Foto: Matheus José Maria
Por Nilza Iraci – GELEDES*
A visão crítica das organizações feministas e do movimento de mulheres e sua capacidade de fazer propostas foram fundamentais para que os governos firmassem compromissos e instrumentalizassem políticas, programas e ações voltadas para a erradicação das desigualdades e assimetrias entre homens e mulheres. Entretanto, ao não reconhecerem o racismo como elemento histórico estruturante das desigualdades na sociedade brasileira, esses avanços não foram capazes de diminuir as desigualdades entre uma grande parcela da população. Estamos falando de 49 milhões de mulheres negras, que representam 25,5% da população do país, que permanecem à margem dessas políticas e representam a vulnerabilidade social.
Ao utilizarmos a insígnia “nossos passos vêm de longe”, falamos de uma longa caminhada de mulheres negras que fizeram de suas vidas exemplo de luta e de resistência e que pavimentaram os caminhos para que o movimento de mulheres negras contemporâneo fosse considerado o que mais cresceu na última década.
E são muitas as que deixaram de alguma forma a marca de seus pés nessa estrada; algumas famosas e outras nem tanto – não vamos citar exemplos para não cometermos injustiças com aquelas que foram líderes, mas que permanecem anônimas. São essas mulheres negras que possibilitaram que outras mulheres negras pudessem se tornar advogadas, sociólogas, escritoras, professoras, universitárias, parlamentares, juízas e ocupassem, mesmo que de maneira ainda incipiente, o lugar que lhes tem sido negado pela sociedade racista e patriarcal.
Foram essas mulheres negras, jovens e ousadas que, há mais de três décadas à frente de seu tempo, criaram organizações específicas de mulheres negras, como o Nzinga Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, o Instituto Geledés – Instituto de Mulheres Negras, o Criola, o Cedenpa e tantas outras, inaugurando a tão hoje festejada interseccionalidade e desafinando o coro dos contentes. Nossos passos, de fato, vêm de longe!
Essas mulheres negras trouxeram para o cenário nacional a força de sua ancestralidade e sabiam que sem luta e vigilância nenhum de seus direitos seriam assegurados por qualquer outro movimento social, lutando dentro e fora de movimentos sociais para que suas vozes fossem ouvidas e reconhecidas.
Nesse sentido, a Marcha das Mulheres Negras de 2015, que levou à Brasília cerca de 50 mil mulheres de diferentes regiões do país, é um ponto de inflexão para a sociedade brasileira, principalmente ao fazer emergir e trazer para o cenário nacional movimentos que se encontravam isolados em seus territórios, em suas especificidades e que passaram a se reconhecer cada vez mais como uma grande comunidade de destino. Não à toa, o que melhor define o movimento de mulheres negras hoje é a pluralidade de vozes representadas. E nele cabem todas as mulheres negras: as cisgêneras e as trans; as héteras, as lésbicas e as bis; as organizadas e as autônomas; as jovens e adultas, as religiosas e as ateias, as do campo e as da cidade.
A marcha também teve impacto nas jovens negras, que vêm intensificando suas mobilizações nos últimos anos. Um dos resultados se traduziu na organização do II Encontro de Jovens Negras Feministas que reuniu, no interior do estado de São Paulo, cerca de 400 mulheres negras, que enfrentam muitos desafios além das questões intergeracionais. Segundo uma das organizadoras desse encontro, “elaborar estratégias de atuação capazes de promover o bem viver da população negra no contexto pós Marcha das Mulheres Negras, a partir do diálogo entre lideranças do Movimento de Mulheres Negras e as jovens reunidas no evento, foi um dos pontos principais do evento”.
No momento em que o Brasil se depara com um grave processo político de desmandos e retrocessos, em que diferentes grupos sociais têm buscado a organização da população para a defesa dos seus direitos ameaçados, as mulheres negras têm se somado a esses esforços, promovendo e participando de atividades de rua e de incidência política.
Entretanto, o Brasil voltou ao Mapa da Fome, o congelamento do orçamento social vem paralisando os investimentos em políticas públicas desde a edição da Emenda Constitucional 95/2016 e as mulheres e a juventude negra continuam sobre representadas nos índices de exclusão social e de violência. Por isso, apesar do avanço das nossas lutas e de o movimento de mulheres negras ser considerado o mais potente da última década, sabemos que estamos muito longe das conquistas que reivindicamos. Ainda somos as principais vítimas de violências e feminicídio, do desemprego, do racismo estrutural, da pobreza, que nos colocam em situação de extrema vulnerabilidade.
Para as jovens negras feministas, o desafio está em como aprofundar e traduzir para seu público os novos conceitos da contemporaneidade como feminismo negro, feminismo decolonial, feminismo interseccional, mulherismo, entre outros que surgem a cada dia e que carecem de aprofundamento. Elas também têm pela frente o desafio de encontrar novas formas de promover um diálogo entre a moçada da academia e a juventude da quebrada, vendo como a geração tombamento pode exercitar a troca não hierárquica de saberes para criar estratégias de ações conjuntas. Além disso, é necessário pensar em como promover novas formas de mobilização e atuação, particularmente em tempos de ativismo digital pelas mídias sociais, sem perder a essência do que foi pensado e produzido pela geração anterior de jovens ativistas negras.
De onde viemos, onde estamos e para onde iremos tem sido colocado no centro dos debates contemporâneos. São muitos os desafios para a organização das mulheres negras. Como afirma a cientista política Ana Claudia Jaquetto Pereirano seu livro Intelectuais Negras: Horizontes Políticos, “são muitos projetos e é importante buscar tendências e continuidade entre esses horizontes políticos, não porque seja preciso haver um projeto só, ou porque um é melhor que o outro, mas para ver o que as mulheres negras têm sido capazes de produzir e para que possamos conhecer e nos reconhecer nesses projetos”.
Para irmos cada vez mais longe e conquistarmos as transformações que desejamos, é preciso continuar acreditando na utopia, com a certeza de que nossa luta é o motor gerador de mudanças para um efetivo Bem Viver. Por nós, por todas nós.
* Nilza Iraci é Comunicadora Social e Coordenadora Executiva do Geledés – Instituto da Mulher Negra
A Geledés – Instituto da Mulher Negra é uma organização política brasileira de mulheres negras contra o racismo e sexismo, tendo como principal objetivo erradicar a discriminação presente na sociedade que afeta indivíduos com essas características, sem desencorajar a luta contra todas as restantes formas de discriminação, tais como a homofobia, a discriminação baseada em preconceitos regionais, de credo, opinião e de classe social, tendo em vista que todos os alvos de discriminação são afetados pela iniquidade que tende a restringir a fruição de uma plena cidadania. Seu nome deriva do conceito de gelede, sociedades secretas femininas na cultura iorubá.
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