Por Desinstitute*
Reforma psiquiátrica e luta antimanicomial: breve histórico
Historicamente, políticas públicas ligadas ao campo da saúde mental no Brasil foram executadas sob a lógica da internação e isolamento de pessoas rotuladas como loucas. Em muitos casos, entre as pessoas internadas estavam pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas, pessoas com deficiência, em situação de rua, pobreza e pessoas discriminadas pelo racismo.
Enquanto a prática de internação forçada era amplamente defendida por grupos com interesses econômicos nesse modelo, o atendimento em hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários resultava em maus tratos, abandono, castigos, medicalização excessiva, isolamento social e, muitas vezes, na morte e no desaparecimento de pacientes.
Há mais de 30 anos, porém, a política nacional de saúde mental passou por transformações guiadas por um processo de reforma psiquiátrica iniciado a partir do surgimento de movimentos sociais antimanicomiais organizados por pessoas com longo histórico de internações, associações de familiares, profissionais da saúde e sindicalistas.
A partir da redemocratização, da Constituição de 1988 e da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), surgiram as primeiras demonstrações práticas do que propunham as pessoas defensoras da reforma psiquiátrica no Brasil. Naquele período, foram implementados em São Paulo e Santos os primeiros Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS e NAPS).
Essas primeiras experiências regionais bem-sucedidas inspiraram, no final dos anos 80, a formulação da Lei nº 10.216/01 ou “Lei da Reforma Psiquiátrica”. Em vigor desde 2001, a legislação estabeleceu novas direções para políticas de saúde mental, orientadas pelo respeito aos direitos das pessoas com transtornos mentais e em sofrimento psíquico.
A aprovação da lei previa o fechamento gradual dos manicômios no país. Os estabelecimentos deviam ser substituídos progressivamente por uma rede de serviços comunitários multidisciplinares, que previam atendimentos em liberdade nas áreas da saúde, moradia, cultura, lazer e geração de renda.
Diferente do que muitos acreditam, os manicômios não ficaram no passado. Isso porque, ainda hoje, é longa a lista de graves violações aos direitos humanos cometidas em instituições de privação de liberdade que, assim como antigamente, retiram do convívio social pessoas que não se enquadram em padrões morais de “normalidade”.
No contexto atual, em prejuízo dos serviços comunitários do SUS, hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas (CTs) voltaram a ser incluídos como serviços públicos. O governo federal, nos últimos anos, tem priorizado as comunidades terapêuticas para o “tratamento” a pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas. O aumento nos repasses às CTs é evidenciado por dados: o Ministério da Cidadania investiu R$ 153,7 milhões, em 2019, e quase o dobro, R$ 300 milhões, em 2020.
No último Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, lançado em 2019 pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) em conjunto com outros órgãos federais, constam relatos que comprovam práticas de trabalho forçado, castigos, maus tratos, abusos sexuais e condições insalubres dentro da maioria das CTs inspecionadas.
Segundo o Painel Saúde Mental: 20 anos da Lei 10.216/01, lançado pelo Desinstitute em 2021, o principal programa de avaliação dos hospitais psiquiátricos financiados pelo poder público, o PNASH/Psiquiatria, está suspenso desde 2014. No entanto, em 2017, o Ministério da Saúde aumentou em 60% o financiamento para internações nessas instituições.
Dados da última inspeção nacional em hospitais psiquiátricos, coordenada em 2018 pelo MNPCT e outros órgãos de controle, mostram que ao menos 42% das instituições ofereciam alimentação inapropriada. Em 77% dos locais, foi identificado o uso injustificado e recorrente de instrumentos para impedir o movimento físico de pacientes.
Diante da história e dos fatos atuais, é urgente a conscientização social sobre a razão de ser da luta antimanicomial, para que lógicas e práticas violadoras de direitos humanos sejam superadas, enquanto o respeito à diversidade, o cuidado em liberdade e a dignidade humana sejam defendidos e entendidos pela sociedade como deveres do Estado.
Por uma vida mais louca – democracia e luta antimanicomial
O projeto Por uma vida mais louca – democracia e luta antimanicomial, desenvolvido pelo Sesc SP em parceria com o Desinstitute, promoverá ao longo dos próximos cinco meses – de 18 de maio (Dia da Luta Antimanicomial) até 10 de outubro (Dia Mundial da Saúde Mental) – aulas abertas, bate-papos, apresentações teatrais e musicais, espetáculos e jogos. São apresentações que buscam proporcionar acesso, para o público mais amplo, aos conhecimentos políticos, sociais, éticos e estéticos produzidos pelo movimento antimanicomial nas últimas quatro décadas.
Entre os espetáculos organizados, há a iniciativa de fundir atividades de cunho pedagógico e entretenimento de apurado valor estético-cultural. Ao democratizar o acesso a esses saberes, expressões e memórias produzidos por aquelas pessoas que lutaram e lutam por uma humanidade sem manicômios, o projeto contribui para colocar na ordem do dia a necessidade de se preservar as conquistas e se avançar na construção de um Brasil livre dos manicômios, sejam aqueles que reinam entre muros, ou os que se apossam de mentes e corpos.
A divisão rígida entre loucura e normalidade não convive bem com a vida em toda a sua riqueza de expressões em constante estado de transformação. Todas as pessoas precisam ser livres para enlouquecer e desejar, e, caso sintam necessidade diante de algum sofrimento, devem ter acesso e direito plenos a políticas públicas e gratuitas de cuidado e acolhimento em liberdade no Brasil.
CONFIRA A PROGRAMAÇÃO COMPLETA DO PROJETO AQUI
*O Desinstitute é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, que atua pela garantia dos direitos humanos e pelo cuidado em liberdade no campo da saúde mental, no Brasil e na América Latina. Fundado em 2020, nasce da organização de pessoas com trajetórias distintas na Saúde e no Sistema de Justiça, que se uniram para formar uma organização orientada pelos princípios da luta antimanicomial.Dedicado à defesa do SUS e do Estado Democrático de Direito, o Desinstitute tem como objetivo central atuar sobre políticas públicas e garantir a liberdade e a dignidade das pessoas em sofrimento psíquico, com deficiência e necessidades de cuidado devido ao uso abusivo de álcool e outras drogas.
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