MULHERES INDÍGENAS NA LITERATURA | Artigos de Julie Dorrico e Paolla Vilela

30/04/2022

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 Leia a edição de maio/22 da Revista E na íntegra 

Ilustrações: Luyse Costa

A oralidade é matriz de grande parte das histórias gravadas em livros. É ela que preserva, ao longo de gerações e em diferentes culturas, conhecimentos e perspectivas sobre o indivíduo e sua inserção na comunidade que habita. Entre os povos originários do Brasil, a oralidade se faz presente na escrita de mulheres indígenas que vêm abrindo espaço na literatura, principalmente, nas últimas três décadas. “A autoria indígena emerge do corpo do sujeito indígena para afirmar a identidade de povo – e tudo o que lhe envolve – no livro editorial, sem deixar de reconhecer a dinâmica ancestral de nossos antepassados que cultivaram (e cultivam) nossas culturas na oralidade”, explica a escritora Julie Dorrico, do povo Macuxi, administradora do perfil no Instagram Leia Mulheres Indígenas e curadora da I Mostra de Literatura Indígena, no Museu do Índio, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). No entanto, ainda são muitos os desafios para divulgação e reconhecimento dessas autoras. Para a professora e arte-educadora Paolla Andrade Vilela, do povo Puri, especializada em Cultura e História dos Povos Indígenas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), “ampliar essa vertente literária mostra uma variação muito importante nas temáticas abordadas nas obras, sendo registros da cultura, lutas do movimento indígena, questões pontuais de existência, resistência, demarcações territoriais literárias, cosmovisões, registros linguísticos.” Em agosto de 2021, Dorrico e Vilela participaram do projeto Leia Autoras Indígenas, websérie de 10 episódios realizada pelo Sesc Ipiranga, que busca incentivar a leitura de obras indígenas e contribuir para a descolonização do imaginário carregado de estereótipos e estigmas. Neste Em Pauta, ambas retomam reflexões levantadas no projeto e compartilham conquistas e desafios dessa cena literária.

A Literatura Indígena Contemporânea: as mulheres originárias

Por Julie Dorrico (Macuxi)

A Literatura Indígena Contemporânea é um movimento político e estético que surgiu na década de 1990 no Brasil, mas também em outros países de Abya Yala. Peço licença tanto para entrar na terra das letras quanto para explicar o conceito de Abya Yala em nível continental. Se os colonizadores se apropriaram de nossos territórios e renomearam conforme seus heróis europeus, impondo-lhe o nome de América, os povos indígenas erguem-se coletivamente desde a década de 1980 para reaver o nome, para a “descolonização epistêmica e o estabelecimento de nossas soberanias ou autonomias indígenas”, como enseja o parente do povo Maya Kiché, Emil’ Keme, em seu artigo Para que Abya Yala viva, as Américas devem morrer, publicado na revista Native American and Indigenous Studies, em 2018.

Esse movimento literário surgiu de forma tímida, lutando contra as forças opressoras que buscavam extinguir as identidades indígenas no Brasil, bem como as de outros povos de Abya Yala. A autoria indígena emerge do corpo do sujeito indígena para afirmar a identidade de povo – e tudo o que lhe envolve – no livro editorial, sem deixar de reconhecer a dinâmica ancestral de nossos antepassados que cultivaram (e cultivam) nossas culturas na oralidade.

Eu tenho memórias vívidas da força das mulheres indígenas da minha família, da minha bisavó, Clarinda Raymond, e de minha mãe, Felícia Julia Dorrico, e de minhas tias. Com elas aprendi que ser macuxi é um modo de vida, é um sentimento que exala no ser, é um pertencimento à terra e uma forte conexão com a família. A literatura indígena contemporânea protagoniza esses corpos indígenas que vêm com a memória da terra para ressoar as vozes da floresta e dos povos que habitam esses territórios antes do Brasil instaurar-se e impor-se como Estado-nação. Congregando homens, mulheres e LGBTQIA+, a literatura indígena anuncia a autodeterminação, os povos originários, e a luta pela terra, uma luta antiga, para todos os coletivos, o que tem angariado leitores e parceiros interessados no tema.

TERRA DE NARRATIVAS

Divulgar a literatura das mulheres indígenas é um objetivo do nosso coletivo Leia Mulheres Indígenas (@leiamulheresindigenas). Gostaria de fazer um breve percurso da força das mulheres nativas que se empenharam em lutar contra a representação nacional e única que marginalizava os corpos indígenas da literatura brasileira, implicando também na marginalização de nossos direitos políticos. Com isso, argumento que suas lutas foram fundamentais para a inscrição da presença de corpos femininos e lésbicos na terra da literatura.

Eliane Potiguara, como o próprio nome anuncia, pertence ao povo Potiguara. É poeta, escritora, palestrante e ativista dos direitos indígenas. Desde a década de 1970, enuncia poemas de resistência e de ancestralidade. Porém, só publicou o seu primeiro livro autoral no mercado editorial em 2004, Metade cara, metade máscara (Global). Nele podemos ver o grito sufocado da mulher indígena que quer existir, sobreviver e mais: cultivar sua subjetividade. Compartilho aqui o verso do poema Brasil: “Que faço com a minha cara de índia? E meus cabelos/ E minhas rugas/ E minha história/ E meus segredos?/ Brasil, o que faço com a minha cara de índia?/ Não sou violência/ Ou estupro/ Eu sou história/ Eu sou cunhã/ Barriga brasileira/ Ventre sagrado/ Povo brasileiro”. Os versos exortam o direito de existir do eu-lírico indígena sem ser reduzido à violência perpetrada pela colonização em curso. A poeta anuncia que somos mais, somos história, mulheres, mães, e mães de muitos cidadãos brasileiros. Por que ainda não podemos existir neste país e viver livremente? São ainda perguntas que este poema sussurra para mim.

Graça Graúna é escritora, poeta e pesquisadora de literatura indígena. Em 1999, publicou a obra Canto mestizo, mas por viver na cidade e não em uma comunidade rural, ela era vista como uma mulher não-indígena. Para lutar contra a negação da identidade indígena na cidade defendeu a sua tese, que virou livro, em 2013, afirmando que os sujeitos indígenas que viviam em contexto urbano eram negados como produtores de conhecimento, como escritores. A obra Contrapontos da Literatura Indígena Contemporânea no Brasil (Mazza) é uma referência de grande valor para nós escritores indígenas.

Auritha Tabajara, como o nome também já antecipa, pertence ao povo Tabajara. É escritora, cordelista, poeta, contadora de histórias, palestrante e ativista dos direitos indígenas e LGBTQIA+. Em sua obra Coração na aldeia, pés no mundo (Uk’a Editorial) publicado em 2018, ela anuncia em verso que ama mulheres, conforme veremos a seguir: “Auritha tinha um segredo/ Que não podia contar/ Somente para sua avó/ Se encorajou a falar/ Não gostava de meninos/ E não sabia lidar”. Auritha inaugura na literatura indígena a luta também pelos direitos da mulher indígena e lésbica. Importante destacar que desde então, houve uma organização de coletivos que se empenharam em debater formas de relacionamento que vão além das normativas e opressoras, e que tais debates são acompanhadas pela autora que participa de coletivos e discute sobre o gênero em suas ações sociais, tornando-se uma importante defensora dos direitos LGBTQIA+ no nosso contexto.

MUITAS E MAIS

No Brasil, já são cerca de 40 autoras indígenas. Esse número expõe o crescimento de escritoras que buscam afirmar suas identidades de povos. Escrevendo contos e poesias, as autoras falam do pertencimento, da luta pela terra, da identidade indígena; celebram a ancestralidade originária e ensejam a luta política que nossos corpos não podem escapar. Débora Arruda (Aranã), Lúcia Tucuju (Kamarumã), Eliane Xunakalo (Kurâ-Bakairi), Helena Indiara Ferreira Corezomae (Umutina-Balatiponé), Gleycielli Nonato (Guató) são algumas autoras que podemos citar, que tivemos conhecimento recentemente de suas obras recém-publicadas ou de suas existências.

Destaco que a literatura indígena tem sido um caminho para nossos encontros, pois no Brasil, estima-se que somos 305 povos, falantes de 274 línguas originárias. A literatura indígena contemporânea é um território que demarcamos com nossas histórias ouvidas ao redor da fogueira, ou que sentimos na pele; ainda aquelas que sonhamos e que podem adiar o fim do mundo. Autobiografia, memória, ficção… Independentemente do projeto ao qual nos empenhamos, queremos coletivamente afirmar que somos mulheres indígenas, escritoras, autoras e que, sim, fazemos literatura.  

“A literatura indígena contemporânea é um território que demarcamos com nossas histórias ouvidas ao redor da fogueira, ou que sentimos na pele; ou que podem adiar o fim do mundo”

JULIE DORRICO pertence ao povo Macuxi. Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestre em Estudos Literários. É poeta, escritora, palestrante, pesquisadora de literatura indígena e ficou em 1º lugar no concurso Tamoios/FNLIJ/UKA de Novos Escritores Indígenas em 2019, autora da obra Eu sou macuxi e outras histórias (Caos e Letras, 2019). Administradora do perfil Leia Mulheres Indígenas no Instagram; curadora da I Mostra de Literatura Indígena no Museu do Índio na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Autoras indígenas e o mundo literário

Por Paolla Vilela (Puri)

Toda vez que falamos ou citamos obras indígenas encontramos um equívoco relacionado ao entendimento do que seria a categoria Literatura Indígena e qual o seu papel dentro da sociedade literária. No entanto, destaca-se a máxima para a definição do que se concretiza como literatura especificamente indígena, como aquela produzida pelos sujeitos indígenas. Sendo educadora na rede pública, percebo que os livros de autoras indígenas são menos comuns do que gostaríamos, no âmbito representativo e interativo com a história do nosso país, embora a Lei 11.645 de forma clara garanta/obrigue o trabalho, em todas as vertentes educacionais, histórica e culturalmente, dos povos indígenas no território nacional. A percepção na alegação do desconhecimento ou não acesso a materiais que contemplem essas temáticas têm estimulado a apresentação de várias frentes dentro do movimento indígena, as quais contribuem para a divulgação, valorização e formação relacionadas à literatura indígena e todo o seu entendimento dentro da cultura.

A partir desse viés, o recorte de autoria e protagonismo das mulheres nesse mundo literário é destaque em trabalhos que fazem parte desse movimento para divulgar e impulsionar a leitura e a escrita da literatura indígena, como a página Leia Mulheres Indígenas (@leiamulheresindigenas), que faz um trabalho de curadoria e apoio às autoras indígenas de todo o Brasil. Assim, nascem projetos desses encontros como Leia Autoras Indígenas em parceria com o Sesc Ipiranga, no qual, a princípio, foram apresentadas oitos autoras e duas oradoras em seus episódios, criando material de apoio não só para o meio educacional, como também para toda a população interessada, com possibilidade de potencializar as vozes diversas que estão presentes em guerreiras de todos os povos que se encontram no território nacional.

A importância dessas vozes e a representação das mulheres em todas as camadas sociais, e dentro principalmente dos movimentos indígenas, são cruciais para uma identificação consciente das injustiças e violências que sofrem e sofreram ao longo de todos os processos de colonização, imposição e não respeito aos seus corpos e suas ancestralidades. Reconhecendo, assim, as lutas já há muito feitas por Eliane Potiguara, Graça Graúna, Telma Taurepang, Márcia Wayna Kambeba e tantas outras que citamos e as quais apoiamos em suas trajetórias.

DEMARCAÇÕES TERRITORIAIS LITERÁRIAS

Podemos trilhar uma perspectiva mais ilustrativa quando pegamos o mercado editorial e todo o caminho feito pelo direito de existir e ser incluído na sociedade dos povos originários. Nesse sentido, Julie Dorrico tem feito um trabalho ativo em redes sociais, no meio acadêmico, em organizações de livros, materiais e pontes para pensarmos na história de colonização e no percurso que a literatura indígena teve de percorrer para alcançar o respeito em relação à autoria individual e à coletiva em seus contextos e disponibilidades iniciais até os formatos mais atuais.

As narrativas e autorias das mulheres são um movimento legítimo construído pela caminhada da já citada Eliane Potiguara, que está presente nas lutas e discussões anteriores à Constituição de 1988, marco em que os indígenas são apontados pela primeira vez como cidadãos do Brasil. Também está em Graça Graúna, em seu olhar acadêmico e produções de poemas e textos, abrindo nossa visão para uma discussão mais voltada a essas noções de publicação, de modo a reivindicar um lugar de reflexão sobre a importância e a valorização das mulheres.

Desse modo, o ampliar dessa vertente literária mostra uma variação muito importante nas temáticas abordadas nas obras, sendo registros da cultura, lutas do movimento indígena, questões pontuais de existência, resistência, demarcações territoriais literárias (que provoco nessa linha de pensamento), cosmovisões, registros linguísticos. Ou seja, os elementos que são naturais e entendidos de acordo com cada povo, cada etnia pertencente às autoras.

São processos de crescimento, entendimento e fortalecimentos por serem pessoas da natureza, pertencentes a uma nação, identidade e que trazem a força de todas as suas ancestrais. Logo, é um momento de reconhecimento de suas potências, suas forças e, principalmente, de modificação de olhar para retirar as mazelas ligadas a seus corpos, a sua desvalorização como mulheres e a seus papéis sociais.

ESCRITAS PLURAIS

Esse movimento de diálogo se destaca devida à proporção esmagadora de narrativas ao longo da história literária constituída a partir desse viés ocidental, que tem o ponto de partida na invasão do Brasil e indica escritos portugueses como as primeiras manifestações nacionais, ou outros escritores que são reconhecidos pela mecânica do que se chama signos, formas de representação da comunicação escrita. Desse modo, é ignorado todo o percurso das nações pertencentes a esse território e suas formas de comunicação, sendo através da oralidade, grafismos, artesanatos, pinturas rupestres ou outros nomes que vão classificar as várias formas de existir nesse processo da vida.

Por isso, a manifestação da literatura em suas várias maneiras de fixar existência se torna um estímulo para as autoras, uma fonte de fluidez dos pensamentos, falando com suas comunidades e fora delas. Assim, garante, de certo modo, as diversidades dos povos em seus pensamentos expostos, conjuntamente às características que fazem parte desse conjunto de formas da identidade, cultura e história. Além disso, a palavra, os livros, o existir nesse tempo, demarca as diferenças linguísticas que são tão pertinentes nos seus significados, permitindo abrir o olhar para essa comunicação que não é menor em sua importância, mas cujo processo de registro múltiplo mostra-se necessário para a garantia de sua existência além do formato ocidental.

Nesse viés, portanto, destacam-se como autoras que refletem sobre muitos desses processos, Graça Graúna, Linda Tuhiwai Smith, Julie Dorrico e tantas outras que nos provocam esse movimento de quebrar as classificações. Descolonizar pode ser um processo diversificado e a escrita das mulheres indígenas garante o seio da resistência, as quais são carregadas em seus corpos, em seus escritos, em seus olhares, alegrias e dores de ser essa infinidade de formas. São nossas mães que sussurram em nossos ouvidos quando foi proibido ou vergonhoso falar sobre nossa ancestralidade. É no encontro de todas nós que a vida literária se dá, se fortalece, se permite ser tantas, validando todos os modos de ser.

“A manifestação da literatura em suas várias maneiras de fixar existência se torna um estímulo para as autoras, uma fonte de fluidez dos pensamentos, falando com suas comunidades e fora delas”

PAOLLA ANDRADE VILELA é Puri, professora, arte-educadora, mestranda em Artes Cênicas, especializada em Cultura e História dos Povos Indígenas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e em Educação Ambiental pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Atualmente, cursa licenciatura em Teatro na Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ).

*Confira a websérie Leia Autoras Indígenas, composta por 10 episódios com a participação de mulheres indígenas de diferentes povos ligadas à literatura. Dentre elas, oito escritoras e duas oradoras reforçam o papel da oralidade nas culturas tradicionais e sua importância na constituição da literatura indígena. Assista no canal do YouTube do Sesc Ipiranga: www.youtube.com/sescipirangasp.

A EDIÇÃO DE MAIO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, refletimos sobre o retorno da atividade turística a partir de novos mapas que fomentam a economia local e valorizam a diversidade cultural de uma região. Ao repensar o turismo, convidamos você a dobrar a esquina, descobrir outras narrativas e visitar novos universos dentro da sua própria cidade. Aproveite para conferir as novidades do processo de retomada dos roteiros do Turismo Social do Sesc São Paulo.

Além disso, a Revista E traz outros destaques em maio: uma reportagem que defende a importância do livre brincar como ação essencial para o desenvolvimento das crianças; um papo com a atriz e performer Denise Stoklos sobre processo criativo, velhice e família; um passeio visual pelos figurinos do CPT_SESC, centro teatral criado por Antunes Filho no Sesc Consolação; um depoimento com Sebastião Salgado sobre sua imersão na floresta, o que gerou a exposição Amazônia, no Sesc Pompeia; um perfil de Maria Firmina dos Reis, fundadora da literatura abolicionista no Brasil; um encontro com Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta e uma das principais vozes do empreendedorismo negro no país; um roteiro por espaços e projetos que praticam o acolhimento materno na capital paulista; o conto inédito As Substitutas, do escritor João Anzanello Carrascoza; e dois artigos que abordam conquistas e desafios da presença das mulheres indígenas na literatura.

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