“Viver até o fim o que me cabe!” – Sidney Amaral: Uma Aproximação”, no Sesc Jundiaí
Por Claudinei Roberto da Silva*
O escritor Lima Barreto é o digno representante da literatura participativa e solidária; foi um ríspido crítico dos poderosos e daqueles que os adulam, sensível ao drama dos vulneráveis; taciturno e meditativo e, à sua maneira, foi também um feminista. Durante sua curta existência pugnou por justiça e pela igualdade dos gêneros, advogou contra a burocracia e o bacharelismo soberbo e inútil – tão caracteristicamente nosso –, sucumbiu sob o peso da indiferença e do racismo que também combateu numa sociedade recém-saída da escravidão. Nasceu num 13 de maio em 1881 e faleceu em 1922 quando, em São Paulo, celebrava-se o Modernismo. Lima escreveu, em 1918, quatro anos antes de sua morte, um breve texto intitulado “Elogio da morte”, em que se percebe o cansaço e a desesperança que o abatia. Sua indignação, presente em todo o texto, está pontuada em sentenças como esta: “É inútil estar vivendo para sermos dependentes dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos. A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro”.
O desaparecimento físico de Lima Barreto poderia coincidir com a extinção de sua obra, mas, pelo contrário, gerou sua póstuma consagração, uma justa e paulatina revisão do seu trabalho. Isso dependeu de vários elementos articulados num cenário complexo do qual fazem parte a cultura, sistemas de ensino – incluídos aí os museus –, ordens políticas e sociais e cremos que, principalmente, o avanço das lutas empreendidas pelos direitos civis das negras e dos negros brasileiros.
Treze anos após a morte do autor de “Isaías Caminha” e “Policarpo Quaresma”, outro notável afro-brasileiro pronunciava estas palavras que permanecem tristemente atuais: “Nós não estamos ainda convencidos de que a cultura vale como pão. E é essa nossa mais dolorosa imoralidade cultural”. Elas estavam contidas na “Oração de Paraninfo” dirigida aos formandos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo em 1935. Quem as pronunciou foi Mário de Andrade, ele mesmo, o polímata autor de “Macunaíma”.
No Rio de Janeiro, em dois de setembro de 2018, 83 anos depois de enunciada a sentença de Mário, um curto-circuito deu início a um incêndio que destruiu 90% do acervo do Museu Nacional, quando milhões de itens de uma coleção inestimável e laboriosamente constituída deixaram de existir confirmando o prognóstico do poeta.
A Recomendação Referente à Proteção e Promoção dos Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade, aprovada em 17 de novembro de 2015 pela Conferência Geral da UNESCO, em sua 38ª sessão, determina no 17º parágrafo do capítulo dedicado à “Função Social” do museu, que: “Museus são espaços públicos vitais que devem abordar o conjunto da sociedade e podem, portanto, desempenhar um importante papel no desenvolvimento de laços sociais e de coesão social, na construção da cidadania e na reflexão sobre identidades coletivas. Os museus devem ser lugares abertos a todos e comprometidos com o acesso físico e o acesso à cultura para todos, incluindo os grupos vulneráveis. Eles podem constituir espaços para a reflexão e o debate sobre temas históricos, sociais, culturais e científicos. Os museus também devem promover o respeito aos direitos humanos e à igualdade de gênero. Os Estados-membros devem encorajar os museus a cumprir todos esses papéis”.
No Brasil, alguns museus, como o Afro Brasil criado em 2004, foram pioneiros ao antecipar a aplicação das medidas previstas nas cláusulas dessa Recomendação; entretanto, isso não garantiu a eles o apoio mais decidido do Estado, já que eles salvaguardam a história e a memória da sociedade, incluindo aí a dos grupos vulneráveis, excluídos e divergentes, raramente alinhados àqueles que detêm o poder econômico e político.
Dos itens irremediavelmente arruinados pelo fogo no Museu Nacional constavam artefatos que compunham o patrimônio universal da humanidade, itens a partir dos quais seria possível rememorar a história de um grupo social ou de todo um povo. A comoção causada pela ruína dessa coleção teve consequência apenas retórica, insuficiente para mobilizar as autoridades responsáveis que, pelo contrário, pouco depois da catástrofe propuseram o contingenciamento de verbas públicas destinadas às instituições federais de ensino superior. Há setores da sociedade cúmplices desse descaso, dessa violência, mas também existem aquelas instituições que, geridas de modo sensível, vêm socorrendo patrimônios ameaçados dando-lhes guarida por meio de ações que vão desde aquisições e projetos de comodato a exposições e o trabalho de mediação feito por pesquisadores e educadores que mitigam o desconhecimento e o preconceito do público em relação a essas produções.
“Viver até o fim o que me cabe!” – Sidney Amaral: Uma Aproximação”, no Sesc Jundiaí | Crédito: Luciano Domingos [e, acima, Fabio Correa]
A exposição póstuma da obra de um artista pode dar ensejo a vários tipos de narrativas. “Viver até o fim o que me cabe!” – Sidney Amaral: Uma Aproximação, exposição realizada pelo Sesc na sua unidade de Jundiaí, celebra a arte e promove a memória do artista Sidney Amaral e dá também um fundamental suporte à manutenção desse patrimônio reminiscente. O artista recentemente falecido está presente também na exposição coletiva PretAtitude promovida pelo mesmo Sesc, e, além disso, ele teve trabalhos adquiridos para compor o acervo da instituição. Na coletiva PretAtitude: Emergências, Insurgências e Afirmações – Arte Afro-Brasileira Contemporânea ele tem a companhia de 16 outros nomes. Esta exposição, que percorreu as unidades de Ribeirão Preto, São Carlos, Vila Mariana e Santos, estreou no ano passado no Sesc de São José do Rio Preto. O compromisso dessa instituição não garante “apenas” visibilidade aos artistas participantes das mostras que realiza, mas, e isso é importante, avaliza a certeza do digno encontro dos artistas com um grande público, encontro mediado por educadores e pesquisadores especialmente preparados para isso o que, como dissemos, diminui ou elimina o preconceito que está lastreado na ignorância em torno dessa produção e de seus autores.
Tolhidos ao isolamento e acuados pela pandemia, a maioria de nós não se deu conta de que no dia 30 de julho morria, em Belo Horizonte, o mestre Maurino de Araújo, extraordinário artista preto brasileiro. O demiurgo escultor foi continuador de uma inconfundível tradição barroca e expressionista que, aliás, continua solicitando mais da nossa atenção e estudo. Maurino participava do numeroso grupo dos socialmente vulneráveis e politicamente divergentes. Homem de sensibilidade invulgar foi agricultor, pedreiro, seminarista, pintor e poeta, mas, sobretudo, foi um escultor que lia na madeira a sua vocação. Ele, que buscou na dança que improvisava nas ruas de Minas Gerais o remédio para a depressão que o acometeu, merecia muito mais atenção e cuidados do que aqueles que recebeu durante sua vida e morte. Foi vítima da Covid-19 associada a comorbidades.
Durante essa crise sanitária os trabalhadores da cultura foram – quando foram – os mais tardiamente socorridos pelo auxílio emergencial instituído; os trabalhadores da área enfrentaram, como outros, uma burocracia que, a pretexto de dificultar fraudes, interditou a eles acesso à ajuda vital à manutenção de suas vidas; vidas que dão origem a acervos, que movimentam os circuitos de arte que, como os artistas, também podem ser extintos.
PretAtitude: Emergências, Insurgências e Afirmações – Arte Afro-Brasileira Contemporânea, no Sesc Rio Preto | Crédito: Anderson Carvalho
Wagner Celestino, um dos participantes da exposição PretAtitude, é um decano fotógrafo nascido na zona leste da capital de São Paulo. Ele participa daquela tradição que nos legou a excelência de Walter Firmo e Adenor Godim. Em comum com estes mestres, a fotografia de Celestino tem o duplo caráter jornalístico e poético, retrata os personagens anônimos ou célebres muito mais do que sua mera aparência. O artista dedicou parte do seu trabalho e pesquisa ao registro dos cortiços do centro de São Paulo e da Velha Guarda do Samba da mesma cidade. É um resgate o que as fotos promovem, mas um resgate que denuncia patrimônios materiais e imateriais hoje tão ameaçados quanto nossa Cinemateca Nacional e nisso reside um terrível paralelo e uma “dolorosa imoralidade cultural”.
A preservação dos patrimônios artísticos e de seus autores solicita estratégias que devem ocupar a atenção de artistas e dos seus próximos, de curadores, diretores de instituições museais, galeristas, programadores culturais e colecionadores, mas deve, sobretudo, respaldar-se na vontade da sociedade, unicamente sensibilizada pela ação que somente a educação logra promover.
O progressivo empoderamento dos grupos socialmente vulneráveis e historicamente excluídos é resultado da luta que eles empreendem. Foi assim na luta pela abolição da escravidão, é hoje pela inclusão da produção simbólica desse grupo em espaços de prestígio da cultura e da arte. As pautas de algumas instituições sensíveis a esse avanço também acompanham esse progresso oferecendo uma chance maior de permanência e sobrevida a obras que são vitais ao aperfeiçoamento da sociedade onde elas nascem e são acolhidas.
*Claudinei Roberto da Silva é artista visual, curador e professor, graduado em Educação Artística pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Foi curador da 13ª edição da Bienal Naïfs do Brasil (2016), no Sesc Piracicaba, ao lado de Clarissa Diniz e Sandra Leibovici; e da mostra PretAtitude: Emergências, Insurgências e Afirmações – Arte Afro-Brasileira Contemporânea (2018-2021), que passou por diversas unidades do Sesc São Paulo; e da exposição “Viver até o fim o que me cabe!” – Sidney Amaral: Uma Aproximação, visitável no Sesc Jundiaí até setembro de 2021.
Este texto foi escrito em outubro de 2020.
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