas jogadas arrojadas e engenhosas, além de engraçadas e surpreendentes, Tom Zé aproxima a ilha-Brasil irlandesa do mito da terra sem mal que alimentou o profetismo tupi-guarani e que, ao contrário da vida eterna no céu cristão, prometia um paraíso encontrável na terra – mesmo que uma terra sempre por encontrar. A primeira parte da canção, a que fala do mar gelado da Irlanda, se apoia na célula repetida de um ostinato (palavra que designa um recurso musical frequente em Tom Zé, e que aparece ardilosamente ostentada na sua têmpora, numa foto do encarte do disco). A segunda converte-se no samba de um Hy-Brasil bem batucado que virasse uma utópica “ilha sem fuzil” e sem “bala civil”.    

Em “Pompeia – piche no muro”, Tom Zé faz uma glosa libérrima e exata de um “chique piche” escrito em latim e encontrado num “muro nu” da antiga cidade romana. Pode-se resumir dizendo que, entre o mortal que ama e o mortal que não ama e que quer proibir o amor, entregue-se este último ao carcará e diga-se: “Cega, amassá e some!”.    

A canção-título “Língua brasileira”, que já fazia parte do álbum Imprensa cantada (2003), teve tudo para ser retomada aqui, por razões evidentes. Em meio a um ambiente estilístico de alfaias lusitanas, vinhos e punhais, “mares-algarismos” nunca dantes navegados, “almas e abismos”, a voz que canta dirige-se à língua de Avis, essa “dama oculta e bela”, “visigoda e celta”, que não se furta, enquanto “Babel das línguas em pleno cio”, à África, ao mouro e ao gentio. Ao final, o fado dessa ilustre dama portuguesa se une ao nosso destino equívoco e musical pelas mãos de uma sortista: “A cartomante abre o baralho, / Abismada vê, entre o sim e o não / Nosso destino ou um samba-canção”.  

E assim prossegue essa eletrizante farra poético-musical que junta a plasticidade dos fluxos linguísticos e das trocas antropológicas com a ferroada cáustica dos atritos e dos embates sociais. O mito da gênese cosmogônica guarani (“Gênesis guarani”) dá as mãos ao mito da gênese iorubá, que assume proporções grandiosas e arrebatadoras numa faixa épica de quase dez minutos (“A língua prova que”). Nela, a narrativa ancestral desvela a língua como a melhor e a pior das comidas, o veneno remédio da bendição e da maldição, a ser atravessado por dentro pela fresta e pela festa da sabedoria, num bate-rebate de sílabas.    

“Índio desliga Jaraguá” nos lança nessa cidade-pauliceia capaz de tomar sem volta (mas não sem revolta) a terra do índio, fazendo jus ao sujo apelido que nela gruda, e cujo nome é “cu do Juda”. E “San Pablo, San Pavlov, San Paulandia”, resgata, num palavreado insubmisso e multilinguístico, os trabalhadores nordestinos, paraguaios (entenda-se, também, bolivianos, coreanos, africanos e todos os outros), que suportam o peso da cidade e limpam latrinas – palavra que se transforma afinal num peido vocal vingativo e reparador. “Metro guide”, por sua vez, faz um impagável contraponto entre o ascético pragmatismo norte-americano e o savoir-faire tropical através da lista comparada de telefones de serviço de Nova Iorque e de Irará.  

Não nos percamos de “Clarice”, pequena canção delicada e linda, toda feita de jogos de aliterações e paronomásias (“carece Clarice esclarecer”, “tão solene e tão solar”, “corajoso coração”, “unguentos aguentar”…), fazendo florescer uma língua lunar secreta no “quarto-minguante que míngua”. Nem nos esqueçamos de “Os clarins da coragem”, balanço de um país “que até hoje não há”, que tarda demais, “que elege carrascos, / letais”, mas para o qual Tom Zé ergue uma clarinada augural desejando “que uma geração com ternura / se eduque em firmeza e doçura” nos clarins da coragem.     

Salve esse extraordinário criador! Viva sua energia estimulante capaz de abraçar – sempre! – mundos sem fundo.



Língua Brasileira está disponível nas plataformas de streaming e gratuitamente no Sesc Digital. E também na Loja Sesc

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